Os 50 anos da independência de Moçambique, celebrados no dia 25 de junho deste ano, trouxe para os moçambicanos da diáspora uma reflexão sobre como está o país hoje, sua população e a democracia. Convidamos para conversar com o Portal Vozes, Sheila Khan, socióloga, investigadora e professora universitária moçambicana, que compartilha sua história de vida e como enxerga essa sociedade moçambicana.
A socióloga fala com muito orgulho das mulheres da sua família e da diversidade cultural que nasceu e foi criada, com referências moçambicanas, portuguesas, indianas e goesas. Fala sobre o seu processo de autoconhecimento como mulher africana também, “eu acho que é uma coisa que é preciso trabalhar, pois a nossa interioridade também é colonizada, a nossa interioridade também é descolonizada e a nossa interioridade também é decolonizada”.
Sheila nasceu em Moçambique, mas veio ainda criança para Portugal. “Eu sempre senti que eu era uma diáspora. Portanto, eu sempre senti que eu tinha muitas pontas soltas no início, porque eu era portuguesa, moçambicana, indiana. Mas eu hoje sinto e à medida que fui crescendo que eu sou efectivamente uma moçambicana na diáspora, um Moçambique que também viajou, que atravessou o oceano e atravessou outros países e que foi crescendo. Porque esse Moçambique não se fez só em Moçambique”.
Sobre a situação atual de Moçambique, a professora diz: “Por um lado, uma elite económica e política escandalosamente muito bem musculada e, por outro lado, uma população que se vê completamente desnutrida e que nas mãos só encontra escassez“. E complementa: “Esta população que veio queixar-se para a rua no período pós-eleitoral de 9 de outubro de 2024, não é uma população marginal, é uma população marginalizada pelos próprios processos de independência e de construção e de solidez dessa independência“.
Para continuar a reflexão, Khan reforça que não é tempo de resposta, “é o tempo das perguntas, será que estamos preparados para assumirmos a responsabilidade de efetivamente estudarmos o estado da arte da nossa maturidade histórica?”.
Confira a entrevista completa:
Larissa Silva: Sheila, para começar, vou pedir para você se apresentar. Quem é a Sheila Khan?
Sheila Khan: O meu nome é Sheila Can. O meu nome, no fundo, é o encontro entre várias culturas e povos e gentes, porque o meu nome completo é Sheila Pereira Cano. Portanto, eu sou um encontro entre moçambicanos, goeses, moçambicanos muçulmanos, moçambicanos africanos.
Portanto, a minha família é uma mistura, por um lado, de de diversas africanidades e orientalismo, é preciso também dizer isso. E por outro lado também tenho uma família branca de Portugal. Houve assim um encontro e a verdade é que a experiência do colonialismo e a experiência colonizadora formata, influencia todas estas travessias identitárias e culturais históricas.
No fundo, a Sheila é, e eu fico feliz por isso, o resultado deste mosaico colorido de gentes, de culturas. Também é verdade, diferentes maneiras de ver o mundo com diferentes religiões e visões, mas são maneiras que me ajudaram e me obrigaram desde pequenina a respeitar a diversidade e a perceber que a diversidade não é um espaço de medo e de desconfiança, mas um espaço de construção, de fraternidade e de uma ponte para com o outro, que é que também sou eu, porque eu sou muitos outros dentro de mim.
Eu tive que lidar muitas vezes com muitos outros que vinham ter comigo. Eu tinha que perceber quem eu era naquele momento, se eu era a Sheila portuguesa, se eu era a Sheila indiana, se eu era a Sheila moçambicana. E, portanto, eu também fui aprendendo a partir daí a saber lidar com as minhas heteronomias. Portanto, a Sheila é no fundo o fruto, é o resultado destes encontros possíveis, plurais entre pessoas, culturas, gentes e visões do mundo.
Eu vim para Portugal pouco tempo após a independência de Moçambique. Portanto, eu chego a Portugal com a independência de Moçambique em 1975 e nessa altura já tinha 3 anos. Os meus avós maternos decidiram vir para Portugal porque o meu avô não se adaptou, ou melhor, vamos ser mais rigorosos sociologicamente falando. Meu avô não se identificou com toda a gramática, nova gramática humana, política, histórica da Frelimo. Meu avô era um indiano, brâmane, portanto para ele os pretos não podiam governar aquele país. Pronto, era exatamente isto.
