Asfilófio de Oliveira Filho, mais conhecido como Dom Filó criou o movimento de música black no Rio de Janeiro na década de 1970, mas além deste processo histórico para a cultura da cidade e para o processo de justiça racial, começou também a criar o seu acervo pessoal e da população e da luta negra no Brasil.
Em cada disco que tocava nas festas do Black Rio, ia construindo sua forma de enfrentar a ditadura brasileira, tornando um espaço vivo e de resistência para a população negra. No final dos anos 1970, consegue se exilar nos EUA, em Harlem, Nova Iorque. Passa quase um ano respirando e vivendo aquela cultura toda, forte, bebendo da fonte de Angela Davis, Partido dos Panteras Negras, volta ao Brasil com mais reflexões: “eu volto com a cabeça formada, formada no sentido de implementar aqui uma coisa fundamental, que é exatamente o primeiro pilar que eu considero, que é a memória”.
Nasce então um acervo negro, com imagens, fotos, que o próprio ou colegas registram: “começa ali a história contemporânea dos últimos 50 anos do movimento negro. Eu não tinha nenhuma referência, nem escrita, nem vídeo, ninguém da nossa comunidade. A gente só ouvia falar Frente Negra Brasileira”.
“Na década de 90, a gente teve um outro grande marco também desse acervo, foi a vinda de Nelson Mandela ao Brasil. Era 1991, 92, na oportunidade como fundador e Presidente do Congresso Nacional Africano, recém saído da prisão, ele vem pedir o apoio aos ao movimento negro e aos governantes na época”, Dom Filó lembra que a imprensa tradicional não fez a cobertura do evento, mas o que se tornaria Cultne, estava. Quando Mandela se tornou Presidente da África do Sul, foram esses arquivos que a imprensa foi buscar. Quando Mandela faleceu, também.
Filó sabia o valor da memória, em especial da memória negra. O nome Cultne foi um colega a escrever numa fita, queria dar um nome e ficou essa ideia, que vem de “Cultura Negra”. Nome que ao longo dos anos se tornou ONG, Instituto e hoje é streaming negro, dedicado a memória e a história da população negra. Com conteúdos colaborativos e uma TV própria, a Cultne TV faz cobertura de grandes eventos, tem programas no Brasil e fora, e muita memória.
Confira abaixo trechos da entrevista:
Quem é o Dom Filó?
“Bem, eu tenho eu sou um homem negro de 75 anos. Meu nome é Asfilófio de Oliveira Filho, daí eh, o Filó, né? E eu tenho uma formação em Ciências Exatas. Ciências exatas, aí eu migro para humanas, me apaixono e acabo na comunicação. Eu cheguei a exercer engenharia civil, fiz escola técnica, máquinas e motores, aí fui fazer MBA em gestão e me especializei em gestão esportiva. Fiz também a Escola Superior de Propaganda e Marketing e começo a comunicação nos anos 70, ainda na no período da ditadura, trabalhando no jornal Última Hora aqui no Rio de Janeiro e naquele momento utilizando um pseudônimo de J Black, nós usávamos para driblar o sistema, né? O sistema queria entender quem era J Black que falava mal deles e também um pouquinho da gente, pouquinho só para eles ficarem confusos.”
Carreira na Comunicação
“Tive um período na imprensa escrita, eu e junto com outros companheiros também, também da área de comunicação, parceiros como Carlos Alberto Medeiros e José Reinaldo Marques, os dois também jornalistas. E eu dali passei para a área de televisão, fui trabalhar na na televisão na década de 1980, a partir de um curso na de extensão. Aí eu consegui ter um programa ao vivo diário na TV Rio, canal 13, no Rio de Janeiro. Isso em 1988, já fora do período da ditadura, mas ainda com aqueles resquícios de perseguição e tal. Eu acabei também na rádio, fui fazer rádio. Então, eu tive na rádio, na imprensa escrita, falada e até um determinado momento eu era um rábula.”
Larissa: você já era multimídia antes de existir o conceito multimídia!
“Sim, e eu me considero um rábula do jornalismo porque não havia reconhecimento, porque eu não tinha formação de comunicação.
O pessoal na época não me concebia o registro, uma confusão. Mais tarde eles me reconheceram e tal. Isso já em 2000, 2010. E aí me deram o DRT de jornalismo. Falo isso para justificar o jornalista aí na história, né?”
