Governo de Maputo jamais respondeu e aprovou lei temida por relatores internacionais
Por Jamil Chade
Numa carta sigilosa enviada ao governo de Moçambique, relatores da ONU alertaram que uma lei que seria aprovada pelo Parlamento do país ameaçava os direitos humanos, a operação de entidades da sociedade civil no país e mesmo a liberdade de associação.
O fechamento de espaços para a defensores de direitos tem sido uma preocupação de relatores da ONU que, ao longo dos últimos anos, registraram uma tendência cada vez mais clara em diversos países no sentido de restringir a atuação da sociedade civil.
A carta, obtida pelo Portal Vozes, foi enviada ainda em 10 março de 2023. Mas jamais foi respondida pelo governo moçambicano. Ela foi assinada por Clement Nyaletsossi Voule, relator especial sobre os Direitos à Liberdade de Reunião Pacífica e de Associação, Irene Khan, relatora especial sobre a Promoção do Direito à Liberdade de Expressão, Mary Lawlor, relatora especial sobre a Situação dos Defensores dos Direitos Humanos, e Fionnuala Ní Aoláin, relatora sobre a promoção das Liberdades Fundamentais no combate ao terrorismo.
Em agosto, o Poder Legislativo no país acabou aprovando o que foi conhecida como a Lei de Lavagem de Dinheiro e Financiamento ao Terrorismo.
Oficialmente, a medida amplia o controle e escrutínio sobre as organizações sem fins lucrativos, evitando que possam ser usadas como forma de lavagem de dinheiro e financiamento ilícito.
Essa era a resposta do governo de Moçambique depois que, em 2022, foi criticado e obrigado a reformular sua legislação. Maputo passou a integrar a “Lista Cinzenta” do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que detectou problemas na capacidade de o país de lidar com atividades financeiras ilícitas.
Naquele momento, as autoridades comemoraram a aprovação. “O governo procedeu à revisão pontual da Lei, para conformá-la às Convenções das Nações Unidas, às Resoluções do Conselho de Segurança e às 40 recomendações do Grupo de Acção Financeira Internacional” explicou Helena Kida, Ministra da Justiça e Assuntos Constitucionais e Religiosos.
Riscos para a Sociedade Civil
Mas um dos trechos da nova lei coloca novas exigências sobre organizações sem fins lucrativos, entre elas as ONG de direitos humanos, fundações e confissões religiosas.
Na carta, os relatores da ONU afirmam que o então projeto de lei poderia ter “graves consequências para o exercício dos direitos humanos, incluindo o direito à liberdade de associação, para indivíduos envolvidos e beneficiados por organizações sem fins lucrativos em Moçambique”.
Apesar de reconhecer a necessidade de lutar contra o terrorismo, os relatores da ONU insistem que estavam “preocupados com o fato de que a lei proposta imponha restrições que sejam inconsistentes com os padrões internacionais de direitos humanos, especialmente o direito à liberdade de expressão, humanos internacionais, especialmente o direito à liberdade de associação, à liberdade de participar de assuntos públicos, à liberdade de expressão, à liberdade de expressão e à liberdade de expressão”.
“Também estamos preocupados com o fato de que, caso essa legislação seja aprovada, as organizações sem fins lucrativos poderão ter dificuldades para continuar funcionando de forma livre e eficaz”, disse.
Um dos problemas seria a autorização para que possam operar. A lei exige que as autoridades aprovem previamente uma associação. Mas não estabelece se o reconhecimento é obrigatório ou discricionário. Para os relatores, se o registro não for aceito, razões claras devem ser fornecidas por escrito e a associação deve ter o direito de contestar a decisão perante os tribunais.
Além disso, a lei define que organização sem fins lucrativos inclua apenas aquelas “primariamente envolvida na arrecadação ou distribuição de dinheiro para caridade, religiosos, culturais, educacionais, sociais ou fraternais, ou para o desenvolvimento de outros tipos de boas obras”.
A lei internacional de direitos humanos não faz qualquer exigência neste sentido. Isso, portanto, levaria à exclusão das organizações sem fins lucrativos cujas atividades não são cobertas por essas disposições.