Ele era indiano, brâmane, portanto ele não era a favor do colonialismo, mas não era a favor de uma independência governada e com um poder negro africano. Pronto. E, portanto, ele não se
Larissa Silva: Desculpa só uma dúvida, tem dados de como era essa população naquele período? Assim, porcentagens?
Sheila Khan: Não, mas posso dizer que era uma população enorme, porque Moçambique recebeu muita imigração da Índia portuguesa e muita imigração também da Índia, que hoje é o Paquistão, porque o meu Pereira é goês e o meu Can é paquistanês. Portanto, eu tenho as duas índias em mim, para além de ter também sangue português, judeu e uma das minhas avós africanas também era descendência grega. Portanto, eu acho que desde cedo fui abençoada, mas também formatada para trabalhar onde eu trabalho hoje, que é na área de estudos culturais, pós-coloniais, da memória, porque eu também cresci a ouvir, nomeadamente as mulheres, as minhas mulheres passavam muito tempo na cozinha, a cozinhar, a costurar, a limpar a cozinha e, portanto, a cozinha era o espaço não só da mística familiar, mas também era o espaço das memórias, era o espaço das partilhas e era o espaço também de uma certa continuidade em termos narrativa. O que foi o passado, o que é que eu estou a viver no presente e o que é que eu espero do futuro, não é?
A cozinha e a casa eram uma espécie de um retrovisor histórico e identitário para estas mulheres. Eh, e portanto eu vim viver para Lisboa no início, posteriormente fui vim para Braga, porque os meus pais depois também vieram mais tarde de Moçambique. Fiz aqui em Braga os meus estudos, até os estudos superiores. Sou socióloga e depois fui para Lisboa fazer mestrado em psicologia social e depois meu sonho sempre foi ser professora, ser acadêmica, investigadora e professora universitária, mas sempre investigadora.
Portanto, eu fui fazer o doutoramento para Inglaterra e a partir daí tive 11 anos fora, ou melhor, quase 12 anos fora, onde fiz sempre trabalhei na área da investigação em Inglaterra, Noruega, Itália. Circulei imenso. O meu filho, entretanto, nasceu também em Inglaterra. Eu acho que eu desde cedo vesti geneticamente as vestes de uma cidadã nómada. Pronto.
O Índico, antes dos portugueses lá chegarem, nós já tínhamos sido visitados por uma outra experiência árabe, não é? Oriental. E, portanto, isso denota-se imenso, principalmente no norte de Moçambique, as próprias figuras, o corpo, os rostos das pessoas são diferentes. E isso mostra bem como é que a história dos continentes, a história dos países entram pelo nosso corpo e fixam. Não há como retirar essa, não é só diversidade. E eu acho que era importante falar sobre isso, é também ambivalência, ambiguidade e contradição. Porque se é bom viver esta diversidade numa idade madura, em que já passei, já passamos por muito, numa idade em que estamos ainda a ser formados, é muito difícil lidar e compreender o que é que vai emergindo no nosso corpo, por um lado, eu tenho uma figura indiana, mas o meu cabelo cresce carapinha, como é que eu vou lidar com isto, não é? Como é que eu vou perceber isto e como é que eu vou interpretar esta dualidade, esta contradição e eu sofri muito com isso. Eu olhava-me ao espelho e sentia que não era uma africana com aqueles traços. Eu sentia a minha parte indiana muito fincada em mim. Por outro lado, tinha carapinha, tinha o cabelo ondulado, não tinha o cabelo igual aos das minhas primas, que era aquele cabelo Bollywood, liso. Agora eu acho o meu cabelo lindíssimo. Eu adoro os meus caracóis, adoro as minhas a minha carapinha que é muito de mim, de todas as minhas travessias, mas eu quando tinha 12, 13 anos, eu odiava a minha carapinha, eu odiava os meus caracóis.