Juventude e Conscientização Racial
“Eu tive oportunidades de obter conhecimento na década de 70 e além da bolha daquela juventude negra que orbitava os anos 70, perseguição, violência policial, falta de informação e letramento racial super atrasado. Eu digo super atrasado porque o meu veio com 17, 18 anos. E aí quando eu descubro isso tudo, obtive esse conhecimento e achei que ia resolver a situação do mundo, jovem querendo resolver tudo.
Aí eu utilizo a música, eu vou buscar a cultura, etc. Mas utilizo a base da música que levo até hoje. Isso na década de 70. Com a música, eu faço um trabalho interessante, utilizando a música, reunindo a juventude através dos bailes considerados bailes blacks na época. E aí surge um movimento na década de 70 chamado Black Rio e vem a perseguição. Com isso, nós conseguimos construir, também, a minha formação de gestor junto ao meu pai, né?”
Formação e Experiência com o Pai
“Meu pai era foi um um grande empresário, porque ele começou consertando carro na rua e tal, mecânico e conseguiu ter uma agência, depois outra agência e chegou a ter sócios nas primeiras revendedoras de veículos na época e criou um sistema de financiamento único junto com outros companheiro, chamado Crédito Direto, em que eu fui trabalhar aos 15 anos como gestor, porque ele só tinha o quarto ano primário. Então essa visão de gestão, mais a formação de engenheiro e mais o lado de acumulador positivo, que sempre guardava uma peça, pois sabia que ela ia servir lá para outro lugar. E foi assim que eu consegui reunir esse acervo.”
Na década de 70, administrei uma equipe de som como empresa legalizada, o que me permitiu driblar parte da repressão da ditadura. Fui o primeiro produtor negro contratado por uma multinacional (Warner Bros), produzindo artistas como Carlos Dafé e Panda Black Hill.
Com o aumento da repressão, fui exilado — mas “esquecido” pelo sistema — e passei cerca de 8 meses no Harlem (EUA), mergulhando na cultura afro-americana e movimentos como os Panteras Negras. Isso fortaleceu minha consciência racial e política.”
Início do Acervo e Registro Histórico
“Ao voltar ao Brasil, trouxe um equipamento de filmagem que se tornou revolucionário para a comunidade negra. Comecei a registrar eventos do movimento negro, sem nenhuma referência anterior. Junto com parceiros como Carlos Alberto Medeiros, Vick Bebeck e outros, filmávamos em VHS, mesmo sem saber exatamente como usar esse material no futuro.”
Marcos Históricos do Acervo
“A Conferência de Durban nós gravamos a participação da delegação brasileira na conferência que introduziu as ações afirmativas no Brasil. Esse vídeo se tornou referência nacional.
E a visita de Nelson Mandela (1991–92), registramos a passagem de Mandela pelo Brasil, ainda como presidente do Congresso Nacional Africano. Nenhuma mídia deu cobertura — mas nós documentamos tudo. Essas imagens foram as mais utilizadas após sua morte.”
Digitalização e Nascimento da Cultne
“A partir de 2008, com o surgimento do YouTube e a deterioração das fitas, começamos a digitalizar nosso acervo. Contamos com apoio de parceiros brancos e letrados, sensíveis à causa, que ajudaram na recuperação e na criação do nome Cultne (abreviação de “Cultura Negra”).
Durante a pandemia, houve um boom de acessos. Percebemos a necessidade de estrutura e criamos a ONG Instituto Cultural Cultne, com três pilares principais:
Pilar 1 – Memória
Registro sistemático da história negra brasileira, com base no acervo audiovisual acumulado.
Pilar 2 – Entretenimento
Criamos uma TV online com programação 24h, exibida em plataformas como Samsung TV Plus, Roku, Pluto TV e TCL. Somos hoje uma das únicas TVs negras em ambiente de smart TVs no Brasil, rompendo o padrão branco e cisgênero dominante da mídia tradicional.
Pilar 3 – Inteligência e Tecnologia
Estamos desenvolvendo um sistema de busca inteligente com IA, capaz de localizar, por exemplo, “Lélia Gonzalez rindo” nos vídeos. Também fomos reconhecidos com o selo NGO Search, facilitando doações internacionais, especialmente dos EUA.”
Reconhecimento e Arquivos Comunitários
“Recentemente fomos reconhecidos pelo Hiberarquivo, né? Um trabalho muito bacana da Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora e ex-diretora do Arquivo Nacional, que fez essa ponte, porque até então não se tinha noção de que existiam arquivos audiovisuais. Só se pensava em arquivo físico, papel. Então como se classifica? Somos comunidades, então são arquivos comunitários. Sem problema nenhum.”