Uma interpretação restritiva dessa disposição levaria a limitações nos direitos das organizações de participar de assuntos públicos, incluindo o engajamento em cooperação regional e internacional, em particular com as Nações Unidas e suas entidades constituintes. Isso também pode fazer com que certas associações não sejam reconhecidas e registradas, e, portanto, não possam funcionar.
Para completar, os critérios para determinar se uma associação desempenha essas funções não estão definidos no projeto de lei. “A falta de definição pode levar a decisões arbitrárias e inconsistentes”, alertam.
O documento ainda aponta para o risco contra a autonomia dessas entidades. Uma delas é a exigência de que associações forneçam informações relacionados à sua administração interna.
O artigo 33 da lei, por exemplo, exige que as organizações nacionais “devem, durante o primeiro trimestre de cada ano, apresentar um relatório sobre suas atividades para comprovar a busca de seu objetivo, incluindo a contabilidade dos fundos e uma lista de atividades realizadas perante as autoridades competentes para reconhecimento”.
Para a ONU, essas exigências de relatórios parecem ir além o que é necessário para garantir a propriedade financeira.
Seu artigo 52 também exige que as ONGs estrangeiras apresentem “relatórios trimestrais, semestrais e anuais durante o curso e ao final de seus programas ou projetos”.
“Essas exigências de relatórios tão extensas provavelmente serão onerosas, especialmente para associações menores, e provavelmente afetarão sua capacidade de realizar suas atividades e objetivos principais”, disseram os relatores da ONU.
O peso burocrático e a imposição de gastos são elementos vistos pela sociedade civil como uma forma de o governo ampliar suas restrições contra a sociedade civil, incapaz de pagar por todos esses informes.
“Esses requisitos propostos podem esgotar orçamentos já limitados, prejudicar a capacidade das organizações sem fins lucrativos visadas de realizar suas atividades legítimas e dissuadir as pessoas de se associarem ou liderar associações”, denunciaram os relatores. Isso seria uma possível violação dos direitos à liberdade de opinião e expressão e liberdade de reunião e associação pacíficas.
Contra a lei
Na carta enviada pelos relatores da ONU, há ainda outro alerta: a exigência imposta pela lei de que as entidades da sociedade civil não façam campanhas ou ações sobre temas que possam ir contra a lei nacional.
O que muitos se questionam, porém, é a atuação que a sociedade civil pode ter justamente para pedir a mudança de uma norma que esteja gerando violações.
“Estamos preocupados com o acréscimo do termo vago “ou que busquem fins contrários à lei”, alertaram os relatores. “Esse termo pode fazer com que as associações que buscam a reforma legal sejam consideradas como agindo “contrariamente à lei”, mesmo que a reforma proposta possa estar alinhada com a lei internacional de direitos humanos”, destaca a carta.
Também é considerado como preocupante o fato de a lei conceder autoridade ao Conselho de Ministros, sem supervisão ou recurso judicial, para interromper as operações de uma ONG estrangeira se ela realizar determinadas atividades.
Isso inclui “envolvimento na execução ou financiamento de atividades de partidos políticos ou sindicatos”, “desempenho de atividades que possam causar danos à segurança nacional, à ordem pública, à moral ou à saúde pública e, ainda, que possam incitar a discriminação, o ódio ou a comoção”; e “quaisquer outras causas que possam ser contrárias à Constituição da República de Moçambique e quaisquer outras leis em vigor no país”.
Para os relatores da ONU, portanto, uma ONG estrangeira pode ser fechada apenas por realizar atividades legítimas e de defesa dos direitos humanos. E isso tudo sem a supervisão da Justiça.
Para completar, a lei determina que as ONGs estrangeiras “devem” participar da implementação de programas sociais e econômicos que sejam definidos e aprovados pelo governo”.
“A esse respeito, chamamos a atenção do governo para várias questões”, alertaram os relatores.
“Primeiro, as associações não devem se limitar a atividades que tenham sido definidas e aprovadas pelo governo. Segundo, as associações não devem ser obrigadas a realizar um determinado tipo de atividade ou a operar em um domínio específico. Lembramos ao governo que os membros das associações devem ser livres para determinar seus estatutos, estrutura e atividades e tomar decisões sem interferência do Estado para que possam efetivamente exercer efetivamente seus direitos à liberdade de associação, opinião e expressão”, defendem.