E, portanto, eu acho que também nós temos que ter a coragem de olhar para esses tempos e não romantizá-los, porque muitas vezes nós éramos educados para lidar com a diversidade fora de nós, mas nós não éramos educados a compreender, a interpretar e a aceitar a diversidade entre nós. E essa interioridade muitas vezes foi traumática, magoou, limitou, porque não nos deu a possibilidade de uma autoestima positiva.
É uma trajetória muito solitária, porque os nossos familiares não tinham também ferramentas e não estavam preparados e não tinham sensibilidade e inteligência para lidar com isso, para nós perceberem uns a uns e outros. Havia um certo pacto de silêncio. Nós estávamos muito compenetrados e comprometidos em lidar com o exterior, em perceber as questões do colonial, da sobrevivência, da questão pós-colonial, da questão da descolonização.
Portanto, nós fomos formatados a lidar com a rua, com o espaço público, quando muitas vezes também vinha outra contradição, esse espaço público também não nos via, nós éramos o outro, não é? Portanto, hoje esta maturidade é feita de muitas montanhas que foram calcorreada, de muitos caminhos que muitas vezes não tinham onde segurar-nos. E hoje quando eu vejo esse cabelo da Djaimilia Pereira de Almeida, eu penso: “Meu Deus, eu escondi tantas vezes esse cabelo dentro de mim, eu não tive coragem de o escrever e ainda bem que a Djaimilia escreveu”. Mas eu nunca consegui pôr no papel aquilo que ela escreveu e tão bem escreveu. E eu acho que é uma coisa que é preciso trabalhar, que é a nossa interioridade também é colonizada, a nossa interioridade também é descolonizada e a nossa interioridade também é decolonizada.
Larissa Silva: Sheila, eu fiquei muito curiosa. Eu já ia para segunda pergunta, mas antes quero perguntar o que essa cozinha? Você disse muito da cozinha, desse espaço de partilha.
Mas como era essa mistura de comida?
Sheila Khan: Bem, é preciso dizer que num tempo colonial mesmo as pessoas em Moçambique também comiam comida portuguesa. Portanto, a minha gastronomia, a minha cozinha familiar é uma cozinha goesa, indiana, moçambicana e portuguesa. E portuguesa do sul de Portugal, do centro de Portugal e do norte de Portugal. Se calhar, não tão vincadamente norte, agora nos primórdios dos anos 80 e 90, muito, muito moçambicana, muito goesa. E a verdade é que eu aprendi as histórias das mulheres da minha família a partir do cheiro dos coentros, dos cominhos, da malagueta, das chamuças, do caril, das especiarias.
E eu tenho esta memória, da minha avó e a minha mãe a picar a cebola, a cortarem gengibre. Havia muito gengibre na minha cozinha, alho e elas a conversarem. E muitas vezes eu achava que aquelas lágrimas da cebola também eram lágrimas de memória, não é? Eram lágrimas de partilha, de fraternidade, embora a minha mãe fosse de uma geração diferente. Mas, por exemplo, a minha avó materna contava-me que chorou muito, que ela não queria vir embora, que a minha avó era goesa, mas é uma goesa já nascida em Lourenço Marques (atual Maputo) em 1920. E ela disse que só veio embora por causa do marido, por causa do meu avô, que ela não queria ir embora. E ela sempre disse: “A minha terra é Moçambique”. E ela mesmo em Portugal, a minha avó foi sempre uma mulher silenciosa, muito doce, meiga, mas o silêncio dela dizia muita coisa e ensinava muita coisa. ensinava a sobrevivência, ensinava o sentido humano de tudo. Isto é, foi uma pessoa que me ensinou que mesmo nos momentos mais difíceis, nós temos que ser humanos uns com os outros e temos que ser fraternos e solidários, porque é isso que é a nossa marca e que tem de ser a nossa marca aqui.
As mulheres da minha família marcaram muito esse nível. As pessoas dizem: “Ai, tu és tão doce, tão educada. Eu termino sempre os meus e-mails com abraço, com estima e é uma homenagem todos os dias a essas mulheres que ensinaram-me a ser essa candura, essa ternura e muitas vezes as pessoas diziam: “vão abusar de ti”. E eu às vezes pensava não, as pessoas não sabem a nobreza do que é dizer um abraço com estima. E hoje eu sinto uma enorme gratidão porque esta educação também que vem na palavra e a palavra que traz comportamento e o comportamento que traz postura e a postura que traz princípios e valores foi muito importante para mim e elas sim foram o meu Moçambique em trânsito e constante mutação e evolução.
