Crédito Imagem: JOSÉ SENA GOULÃO / Lusa
O mesmo Governo que agora promete rigor e “fim do facilitismo”, promove, em paralelo, uma via verde para empresas contratarem imigrantes com vistos atribuídos em apenas 20 dias. Para o capital, celeridade. Para os vulneráveis, discurso punitivo. Pois bem: ou se está com os direitos humanos e a dignidade das pessoas, ou se está com a retórica que os mina ao lado da extrema-direita. Leitão Amaro fez a sua escolha. Cabe-nos a nós denunciá-la.
O ministro da Presidência, António Leitão Amaro, apresentou recentemente aquilo que parece ser a sua visão estruturante para a política migratória: deportações mais rápidas e muita retórica sobre “regras” e “tranquilidade”. Num discurso proferido após a reunião do Conselho Nacional para as Migrações, declarou ser necessário acelerar os processos de expulsão de imigrantes sem documentos, justificando: “É uma justiça para aqueles que cumprem as regras”.
À superfície, esta pode parecer uma posição sensata: o problema é quando se analisa a lógica que a sustenta e as contradições que a minam. O mesmo Governo que agora promete rigor e “fim do facilitismo”, promove, em paralelo, uma via verde para empresas contratarem imigrantes com vistos atribuídos em apenas 20 dias, desde que seja para grandes empresas e ofereçam habitação e formação. Para o capital, celeridade. Para os vulneráveis, discurso punitivo.
Esta duplicidade é gritante – e afronta quem a ouve. O ministro responsabiliza o anterior governo por uma alegada “irresponsabilidade” na gestão migratória, acusando-o de ter causado “grande desumanidade” ao sobrecarregar os serviços públicos. Mas finge esquecer que essas dificuldades decorreram apenas mais da falta de investimento no Estado social e não de um excesso de imigrantes.
Aliás, é preciso colocar os pontos nos iis. Não faz qualquer sentido o ministro Leitão Amaro responsabilizar o anterior Governo socialista por uma política de “descontrolo” no regime de entrada de estrangeiros que permitiu a quadruplicação do número de imigrantes em sete anos. Não faz sentido – mas não 0por ser mentira que o número de residentes estrangeiros em Portugal tenha duplicado em três anos, atingindo por esta altura os 1,6 milhões. Esta parte é verdade.
Não faz sentido simplesmente porque Portugal não tem imigrantes a mais, tem a menos! Segundo as organizações patronais, Portugal só conseguirá manter o seu crescimento económico – e executar as verbas europeias do PRR e do Portugal 2030 – se receber 300 mil novos imigrantes nos próximos três anos, 90 mil dos quais para trabalhar na construção civil.
Neste contexto de falta de imigrantes, falar do problema das “portas abertas” é um exercício de demagogia, para não dizer de tontice…
Mais grave ainda, porém, é o conteúdo ideológico do discurso. Leitão Amaro declarou que surgiram em Portugal “pessoas com diferentes culturas, línguas e religiões” e que esse crescimento “muito rápido” da imigração “pode ser uma fonte de intranquilidade nas comunidades”. Esta formulação é digna de manuais populistas e associa implicitamente diversidade cultural à insegurança social. É uma afirmação perigosa e é também racista, ainda que dita em tom professoral por quem usa gravata de seda.
A tentação de se posicionar como o homem do meio-termo – “nem portas escancaradas, nem portas fechadas” – é pura encenação. O que o ministro propõe é uma política baseada na lógica da suspeição, na gestão securitária da imigração e na transformação do imigrante num problema, antes de ser visto como cidadão com direitos. Um discurso alinhado com o ideário da nova direita europeia, que, quando não pode fechar as fronteiras fisicamente, fecha-as simbolicamente com palavras.
É neste contexto que a aproximação ao discurso do Chega não pode ser ignorada, pela forma como agita fantasmas em torno da imigração e responsabiliza o “outro” pelas falhas do Estado. Ao revestir os propósitos de repressão com a capa do “bom senso”, Leitão Amaro procura conquistar terreno político a uma extrema-direita que não esconde as suas intenções xenófobas. A diferença entre eles é apenas de decibéis — não de substância.
Na prática, o ministro encarna a versão portuguesa — polida, mas não menos perigosa — de Donald Trump: culto na forma, duro no conteúdo, calculista no alvo. E, como qualquer “Trump de palacete”, procura ganhar espaço cedendo na linguagem da exclusão, enquanto oculta as reais prioridades: desresponsabilizar o Estado e transferir para os mais frágeis o ónus dos falhanços públicos.
Tudo isto, enquanto se facilita a entrada dos imigrantes que servem os interesses das grandes empresas. A imigração, afinal, só é problema quando é pobre e desprotegida e vem trabalhar para microempresas, PME ou particulares sem poder de “lobbie” e com dificuldades de organização e de formalização de procedimentos. Mas é bem-vinda quando vem para os grandes grupos económicos que o Governo respeita e a cujas necessidades gosta de atender.
Dito isto, Portugal precisa, sim, de uma política migratória organizada e eficaz. Mas também precisa, e sobretudo, de uma política baseada em princípios de justiça, inclusão e de respeito pelos direitos fundamentais. O que não precisa — e não deve aceitar — é um ministro que agita medos e preconceitos para colher ganhos políticos.
Os tempos já não são de ambiguidade. Ou se está com os direitos humanos e a dignidade das pessoas, ou se está com a retórica que os mina. Leitão Amaro fez a sua escolha. Cabe-nos a nós denunciá-la, sem eufemismos.