“Para ter acordo com UE, tem que haver respeito a nossa soberania”, diz Amorim
Por Jamil Chade
Depois de 23 anos de negociações, o acordo entre Mercosul e União Europeia uma vez mais fracassou e não conseguiu ser fechado. O governo brasileiro esperava que o processo pudesse ser concluído neste ano. Mas o posicionamento europeu foi considerado como um obstáculo para que um entendimento fosse anunciado, principalmente ao sinalizar medidas protecionistas contra as exportações agrícolas brasileiras.
Em entrevista ao Portal Vozes, o assessor especial da presidência, Celso Amorim, garante que o processo negociador continuará em 2024. Mas deixa claro que o Brasil não está disposto a aceitar qualquer acordo e nem pagar qualquer preço por ele.
“Vamos trabalhar e vamos ver”, disse. “Mas o que precisamos tirar da cabeça dos brasileiros, que faz parte do espírito de vira-lata, é a ideia de que precisamos de um acordo para ter um selo de qualidade”, alertou.
Para o embaixador, ex-chanceler e ex-ministro da Defesa, o Brasil quer saber quais serão as vantagens da associação com a Europa.
“Temos de ter ganhos reais num acordo, e deve haver respeito a nossa soberania e ao direito internacional”, disse.
Sua principal queixa se refere à proposta dos europeus de punir as exportações brasileiras caso elas causem desmatamento. O documento submetido pela UE irritou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que chegou a classificar a atitude como uma espécie de “colonialismo verde”.
“Não podemos ficar sujeitos a isso”, disse. “Para apaziguar o protecionismo francês, inventaram aquele mecanismo unilateral e automático. Isso é inaceitável”, insistiu Amorim. “Qualquer resquício disso será inaceitável. Agora, no mais, podemos discutir”, admitiu,
O diplomata, porém, alerta que o mundo de 2024 não é o mesmo daquele quando o processo negociador foi lançado, há mais de 20 anos. “A realidade também vai mudando. Estou pessoalmente envolvido nesse debate desde o governo de Itamar Franco”, contou o assessor.
Amorim lembra que a ideia do tratado com a UE tinha como base criar um certo equilíbrio caso um acordo de livre comércio fosse estabelecido entre a América Latina e os EUA, a Alca.
“Acordo com UE era para ter equilíbrio com a Alca. Naquele momento não havia carro elétrico, o computador era classificado como máquina de escrever elétrica”, lembrou.
“Olha como o mundo mudou. Hoje, estamos na era da Inteligência Artificial e a realidade é muito mais complexa”, disse.
Para ele, um “um grande acordo com a UE, pensando em países amigos como Espanha e Portugal, além de Alemanha e França, faz sentido para construir um equilíbrio global”.
“Mas tem que ver se o preço a pagar por esse equilíbrio está distribuído equitativamente”, alertou um dos principais artífices da política externa brasileira.
Parte ainda da criação de um mundo equilibrado, diz Amorim, é a estratégia do Brics de ampliar o uso de moedas locais para o comércio e reduzir a dependência ao dólar. A decisão de seguir por esse caminho foi anunciada em meados do ano pelo bloco composto por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul.
Para ele, é fundamental “não depender exclusivamente do dólar”.
“Não nos interessa uma situação na qual uma mudança de política monetária nos EUA, por razões de política interna, crie um problema para nós”, disse. “Ou que a subida de juros crie um problema artificial para nós. Isso impacta os preços de uma forma que não corresponde à realidade nossa”, constatou.
Segundo ele, portanto, “é muito normal e positivo” que os emergentes busquem saídas. “Mas isso não tem nada de ideológico, não é nada contra o dólar. Se fosse a libra esterlina ou o rublo, teríamos a mesma atitude. Temos de procurar diversificar as suas possibilidades de intermediação financeira”, defendeu.
No caso do dólar, ele alerta que a atitude norte-americana no sentido de aplicação extraterritorial de sua jurisdição, “é algo que incomoda”. Ele se refere ao fato de que uma empresa brasileira sequer pode ter uma operação denominada em dólar em um país sob sanções americanas, sob o risco de ser multada.
“Isso não é possível, não é aceitável. Isso nos obriga a procurar outros refúgios”, completou.