Mulheres, imigrantes e invisíveis

Histórias do cotidiano revelam o contexto social da população feminina negra e imigrante em Lisboa

Por Lina Moscoso, Lisboa.

O racismo deixa marcas indeléveis. Traços profundos que afetam o dia a dia, principalmente de mulheres imigrantes em Portugal que vivem nas periferias. Elas precisam seguir o caminho diário do trabalho, normalmente em direção ao centro de Lisboa, onde trabalham. A vida é uma luta corriqueira que cansa os corpos e a cabeça dessas mulheres. No centro de Lisboa, elas são invisíveis porque chegam, cumprem o seu papel laboral e voltam para as suas casas todos os dias. Não são notadas e, portanto, parece até que não ocupam espaços na cidade e nem na sociedade portuguesa.

O Portal Vozes conversou com três destas mulheres: Elisabete Borges, Sabrina Silva e Claudete Pinto. Conheça suas histórias.

ELISABETE BORGES, portuguesa.

“Eu tenho sentido isso e antes eu não sentia. Tenho quase 50 anos e agora que estou a sentir isso”, afirma Elisabete Borges, 49 anos, portuguesa cujos pais são de origem caboverdiana, presidente da Associação Jangada d’ Emoções, na Tapada das Mercês, zona que pertence à freguesia de Algueirão-Mem Martins, município de Sintra, Portugal. Ela revela que aproveitou a realização de uma peça de teatro em que representa Dona Maria Primeira (rainha de Portugal) com o rosto pintado de pó branco para falar sobre os temas que mais a afetam: saúde mental e racismo. Porém, ainda são temas tabu em Portugal. “E quando eu representei essa peça que eu falei ‘eu quero ser branca’ e repetiu a frase que costumava dizer quando era criança: ‘queria ter o cabelo fino, não queria ter o cabelo carapinha (termo africano para cabelo crespo)’ houve público que riu e eu pensei: esta é uma coisa séria para mim e como é que o público ri?”, indaga.

A invisibilidade era sentida por Elisabete quando trabalhava em Algés, bairro de Lisboa, e precisava se deslocar todos os dias utilizando os transportes públicos. “Quando estás a ir no trem é cada um no seu canto e pessoas a reclamarem da vida. É cada um por si. Ninguém se importa com ninguém”, relata. Ela conta que já aconteceu de se encostar numa pessoa no ônibus e isso ter se tornado um problema. “Já me ocorreu de as pessoas não quererem sentar-se por eu estar no assento”. Além disso, Elisabete narra a história de racismo que sofreu quando estava à procura de trabalho e respondeu a um anúncio de emprego. “Quando eu disse que era negra, ela falou que a vaga já estava ocupada sem saber quem é a pessoa, se é boa ou não”, revela indignada. “A negra tem um rótulo de ladra e é isso que as pessoas vêem. Que o negro é mau caráter”. E continua a contar situações de racismo pelas quais passou. Desta vez aconteceu quando ela e as filhas mudaram-se para a Tapada das Mercês: “Nós viemos morar num prédio onde a maioria dos vizinhos eram brancos. Então havia muitas questões de racismo quando alguém dizia ‘vocês não estão na barraca’ ou quando deixavam cartas escritas a dizer: ‘vocês não estão a ver o bairro. Aqui não é África’”, narra.

Elisabete está desempregada. Não consegue uma recolocação no mercado de trabalho por ter a saúde mental afetada por causa de uma depressão que a acometeu quando tinha 28 anos, bem como por ser mulher negra e filha de imigrantes. Em Portugal, os filhos de imigrantes africanos são imigrantes também e são reconhecidos assim, ou seja, sofrem xenofobia e racismo, mesmo tendo nascido no país. Isso ainda acontece apesar de a legislação ter sofrido alterações em 2020, passando a reconhecer o direito automático da detenção da nacionalidade portuguesa aos filhos de imigrantes, à nascença, que residam em Portugal há pelo menos um ano.

Crise na habitação

Os trabalhos que Elisabete realiza na associação enquanto presidente são voluntários. E as dificuldades não param por aí. Relativamente à habitação, uma crise acomete Portugal desde 2008 e tem se agravado com o aumento da inflação em 2022 e 2023. A demanda pela procura de casas disparou, portanto, em dez anos os preços subiram 80%, e a tendência mantém-se, pressionada por investidores, pelos “Vistos Gold” e pelos nômades digitais que escolhem Portugal para viver por ser mais barato para eles e ter sol o ano inteiro. E assim, conseguir uma casa tornou-se uma dificuldade para os que não têm recursos para investir. Elisabete também sofre na pele a crise da habitação. Apesar de viver na casa da irmã, que mora na França, está preocupada com a possibilidade de a irmã voltar e ela ter que deixar a casa. “Gostaria de ter a minha casa. Ela quando voltar eu vou ter que sair dali e eu não tenho possibilidades ainda para ter a minha casa”, diz.

Outra questão social em Portugal é a dificuldade enfrentada diariamente para quem depende dos transportes públicos para se deslocar ao trabalho. Estão sempre superlotados, deste modo, a questão é que não há frotas suficientes para atender a todos. Os desafios vividos por Elisabete nesse âmbito eram para se deslocar da Tapada das Mercês até Algés, onde trabalhou durante 15 anos, por causa das crises de ansiedade que ela tinha nos transportes públicos. “Eu morando aqui na linha de Sintra e sendo em Lisboa o meu trabalho, quando havia greve tinha que pagar táxi do meu bolso para ir trabalhar. Meu patrão às vezes me dava o dinheiro, mas quando estava chateado não dava. Eu às vezes pagava o dia para ir trabalhar. Os trens estão cheios quando há greve e eu que tenho ansiedade no autocarro e no comboio. Daqui da periferia é muito complicado”, descreve.

Elisabete Borges nasceu em Portugal em 1974, ano da Revolução dos Cravos, que fez a transição do período da Ditadura de Salazar para a democracia. O primeiro lugar onde viveu em Portugal foi no Cacém, distrito de Sintra, e depois na Cova da Moura, bairro periférico de Lisboa. E depois mudou-se para a Tapada das Mercês. Todos os bairros que Elisabete morou são estigmatizados. São lugares onde os pretos filhos de imigrantes ou imigrantes vivem e, portanto, segundo Elisabete, são chamados de bairros sociais. “Quando dizem que Cova da Moura é um bairro cheio de problemas é mentira”. Era lá que ela encontrava acolhimento dos vizinhos. “Quando precisava de um pacote de arroz, de uma cebola, eu sempre tinha. Quando tu vives mesmo na cidade (Lisboa) não há isso. Cada um só pensa no seu umbigo. Não existe solidariedade”, comenta.

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