Por Jamil Chade
No centro de Altamira, no Pará, Moises Ribeiro vive uma missão tão fundamental quanto quixotesca. Num camelódromo, entre lojas de roupas e barracas que vendem garrafas com produtos medicinais da floresta com Unha de Gato e Inharé, ele oferece livros.
Ribeiro – ou apenas Moises como é conhecido na cidade – é o único livreiro em uma distância de mil quilômetros na floresta. Nada entre Marabá e Santarém. Mas basta entrar em sua livraria – a Xingu – para ser surpreendido por Maria Firmina dos Reis, Stefan Zweig, Walter Rodney, José Saramago e poetas paraenses.
“A importância de se ter uma livraria aqui é a de dar a oportunidade para que as pessoas possam comprar livros de qualidade, sem que tenham de esperar que eles cheguem em alguns dias pelo correio”, diz o livreiro. “Isso é, acima de tudo, dar uma oportunidade ao conhecimento, à cultura, à escrita e ao conhecimento do mundo”, explicou.
Em suas prateleiras desfilam tanto obras que destrincham os segredos do Brasil como aquelas que exploram questões internacionais. Segundo Moises, não há um perfil único de clientes e sua loja registra uma boa procura por poesia, biografia e romance. Mas também muito sobre a América Latina.
Apesar de estar num local de forte apoio ao bolsonarismo, a livraria conta com um consumidor cativo de obras de autores de esquerda. “O Marxismo vende bem”, disse Moises. “Há um grupo muito interessado”, explicou.
Se o local foi aberto em 2019, Moises ainda batalha para que a população da cidade e da região saibam que ali existe um ponto de encontro e de cultura. “Quero que as pessoais saibam que existe uma livraria” disse.
Apesar de já ter completado quatro anos, o dono do local reconhece que nem todos em Altamira sabem da existência da livraria. “Muita gente ainda não sabe de nossa existência e fica surpreso quando descobre”, disse.
Moises rejeita a tese de que o interesse pelo livro vem desaparecendo. “O público leitor existe. Temos de fazer com que tenham acesso aos livros. Esse é o grande objetivo”, afirmou.
Mas fazer o projeto vingar não é tarefa simples. “Sempre gostei de leitura e sabia que abrir uma livraria não seria fácil. Tinha consciência de que seria um grande desafio”, admitiu. “Já existem muitas dificuldades em grandes cidades para quem quer trabalhar com livros. Imagine no interior do país”, disse.
No caso de Altamira, nem todas as editoras bancam o frete para que os livros cheguem até a cidade. Moises conta que quando se trata de editoras de fora de São Paulo, é ele quem precisa garantir que a obra chegue, o que torna muitas vezes a comercialização quase impossível.
Outro obstáculo é anda a alta taxa de analfabetismo na região. Cerca de 700 mil pessoas não sabem ler nem escrever no Pará, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa vem caindo ao longo dos anos. Mas ela é ainda de 7,4% da população e acima da média nacional, de 5,2%. O índice é bem superior às realidades do Distrito Federal (1,9%), Rio de Janeiro (2,1%) e em São Paulo e Santa Catarina (2,2%).
O que preocupa os pesquisadores é que existe uma característica estrutural: se a população mais jovem está tendo acesso à educação, a taxa de analfabetismo continua sendo elevada entre os adultos, e não há programas para permitir que essa população rompa com essa realidade.
Moises não conta com qualquer tipo de subsídio do estado. Seu único privilégio é o de poder ocupar um box num camelódromo da prefeitura, com um custo mensal de R$ 60,00.
Quando a coluna visitou sua livraria, na semana passada, Moises estava com livros já em caixas. Ele vivia a perspectiva de mudar sua loja de local. Iria ganhar um espaço na Universidade Federal do Pará e, assim, estar mais próximo do público que poderia estar mais interessado em livros, como estudantes, professores e pesquisadores.
“Aqui não é adequado para uma livraria. O publico do camelódromo não está procurando livros”, admitiu.
Sua busca pelo leitor é permanente. Há poucos dias, Moises levou seus livros para a Feira de Literatura Internacional do Xingu, a Flix. A idealizadora da feira, Ivonete Coutinho, conta que o evento foi inicialmente projetado para dar visibilidade a produção Literária da Amazônia paraense, sobretudo, da região da Transamazônica e Xingu.
O evento trouxe a temática “Poética da juventude e suas diversidades culturais” e uma programação com diversas expressões culturais e artísticas regionais, nacionais e internacionais.
“Como professora de literatura da UFPA/ALTAMIRA, percebia que a maioria nossos alunos dos cursos de letras não lia autores amazônicos e também não eram motivados a escreverem”, disse Ivonete.
A cada ano, segundo ele, a FLIX tenta realizar uma maior integração das escolas de ensino médio e fundamental, o contato com o livro e o contato com os autores. “Assim, a FLIX fortalece a leitura e a produção literária e abre espaço para outras formas de conhecimentos e temáticas pautadas no contexto amazônico e na realidade social, geográfica, política, econômica e cultural da Transamazônica e Xingu”, disse.
Mas conscientizar uma população é uma tarefa das mais complexas. Moises conta que, em 2022, a prefeitura de Altamira deu aos professores da cidade um vale de R$ 200,00 para comprar livros. “Um dia, entrou aqui uma professora, acompanhada por sua filha”, contou o livreiro, em um tom de indignação.
“A menina então perguntou para a mãe: para que comprar livro? E a resposta da mãe me surpreendeu. Ela disse que era o prefeito que estava obrigando”, disse Moises.
Na Amazônia, a audácia é ter uma livraria fīsica numa cidade que vive uma tragédia humanitária por conta de uma barragem e num país onde o livro é ainda um produto de luxo. Abrir e manter em funcionamento um local que rompe com a lógica da elite local composta por grileiros e garimpeiros é um ato de coragem.
À beira do Xingu, Moises não vende livros. Oferece cidadania.
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