Por Jamil Chade
O futebol jamais é apenas um esporte. E, no continente africano, essa máxima ganha um novo capítulo no torneio continental que ocorre neste mês na Costa do Marfim.
Avaliado em US$ 1 bilhão, o evento no país do Oeste da África vem sendo marcado por acusações do uso político do futebol para ampliar a popularidade do presidente Alassane Ouattara, antes das eleições de 2025. Para seus críticos, ele não perdeu a oportunidade de transformar a competição num argumento para acelerar obras e divulgar seu nome.
Seis estádios foram construídos ou reformados, e um deles ganhou o nome do presidente. A “côtière”, a estrada de 350 km que liga Abidjan, a capital econômica, ao principal porto de San Pedro, foi totalmente reconstruída. Há também a extensão de outra rodovia que liga Abidjan a Yamoussoukro e Bouaké.
O debate fica ainda mais acirrado quando se constata que, no Oeste Africano, dois golpes de estado em média foram registrados por ano desde 2020.
Nada disso é novo. Ouattara fez questão de liderar as celebrações em 2015 quando sua seleção venceu a Copa da África. Meses depois, um país em festa foi às urnas e ele foi reeleito.
A história do futebol africano se confunde com a história da região. Seja com os jogadores argelinos que fugiram de seus clubes franceses para montar uma seleção clandestina para promover a ideia da independência, seja com a vitória do jogador George Weah para a presidência da Libéria.
A própria origem do torneio tem um aspecto política claro. Em sua primeira edição, em 1957 em Cartum, o evento empunhava a pandemia da visão pan-africana. Aquele era o ano da criação da Confederação Africana de Futebol, uma entidade que era um veículo para o idealismo político da descolonização e a união de um continente.
O evento regional, assim, era a declaração da África ao mundo de sua busca por igualdade, uma afirmação de sua cidadania no palco internacional e uma reivindicação da ideia de novas identidades nacionais.
Nas décadas seguintes, a entidade e o torneio seriam testados. Quando a África do Sul insistiu que apenas selecionaria jogadores brancos, o país foi expulso da Confederação e ficou de fora de 18 torneios consecutivos, até finalmente ser abraçado de volta em 1994.
No século 21, porém, Ouattara não é o único que acompanha com atenção o que ocorre em campo. Em 2024, onze dos 24 times no torneio vão às urnas. Se uma vitória não determina o resultado da democracia, o que os diferentes lideres querem saber é como usar o desempenho de suas seleções em campo para fins eleitoreiros.
Resumir o destino político de um continente ao futebol é tão míope quanto reducionista. Mas a realidade é que, ao longo dos últimos anos, políticos locais têm instrumentalizado o esporte para se promover num continente que ainda tem na esperança um caminho para lidar com a profunda desigualdade e injustiça.
Os políticos não são os únicos que esperam explorar a ilusão criada por ícones como Mohammed Salah ou Victor Osimhen.
O evento ainda passou a ser uma oportunidade para que empresas que exploram a região possam se apresentar de uma maneira positiva para a opinião pública africana.
O torneio, neste ano, é oficialmente chamado de Copa Africana das Nações TotalEnergies, a gigante do setor petrolífero e que, ao longo de décadas, acumula polêmicas, escândalos e críticas pela forma pela qual mantém contratos com diferentes governos da região.
A multinacional francesa não revela qual o valor do patrocínio que hoje paga para a Confederação Africana de Futebol. Mas o contrato assinado em 2016 permite que dez eventos continentais levem o nome da empresa estrangeira.
O cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues, apaixonado por futebol, dizia que “o pior cego é o míope, e pior que o míope é quem enxerga bem mas não entende o que enxerga”.
No continente africano, quando a bola rola, há mais em jogo que a conquista de um campeonato. Basta abrir os olhos.