Larissa Silva: como é ser uma mulher moçambicana em Portugal? Se é assim que, apesar da sua família ter muitas origens, se é assim que você se identifica, como é que foi crescer como mulher moçambicana aqui em Portugal?
Sheila Khan: Eu sempre senti que eu era uma diáspora. Portanto, eu sempre senti que eu tinha muitas pontas soltas no início, porque eu era portuguesa, moçambicana, indiana. Mas eu hoje sinto e à medida que fui crescendo que eu sou efectivamente uma moçambicana na diáspora, um Moçambique que também viajou, que atravessou o oceano e atravessou outros países e que foi crescendo. Porque esse Moçambique não se fez só em Moçambique.
Moçambique fez também da sua relação com outros países. Basta ver que durante o processo de de luta de libertação nacional, Moçambique foi muito apoiado pela Tanzânia, foi muito apoiado pelos países nórdicos europeus, pelos países de uma outra África, não é, a Argélia, que também estavam a lutar pela sua independência e também por outros países que fizeram parte desta grande família panafricanista, também na América.
Portanto, eu cresci e aqui mais uma vez volto à minha família, porque eu acho que a família foi muito importante para mim, porque a minha família moçambicana também é uma família muito colorida. Eu tenho moçambicanos goes, tenho moçambicanos de origem timorense, tenho moçambicanos brancos, tenho moçambicanos que são de uma diversidade tão grande. E isso ajudou-me a perceber que nós não somos espaços fixos. Nós não somos, nós temos o nosso momento primordial, mas nós evoluímos. Nós somos como a natureza e Moçambique também foi evoluindo. E a minha vivência, a minha educação e a minha formação foi-me mostrando cada vez mais que ser moçambicana é também fazer parte não de uma história única, mas de várias histórias que umas ficaram em Moçambique e outras fizeram outras rotas de de de outras narrativas de vida para Portugal
Se Moçambique à início é um país feito de encontros, porque é que nós não aceitamos a ideia que a continuidade, o crescimento desse país também é feito com outros encontros em função dos contextos históricos e políticos. Porque após a independência, Moçambique ligou-se muito pelas decisões da Frelimo à China, Cuba. A guerra fria foi um marco importantíssimo. Tínhamos ali também, tivemos a guerra dos 16 anos, a guerra civil, aquele choque entre aquele Moçambique de pós-independência e a África do Sul à parte ainda. Com outros países que não queriam uma independência africana negra.
Portanto, Moçambique fez-se dessa diversidade e também faz de uma coisa que eu eu não quis dizer há pouco e foi de propósito, porque eu gosto de ir colocando outros conceitos e outras palavras que têm a sua experiência e historicidade.
É que Moçambique também faz-se diferença e essa diferença também tem de ser muito bem contextualizada e compreendida no espaço de uma evolução histórica, sociológica, econômica e identitária e cultural, logicamente.
Eu sou tudo isto e ainda vou ser muito mais porque eu só tenho 52 anos, eu ainda tenho a vida inteira pela frente. Eu acho que o meu lado moçambicano ainda não termina, ainda vai continuar. já
Larissa Silva: Agora eu vou fazer uma pergunta mais sobre a independência. Se você fosse contar para um brasileiro, para um cabo-verdiano o que foi a independência de Moçambique, o que você contaria, que marco foi esse para a sociedade moçambicana?
Sheila Khan: Se eu tivesse contar a história, em primeiro lugar, eu apresentaria essa história e chamaria a atenção para quem me estivesse a escutar, dizendo que é uma história feita de uma pessoa, de uma geração que não lutou para libertação nacional, mas que é herdeira, filha e neta daqueles que lutaram e, portanto, beneficiou com muita gratidão e honra dessa liberdade e independência.
