Por Jamil Chade
A abertura de um escritório da ONU em Moçambique, alcançar igualdade racial no Brasil ou aderir à Convenção sobre Desaparecimento Forçado em Angola. Esses foram alguns dos compromissos assumidos nesta semana pelos países de língua portuguesa, diante dos eventos na ONU marcando os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mas se eles demonstraram um esforço diplomático para sinalizar que estão sintonizados com os apelos por melhorias, todos esses governos são questionados por violações e denunciados por relatores da ONU por graves violações de direitos humanos. Para milhões de pessoas que usam o português como forma de comunicação, a cidadania é ainda uma promessa distante.
Criada sobre as cinzas da Segunda Guerra Mundial, a Declaração de apenas 1,3 mil palavras estabelece os direitos à vida, à liberdade e à segurança, à igualdade perante a lei, à liberdade de expressão, a buscar asilo; ao trabalho, à saúde e à educação.
Para observadores na ONU, os avanços foram claros ao longo de décadas. Em 1900, cerca de 80% das pessoas em todo o mundo viviam na pobreza. Esse número caiu para menos de 10% em 2015. Em 1900, uma pessoa vivia em média 32 anos. Hoje, são mais de 70. Sete em cada dez pessoas eram analfabetas. Agora, são menos de duas.
Mas o esgotamento também passou a ser uma realidade nos últimos anos. “Ao comemorarmos seu 75º aniversário, a Declaração Universal está sendo atacada por todos os lados”, admitiu o secretário-geral da ONU, António Guterres. “Em vez de continuarmos com esse progresso, agora estamos retrocedendo”, lamentou.
Na esperança de revitalizar o documento e seu sentido, o pedido da ONU foi para que governos de todo o mundo usassem a data e trouxessem para Genebra novos compromissos. Entre os países de língua portuguesa, a tarefa foi respondida com anúncios de iniciativas, promessas de ações do estado e mesmo a ratificação de tratados internacionais ainda pendentes.
Angola, por exemplo, usou o palco da comemoração para declarar que assume o compromisso para aderir à Convenção sobre o Desaparecimento Forçado, ampliar o diálogo com relatores da ONU, adotar uma política de educação com foco em direitos humanos, estabelecer parcerias com a sociedade civil e fortalecer as instituições nacionais de direitos humanos.
O governo, porém, está sendo questionado pelos relatores da ONU, justamente por conta de projetos de lei que são considerados como ameaçadores para o espaço cívico e para o trabalho de organizações da sociedade civil.
Já o governo do Brasil anunciou cinco áreas nas quais o país focará suas atenções. Isso inclui combater todas as formas de violência, preconceito, discriminação e intolerância, incluindo a violência associada ao discurso de ódio e extremismo.
O Itamaraty também declarou que se compromete em promover e estabelecer diálogo contínuo e transparente com a sociedade civil, além de adotar o Objeto de Desenvolvimento Sustentável nº 18, com o objetivo de alcançar a igualdade racial por meio de medidas como acesso à educação, saúde, emprego e moradia adequada.
O Brasil também sinalizou que quer implementar um sistema nacional de monitoramento e implementação de recomendações de órgãos internacionais de direitos humanos e avançar no processo de ratificação de tratados internacionais e regionais de direitos humanos, ainda não adotados pelo Brasil.
Num comunicado emitido para marcar os 75 anos da Declaração, a entidade Anistia Internacional não poupou críticas ao Brasil, alertando que “quase oito décadas depois da Declaração Universal, o que vemos no Brasil são políticas públicas de promoção dos direitos humanos que sequer conseguem se aproximar das promessas contidas no documento da primeira metade do século XX”.
A Anistia destaca as falhas nas garantias de direitos daquelas populações historicamente discriminadas, impactando na dignidade, as condições de moradia, alimentação, saúde, educação, assistência social, o direito a cultura, ao meio ambiente saudável e a uma vida sem discriminação.
Segundo Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, é “urgente que o Estado Brasileiro reconheça que tem falhado sistematicamente em assegurar direitos sociais, econômicos, políticos e culturais – o que impacta desproporcionalmente grupos como a população negra, os povos e comunidades tradicionais, as mulheres e a população LGBTQIAP+”.
Já a delegação de Moçambique anunciou que assinará um acordo com Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, permitindo a abertura de um escritório no país a partir de 2024. Maputo ainda sinalizou que irá Ratificar o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre Desaparecimentos Forçados e que se compromete com a criação de uma instituição nacional de direitos humanos.
A promessa, porém, se contrasta com o último informe publicado pela entidade Human Rights Watch e que denuncia a prisão arbitrária por parte das forças de ordem de Moçambique contra qualquer pessoa que proteste pacificamente. O grupo também denuncia novas leis de imprensa que limitam a liberdade de expressão e o trabalho dos jornalistas.
Durante o evento da ONU, outro anúncio foi ainda feito pelo governo de Portugal, que sinalizou que vai determinar que todas as áreas do governo tenham planos para garantir igualdade de gênero, assim como projetos para eliminar a violência com base em orientação sexual.
Lisboa ainda prometeu melhorias nas condições das prisões. Mas permaneceu em silêncio diante das acusações cada vez mais frequentes sobre a xenofobia e discriminação na sociedade.
São Tomé e Príncipe também usou o palco da ONU para anunciar compromissos em garantir acesso à Justiça, além de maior participação política e a implementação de tratados. O governo também indicou sua vontade de realizar uma reforma dos serviços de segurança para que “atendam ao estado de direito”.
A ambições, porém, se contrastam com os últimos informes do Departamento de Estado norte-americano que descreve a situação de direitos humanos no país de uma outra maneira. Washington aponta a existência de “problemas significativos de direitos humanos”, incluindo “assassinatos ilegais ou arbitrárias, inclusive execuções extrajudiciais, tortura ou tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante por parte do governo, corrupção grave do governo; e falta de investigação e responsabilização pela violência de gênero e contra crianças”.
Assim, se o evento na ONU serviu para que governos mostrassem seu compromisso com o documento que serve de bússola moral para a humanidade, a realidade é que seus princípios e aspirações são sonhos distantes para populações inteiras nos países de língua portuguesa.
A conquista da cidadania é, ainda, um ato revolucionário, 75 anos depois da declaração que consolidou o fato de que todos tem o direito a ter direitos.