Projeto realiza escavações na Guiné-Bissau e no Alentejo para investigar as sociedades esclavagistas
Por Lina Moscoso, Lisboa.
O trabalho escravo também aconteceu em Portugal, diferente do que se costuma pensar. A ideia que fazemos da história da escravidão é que apenas nas ex-colônias havia mão-de-obra forçada. O fato foi pesquisado por escavações realizadas pelo projeto financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT), intitulado “Ecologias da liberdade: materialidades da escravidão e pós-emancipação no mundo atlântico”. Trata-se de um projeto de arqueologia interdisciplinar que procura responder a algumas questões, como por exemplo, quais foram os impactos sociais e ambientais da escravidão no mundo Atlântico. O objetivo é investigar a construção da sociedade esclavagista e o que aconteceu quando esse processo foi interrompido.
O projeto teve início em Cacheu, na Guiné-Bissau, onde as escavações decorreram no ano passado junto à antiga Casa Comercial Gouveia, onde está instalado o Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, e já foram encontrados artefatos do início da ocupação portuguesa. Este ano, as escavações estão sendo realizadas em Portugal, no Monte do Vale de Lachique, junto a São Romão do Sado, Alcácer do Sal, no Alentejo, em parceria com a Câmara Municipal de Alcácer do Sal. Essas buscas já mostraram a construção de um monte alentejano no final do século XV que poderia ter trabalho escravo.
O trabalho está composto por um grupo de investigadores das áreas da Arqueologia histórica, mas também especialistas nas áreas científicas Geoarqueologia, Arqueobotânica e Zooarqueologia.
“A sociedade que dependeu da escravatura para se sustentar tem uma arqueologia diferente de uma sociedade onde as pessoas são livres e autônomas. Nós queremos investigar o que aconteceu na construção das sociedades, o que aconteceu com esse processo e o que aconteceu quando o processo foi interrompido”, explica Rui Gomes Coelho, pesquisador da Universidade de Durham, Inglaterra.
O projeto, portanto, investiga o que, a partir de materiais recolhidos, como os sedimentos dos rios, consegue-se detectar no que diz respeito às variações ambientais na região, que tipo de culturas agrícolas existiam, como é que elas desapareceram e qual foi o ritmo que apareceram. Bem como analisar que tipo de plantas que eram cultivadas. “Nós temos a questão ecológica. As sociedades de tipos diferentes têm impactos tecnológicos diferentes, têm ecologias diferentes. Isso gera uma experiência que transforma a paisagem. Gera experiências humanas muito diferentes da forma como os humanos se relacionam e como se relacionam com outros seres vivos”, descreve. Rui acrescenta que esses elementos estão associados com as recomendações históricas que são investigadas por historiadores, mas também com dados de arquivos que documentam a vida das pessoas.
Construção do projeto
Os locais escolhidos para a realização das escavações estiveram no centro de processos de construção de uma sociedade escravista. Segundo a arqueóloga da UNIARQ – Centro de Arqueologia, da Universidade de Lisboa, Sara Simões: “Cacheu era um porto de pessoas escravizadas e também um porto agregado de atividades agrícolas, enquanto que o Alentejo era um local que recebia essas pessoas. No século XV, Portugal começou a traficar pessoas na Guiné que eram levadas para o Alentejo. Por isso decidimos ir para esses dois locais”.
O projeto foi dividido em duas grandes frentes. Por um lado, o trabalho na parte ambiental com recolha de amostras sedimentares no rio na zona das bolanhas da plantação de arroz. Foi feita uma escavação no que é hoje o Memorial da Escravatura do Tráfico Negreiro, que era uma casa comercial de tráfico de escravizados, e depois passou a ser um grande empório comercial de propriedade da Casa Gouveia durante o período colonial, muito marcado pelos trabalhos forçados, como informa Sara. Depois da libertação foi uma loja, Armazéns do Povo, e acabou por ser abandonada até se tornar o Memorial da Escravatura, que hoje funciona também como museu.
Essa parte foi realizada com a Ação para o Desenvolvimento, uma Organização Não Governamental que é parceira do projeto na Guiné-Bissau. “Portanto, conseguimos identificar através dessa escavação alguns dados que queremos conjugar com os dados ambientais, mas depois analisar através da materialidade e através de daquilo que a arqueologia nos permite recolher mais esse lado de análise de compreensão dos impactos sociais e culturais, sócio-econômicos dos diferentes regimes”, narra Sara. Ela acrescenta que foi possível identificar diferentes produções industriais que evidenciam uma ocupação portuguesa de exploração colonial durante as várias fases de ocupação da Casa Gouveia.
Em 2023, o foco do projeto passou a ser a região do Sado. “Lá fizemos a escavação na herdade de um monte do Vale de Lachique também para tentarmos caracterizar essa presença humana e muito do que encontramos foi aquilo que nós já tínhamos algumas ideias, mas que nos era difícil comprovar. Começa a ser uma presença muito efetiva a partir do final do século XV, XVI que corresponde precisamente ao período que se pensa que terão começado a chegar as primeiras populações de escravizados para trabalhar na região”, informa Sara Simões.