Testemunhei ao nível de uma primeira geração que é a geração que recebeu a independência e recebeu com euforia, com alegria, com honras de um povo que sempre foi dono daquele espaço, mas que foi tido e considerado como subalterno e teve que ser obrigado a uma submissão e uma hegemonia histórica. Portanto, eu iria dizer que é preciso honrar e homenagear essa geração que lutou, sonhou e concretizou esse sonho de independência. Porém, essa independência e a mudança incomoda sempre muita gente. A mudança não tem nunca acolhimento homogéneo. Essa mudança foi importante para muitas pessoas e Samora Machel foi um grande líder e foi um líder importantíssimo nessa altura, mas também colheu, em outras, o desconforto.
Também foi uma mudança que provocou uma reeducação do próprio país, não é? Houve, não sei se a Larissa sabe, mas houve campos de reeducação em Moçambique, em que muitas pessoas que o governo achava que eram, digamos, ervas daninhas no sentido social, eram colocadas e enviadas para o norte de Moçambique, para os campos de reeducação. Pessoas que sofreram muito e é um é uma história de Moçambique mal contada, muito silenciada e acima de tudo que que ainda precisa de ser desconstruída. Muitas pessoas morreram nesses campos de reeducação. Portanto, depois que Moçambique foi crescendo, trabalhando, se ajustando, tiveram uma grande agenda que era a construção do homem novo, não é? Porque não sabia que não era um partido, não era um país capitalista, era um partido, era um país leninista marxista. Portanto, muita coisa mudou. O problema é que nesse entretanto muitos moçambicanos vieram embora, porque quiseram, outros tiveram de vir, outros brancos moçambicanos ou os chamados retornados, que é preciso também destrinçar isto, também tiveram de vir embora. os tais sujeitos da descolonização e os que ficaram passaram mal, porque depois toda aquele a estrutura socioeconómica vai embora.
Portanto, foi um país que de repente caiu numa escassez total de tudo e depois teve um problema brutal que foi rapidamente cair na guerra civil, a chamada guerra dos 16 anos. É um país que acolhe num primeiro momento a euforia. Temos uma primavera, não é uma primavera árabe, mas é uma primavera moçambicana, mas logo a seguir é empurrado ladeira abaixo para um inverno longo, um inverno que ceifou a vida de 1 milhão e tal pessoas e que ainda hoje está muito presente nos traumas, nas mágoas, nas conversas de recompensa e de reparação histórica dentro de Moçambique.
Tivemos a morte de Samora Machel a um determinado momento e nos anos 80 que quebra uma determinada linha de evolução e de crescimento. Veio um outro presidente. Presidente esse que nos coloca na rota do FMI das instituições de Bretton Woods. Portanto, Moçambique torna-se parte desta grande família que se chama Fundo Monetário Internacional.
Tornamos-nos, vá, vamos dizer isto, entramos no capitalismo, na selva capitalista, começamos nos anos 90 a ter eleições multipartidárias, fizemos o acordo de paz entre a Frelimo e a Rename. E desde aí nós somos um país que não obstante a independência, não obstante a liberdade, há uma certa tristeza, porque as gerações heróis que lutaram no tempo das guerras libertação, curiosamente é a geração hoje atual, a mais jovem percebe que todo este caminho é um caminho cheio de buracos, de vácuos que criaram uma enorme desigualdade económica, socioeconômica, profissional.
Por um lado, uma elite económica e política escandalosamente muito bem musculada e, por outro lado, uma população que se vê completamente desnutrida e que nas mãos só encontra escassez.
E é curioso que é a geração do início e a geração de hoje que mais se sentem próximas, porque são gerações que efetivamente sentem a frustração da luta e porque sentem que a luta efetivamente não valeu de nada, porque quando porque caímos num país com muita corrupção, com muita fraude eleitoral, com muita tristeza em termos de desrespeito e vemos uma geração nova que se pergunta para que é que serve a nossa independência quando nós não temos nada.
E daí eu sempre lutei por essa ideia. Esta população que veio queixar-se para a rua no período pós-eleitoral 9 de outubro de 2024, não é uma população marginal, é uma população marginalizada pelos próprios processos de independência e de construção e de solidez dessa independência.
E, portanto, este meu Moçambique que eu amo, que me está na alma, é um Moçambique que, por vezes, eu acho que é um Moçambique com dupla personalidade.
