A ascensão do Chega não se limita ao crescimento eleitoral: o seu maior feito é ter empurrado o debate público para um pântano onde a decência afunda. Neste caldo germinam os crimes de ódio, o racismo violento, os grupos armados. Não se nasce neonazi: chega-se lá, passo a passo. O verdadeiro perigo não é só o que se diz – é o que se cala. É o que se deixa passar. É o que se normaliza.
Há um cheiro de enxofre no ar. Não é só a crise social, não é só o desespero económico: é o tom das palavras que se azedou, a violência que deixou de ser sussurrada e passou a desfilar, impune, nas ruas, nas redes e, pior, nas instituições do Estado. O mais recente relatório do Conselho da Europa aponta o dedo a Portugal dizendo que está a ser corroído por uma vaga de discurso de ódio, agressões racistas e pelo fortalecimento de grupos neonazis. É um alerta gravíssimo que não pode ser desvalorizado com a ligeireza dos que, fingindo-se democratas, dão guarida a quem despreza a democracia.
Não se trata apenas de casos isolados. Seis membros de um grupo de extrema-direita foram detidos pela Polícia Judiciária na posse de armas, explosivos e material de propaganda nazi, uma célula com capacidade operacional e ideológica para o terror. Mas se o combate à violência armada é da competência das forças de segurança, o combate à violência política e simbólica pertence-nos a todos.
“Andamos distraídos”, disse Fernando Negrão, ex-diretor da PJ, alertando para a “radicalização da sociedade portuguesa” e para a emergência de “novos e graves crimes” que apanham o Estado desprevenido. Mas talvez não seja apenas distração, talvez estejamos a assistir a algo mais profundo: a uma “cheganização” silenciosa, mas eficaz, da política nacional. Uma contaminação que começou nas franjas do sistema e hoje já se senta à mesa do poder, e pior, dita parte do cardápio.
A ascensão do Chega não se limita ao crescimento eleitoral: o seu maior feito é ter empurrado o debate público para um pântano onde a decência afunda. Ao normalizar o insulto, ao banalizar o preconceito e ao transformar o ódio em programa político, o partido de Ventura criou um efeito de arrastamento. Hoje, setores da direita que se diziam moderados copiam-lhe o vocabulário, a agressividade e até o desprezo pelas instituições. Quando um governante, o secretário regional de Turismo da Madeira, Eduardo Jesus insulta deputadas no parlamento regional chamando-lhes “gaja burra”, não é apenas um desabafo malcriado, é um sintoma de degradação institucional e moral.
O problema não é apenas o que o este partido diz ou faz, é o que outros começaram a dizer por causa dele e o que todos deixaram de dizer com medo dele. É o silêncio dos moderados que, receando perder votos, preferem calar-se diante do inaceitável. É a capitulação de quem, por cálculo político, escolheu copiar os radicais em vez de enfrentá-los. Hoje, o discurso de ódio já não é marginal, é mainstream.
Neste caldo germinam os crimes de ódio, o racismo violento, os grupos armados. Não se nasce neonazi: chega-se lá, passo a passo, com a legitimação de um ambiente social onde odiar se tornou aceitável. A direita que se diz democrata e responsável, ao não traçar linhas vermelhas com clareza, tornou-se cúmplice.
A democracia portuguesa tem sobrevivido a muito, mas não resistirá à indiferença dos que a deveriam defender. Não é apenas o extremismo que está a crescer – é a nossa tolerância à intolerância que está a matar os anticorpos da República. O verdadeiro perigo não é só o que se diz – é o que se cala. É o que se deixa passar. É o que se normaliza.
Nem sempre fascismo entra pela porta da frente. Já entrou várias vezes na história pelas rachaduras de democracias que foram perdendo gradualmente o amor à liberdade, à igualdade e aos deveres de fraternidade para com os mais desfavorecidos.