Origens e Raízes Familiares no Rio de Janeiro
“Minha família por parte de pai é bem matriarcal. Vieram para o Rio de Janeiro nos anos 30, 40, saindo da divisa de Minas com o Rio, ali por São Lourenço. As matriarcas puxaram todo mundo. Meu pai veio como mecânico, conheceu minha mãe — que era empregada doméstica, da Baixada Fluminense, de Magé — aqui no Rio. Casaram e formaram a família.
Tive uma irmã que faleceu com um ano. Eu sou o mais velho. Nasci em 1949. O mundo achava que a capital do Brasil era Buenos Aires — olha que loucura. Mas era a realidade da época.
Meu pai trabalhou pouco tempo na polícia e depois comprou a primeira casa em Rocha, bairro perto do Jacaré, onde me estabeleci. Ali vivi minha infância, adolescência e virei adulto. O Jacaré é minha base.”
Cultura Negra e Ditadura Militar: Resistência e Identidade
“Em 1967, com 18 anos, conheci o universo fora da bolha. O negro tinha que andar com carteira assinada, senão era preso por vadiagem. O racismo era negado, até dentro de casa. Meus pais falavam baixo, usavam estética do colonizador. Mas eu faço parte de uma geração que quebra isso: deixo meu cabelo crescer, afro, começo a buscar conhecimento.
Esse conhecimento vinha da música, das capas de discos, das revistas americanas. Eu tive um carro 0 km aos 18, presente do meu pai. Com isso ganhei o mundo, fui estudar em escola técnica, depois entrei na universidade.
Mas o meu lance sempre foi: o que aprendo, eu devolvo pra minha comunidade. Cobro isso até hoje — muita gente se beneficia das cotas e não devolve nada.”
Memória como Disputa de Poder
“A memória é sim uma disputa de poder. Sempre tivemos esse poder dentro da comunidade, só que oral. Hoje, uso audiovisual como ferramenta para continuar essa tradição.
Na religião de matriz africana, a gente aprende por etapas. Nem tudo pode ou deve ser passado. Mas o que recebo, tenho obrigação de devolver na mesma proporção.
O que eu fiz foi diminuir o gap — a distância de conhecimento. Queria ter chegado a esse estágio aos 35, não aos 75. A tecnologia ajuda nisso. Hoje temos inteligência artificial, internet, tudo para acelerar o processo.”
A importância da luta antirracista ampla
“Precisamos de aliados brancos antirracista. Muitos vêm pela culpa, e tudo bem que venham. A gente precisa saber o que fazer com isso. Porque quanto mais a gente cresce, mais o racismo estrutural aparece.
Temos que ocupar os espaços e provocar uma cultura que nos falta: a da união. A dor do povo negro aqui no Brasil sempre foi individual. Falta uma dor coletiva, como a dos afro-americanos do passado, ou como hoje em Gaza. Isso é o que gera senso coletivo. Aqui, ainda não temos isso.
A ancestralidade é unida. Eu sou guiado por ela. Mas aqui embaixo, o nosso povo ainda não compreendeu isso.”
Diálogos com África e Relações Internacionais
“Tive contato com Angola, Moçambique e os PALOPs na época em que trabalhei no governo federal, em 1995–1996, na área de esportes.
Hoje, tenho relação com parceiros como a GC África, com sede em Londres, e com a Bantumen. Recentemente fizemos a transmissão do prêmio de personalidades negras. O sonho é levar nossa programação audiovisual para os PALOPs, exibindo conteúdo africano e também trocando conteúdo.
Hoje é possível legendar, traduzir, transformar a fala em vários idiomas com tecnologia. Isso já fazemos aqui no Brasil.”
Curadoria e Projetos de Memória Pan-Africana
“Sou curador brasileiro do Museu da Herança Pan-Africana, em Gana. O projeto busca repatriar obras roubadas da África, principalmente da Bélgica, para seus lugares de origem.
Também atuo como curador da exposição sobre a história da Black Music no Brasil até o funk. Foi um sucesso no Rio de Janeiro — de 6 meses virou 1 ano e meio. Agora vamos levá-la para Lille, na França, perto de Paris.”
“A dor nossa sempre foi individual e a gente absorveu essa dor e relaxou com ela. Quando vem uma dor coletiva, a resposta é outra. A gente tem um pouquinho disso no afro-americano lá de trás. Não desse agora não. Esse agora tá em outra. Mas os afro-americanos lá de trás, os campos de algodão, esses aí tinham esse senso coletivo por conta da dor que sofreram, entendeu? Isso daí não é só negro não.