Por um lado, tem um caráter de uma de uma senhora ao livre, aparentemente independente, mas por outro lado tem uma personalidade que rapidamente cai no facilitismo e em determinadas lógicas de e maniqueístas, não é que é uma minoria riquíssima, com vidas em termos de recursos financeiros avultados e tem uma maioria completamente bamboleante, cambaleante.
Peço desculpa pela repetição em termos de sonoridade, em termos de direitos, em termos de benefícios e em termos de um compromisso inteiro e efetiva e factual dos governantes. E o mais estrondoso, um foi a questão das dívidas ocultas, que simplesmente feriu de uma forma retumbante a economia moçambicana nos últimos anos. E é agora esta questão do conflito em Cabo Delgado que vai durar e que também demonstra a fragilidade desta independência e da governação política, porque é uma governação muito centralizada. Ou melhor, os próprios moçambicanos dizem: “eu vou ao país e o país é Maputo, não é?”. Eles não dizem, eu vou à capital, é “eu vou ao país”.
Mas eu posso dizer que apesar de tudo, é um país que tem uma produção literária belíssima, é um país de poetas, é um país de uma cultura, de uma arte extraordinárias e é um país em que eu acho que a população tem uma coisa que me lembra muito a minha avó no caos, na destruição, e sempre têm sempre uma flor na mão e têm sempre um olhar feito de chá e pão de coco, um sabor nas palavras, uma sonoridade meiga e isso deixa-me tão, tão feliz por ser moçambicana.
Larissa Silva: Já que você citou a sua avó, tem uma coisa que me chamou atenção na sua fala quando eu te assisti no evento, que foi falar da sua avó e falar das mulheres, questionar naquele espaço porque eles mostraram um vídeo, não tinha nenhuma representação de uma mulher que passou por esse processo. Queria que você comentasse sobre isso.
Sheila Khan: Assim, as mulheres foram importantíssimas, quer nas lutas da Libertação Nacional, elas apoiaram imenso, ou melhor, o dia 7 de abril, que é até o dia da mulher moçambicana, é o aniversário da morte de Josina Machel, ela que lutou e que foi a primeira mulher de Samora Machel, não nos deixa esquecer também de outras mulheres que que estiveram na luta de libertação nacional, que tiveram na construção da organização da mulher moçambicana, por exemplo, nós vemos por a Graça Machel, que foi a segunda mulher de Samora Machel. Ela que foi mulher de dois grandes estadistas, não é? Samora Machel e depois Nelson Mandela.
As mulheres tiveram um papel preponderante e continuam a ter ao nível da agricultura, ao nível da gestão da economia familiar, rural e até do dia a dia cotidiano, a mulher tem um estatuto importantíssimo e nobre em Moçambique. A questão é, há uma espécie de uma lógica muito patriarcal e muito, eu não chamaria machista, mas muito masculina. E isso denota-se onde? Denota-se, por exemplo, nos vários estudos. Há um estudo da Maria Paula Menezes, que é professora na Universidade de Coimbra, ela fala imensamente sobre isso. Há um trabalho de memória desbotado, porque as mulheres nunca aparecem, elas são sempre ou ignoradas ou colocadas num plano secundário.
Nós temos hoje, graças a Deus, uma primeira ministra, a Maria Benvinda Levy. Tivemos outra grande ministra que foi importante, Luísa Diogo, ministra das finanças. E temos efetivamente ao nível não só da docência, mas também do ativismo, mulheres muito fortes e que são de grande inteligência. Mas onde é que nós denotamos efetivamente esse esse lugar muito patriarcal?
Por exemplo, ao nível dos media em Moçambique, os comentadores são todos homens e que é uma coisa que me põe absolutamente nervosa. Não há comentadores mulheres. Não há comentadoras mulheres. Jornalistas, ouve-se mais a voz dos homens do que das mulheres. Mas elas estão lá e eu arrisco-me a dizer que elas são o pilar, não só em Moçambique, mas podemos olhar, por exemplo, Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, mas em Moçambique elas são os pilares daquela economia familiar, são os pilares das famílias, são elas que fazem as rendas, que põem os filhos e filhas nas universidades, nas escolas, que promovem efetivamente a construção de um futuro a acontecer. Elas, efetivamente, são o presente e são as promotoras do futuro a acontecer. Elas são a semente desse futuro. Eu costumo dizer, eu sou uma privilegiada porque as minha mãe e a minha avó e as minhas tias jamais imaginariam que uma filha e uma neta estariam um dia na televisão, estaria um dia na rádio.