As escavações no Vale do Sado também mostraram ocupação romana, porém existe um enorme hiato entre esse espaço de ocupação romana até o século XV.
Em suma, o projeto de investigação resulta de uma parceria entre o Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro de Cacheu e da ONG guineense Ação para o Desenvolvimento, os Centros de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Durham, na Inglaterra. Em Portugal, acontece em parceria com a Câmara Municipal de Alcácer do Sal e com as associações Djass e Batoto Yetu.
Desvalorização
Existem poucos registros documentais relativamente às pessoas escravizadas em Portugal. O site Slave Voyages contabiliza pelo menos 12 milhões de pessoas submetidas ao trabalho escravo em diferentes rotas durante os últimos séculos. Nesse sentido, o projeto intenciona conhecer o cotidiano dessas pessoas.
No entanto, as descobertas do trabalho do “Ecologias da liberdade” foram alvo de desvalorização, de acordo com Rui Coelho. “Sempre foi uma curiosidade. Eu acho que nunca houve ocultação premeditada disto, porque pode ter havido alguma devalorização, minimização daquilo que terá sido o impacto da escravidão”, destaca. Não só pelo fato de ter havido escravização em Portugal, mas também uma desvalorização das contribuições dessas pessoas escravizadas para o país, conforme acrescenta o professor.
Para Sara, há uma negação do Estado português no que diz respeito à presença não só escrava, mas de todo o passado escravocrata, colonial e “de um racismo que é muito presente e é muito atual “. Eu acho que são coisas que se notam até em relação ao nosso trabalho. No momento em que tentamos dirigir o foco para estas questões têm sido muito evidente esta recusa da informação sobre ter havido trabalho escravo em Portugal”, argumenta. Esse país construiu-se a partir de um sistema escravista colonial. Conforme ressalta Sara, a negação existe em todos os setores da sociedade portuguesa, independentemente do grau acadêmico e da classe a que pertencem.
O trabalho que vem sendo realizado por esse projeto já está documentado, na verdade. “O que nos interessa não é nem tanto provar porque já está provado. O que nos interessa é tentar entender a escravidão no contexto da expansão colonial e do projeto colonial ou dos vários projetos coloniais portugueses”, enfatiza Rui Coelho.
Relativamente à ocupação das pessoas escravizadas no Vale de Lachique, Sado, a equipe levantou várias hipóteses. Uma delas é que teriam sido as primeiras escravizadas teriam sido levadas para trabalhar em vários serviços, sobretudo na agricultura.
Os sedimentos recolhidos no rio Sado serão analisados no laboratório e a partir disso é que será possível detectar as transformações ambientais nos últimos milhares de anos.
Comunidades envolvidas
Uma componente muito importante do projeto é a participação das comunidades, tanto na Guiné, como no Alentejo.
As comunidades são ouvidas no que diz respeito às memórias e de histórias ligadas não só à escravatura, mas também ao período colonial; além disso, as associações estão envolvidas em atividades de divulgação. Fora isso, na Guiné-Bissau, a participação das comunidades chega a ser direta, ou seja, nas escavações. Esse mecanismo de envolvimento das comunidades é um investimento do projeto. “Uma das coisas, por exemplo na Guiné-Bissau, que nós estamos a fazer é continuar a tentar investir numa certa formação das pessoas relativamente às atividades de divulgação. Temos produzido vídeos de divulgação. Tivemos, este ano, fotógrafos na escavação no Alentejo. São outras linguagens não acadêmicas direcionadas para o público”, explica Sara.
Parcerias com órgãos brasileiros
Além das comunidades, o projeto fez parcerias com órgãos brasileiros. Guilherme Cirilo, estudante de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Anna Flora Moni, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Brasil, foram convidados para participar do projeto.
“Eu achei muito interessante a proposta porque é diferente das ideias que a gente tem aqui. Vai agregar bastante no meu currículo”, relata Guilherme. O estudante revela que ficou realmente impressionado com o projeto, sobretudo no que diz respeito ao envolvimento da comunidade. “É bem diferente do que a gente trabalha aqui (na UFMG), que é uma das coisas que a gente estava até tentando introduzir agora no laboratório: a arqueologia pública”, comenta.
Guilherme e Flora estiveram durante 28 dias nas escavações do Vale de Lachique, no Alentejo. O processo se deu através de uma comunicação realizada pela equipe do projeto “Ecologias da liberdade: materialidades da escravidão e pós-emancipação no mundo atlântico” disponibilizando duas vagas para que estudantes e/ou profissionais participassem do projeto em Portugal. Através de seleção escolheu-se os dois brasileiros.
Guilherme e Flora encontraram muita cerâmica e metal. “Nós encontramos indícios de ocupação, mas também a gente encontrou cerâmica. Bem como encontramos vestígios romanos”, descreve Guilherme.
O projeto “Ecologias da liberdade, materialidades da escravidão e pós-emancipação no mundo Atlântico” vai durar até o final de 2024.