Eu sinto-me sempre muito grata. Quando não tenho vaidade, sinto gratidão, é diferente. Há uma nobreza enorme que eu aprendi com as minhas mulheres moçambicanas, que é a invisibilidade não significa precariedade e sermos menos fortes. Significa o contrário. Somos de uma força tão grande, tão tamanha, que não precisamos de vir para a rua e barrar que nós existimos, porque nós existimos em tudo e estamos em todo lado.
Isso para mim é a grande confirmação da nossa mulher moçambicana. Quer em Moçambique quer na diáspora. Nós somos a estrutura, portanto nós não precisamos de barrar. Agora precisamos sim de reivindicar quando estas estruturas são questionadas e desafiadas. Isso sim.
Larissa Silva: Eu vou colocar uma última pergunta aqui, depois você fica à vontade se quiser complementar. É mais sobre a sua vivência. Agora você também é professora aqui, tem uma uma vivência acadêmica na Europa, gostaria que você comentasse como é essa memória colonial aqui em Portugal mesmo 50 anos depois dessas das independências. Queria que você comentasse um pouco dessa memória colonial.
Sheila Khan: Nós fizemos um mergulho corajoso e inteligente para percebermos efetivamente onde estamos em termos de maturidade para lidar com a nossa memória colonial, porque ela existe, ela está em todo o lado. Ela pode ser escondida ou colocada do lado, mas quando quando é ferida no seu orgulho e no seu ego ela vem, nós percebemos isso quando falamos sobre a questão dos racismos estruturais, da discriminação, quando olhamos para os meios de comunicação e não vemos diversidade nos meios de comunicação em Portugal.
Nós não vemos diversidade nem nas universidades. Vamos contar pelos dedos da mão, quantos afrodescendentes, africanos temos nas universidades, não vemos no governo. E, portanto, essa memória ainda não foi totalmente mapeada e desmantelada, desconstruída para verdadeiramente percebermos até que ponto é que nós estamos preparados para lidar com ela.
Nós já somos descolonizados, nós já passamos por isso. Nós já somos afrodescendentes, já somos comunidade de brasileiros aqui, já somos comunidades de ucranianos, portugueses, chineses, portugueses, seja lá o que for. Portanto, nós precisamos ainda fazer uma uma arqueologia, um processo de arqueologia à nossa memória e fazer a pergunta que eu acho que é a pergunta mais difícil.
E eu continuo a dizer, como eu disse no outro dia quando estivemos juntas, este não é o tempo das respostas, isto é o tempo das perguntas, que é estamos preparados para assumirmos a responsabilidade de efetivamente estudarmos o estado da arte da nossa maturidade histórica? Essa é a pergunta. E a partir daí depois é criar uma metodologia de pensamento cívico, de cidadania inclusiva, plural, participativa, em que todos podem pensar esta pergunta e não ser esta sondagem da descolonização em que se temos três portugueses que fizeram estudos em Angola e Cabo Verde, não é? Portanto eu acho que nós já demos espaços importantes, sem dúvida, e acho que a o trabalho estético, o trabalho artístico, o trabalho musical, o trabalho científico, o trabalho cívico, o trabalho, este trabalho que estamos a fazer aqui, eu e a Larissa, está efetivamente a fazer a sua abertura, está a fazer aquilo que os agricultores fazem em setembro. Arar a terra, abrir sucos para quando a chuva cair no inverno, na primavera, temos crescimento das plantas, das flores.
Nós estamos a fazer isto, estamos a abrir os fogos. A questão é qual é a profundidade dos furos que nós vamos precisar para efetivamente fazer entrar a água, que é o debate para que depois resulte nessa diversidade colorida de plantas. Não sei se consigo responder melhor.