Crédito foto: AMPE ROGÉRIO/LUSA
O Portal Vozes entrevistou o Dr. Jeremias Agostinho, médico e especialista em saúde pública angolano, para contextualizar o surto de cólera que Angola está a enfrentar desde o início de 2025.
Agostinho conta a situação atual, lembra outros momentos que o país já enfrentou com a cólera e outras doenças graves. Relembra que: “habitualmente nós consideramos a cólera como sendo uma doença muito ligada à pobreza, porque habitualmente está mesmo ligada às populações, elas surgem em populações onde há um deficiente saneamento básico onde as populações não têm acesso a água potável e onde não existem muitos cuidados com os alimentos, desde a produção dos alimentos, por exemplo, o cultivo dos alimentos que é feito com em Angola”.
Angola completa em 2025, 50 anos de independência, mas só em 2002 obteve paz com o fim da guerra civil. Jeremias conta a trajetória do Sistema Nacional de Saúde angolano, desde sua criação e a situação atual do país, onde ainda tem 30% da população ainda sem acesso à saúde.
Também reforça que a solução do país para combater a cólera a curto prazo, é a vacina. O país sofre com muitos problemas estruturais de saneamento básico, acesso à água potável e diz: “A melhor forma que nós temos de controlar o surto é pela vacina. Não temos outra, outras formas vão levar anos e anos para conseguir resolver e nesses anos como é que ficamos? Pois a população vai continuar a beber água suja, continuar a ter um lixo presente, continuar a fazer a defecação ao ar livre, mas vacinados, bem mais vacinados é um contrassenso”.
Confira a entrevista completa:
Quem é o Jeremias Júnior Agostinho?
Eu sou Jeremias Júnior Agostinho, sou angolano, nasci aqui numa das províncias de Angola que nós chamamos de província da Huíla.
Do ponto de vista acadêmico, eu tenho uma licenciatura em Medicina, que fiz na nossa universidade, Universidade Agostinho Neto. Também tenho uma segunda licenciatura em Enfermagem. Tenho mestrado em Saúde Pública, que fiz na Argentina. Um outro mestrado em Medicina, que fiz na Universidade de Lisboa. Estou a fazer um pós -graduação em Economia da Saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública da Nova de Lisboa. Termino agora em maio uma pós-graduação e, a par disso, sou aluno do 55º curso de Administração Hospitalar, também mesmo na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa e estou no último ano do doutoramento em doenças tropicais e saúde global no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa mesmo também.
Aqui em Angola, um pouco do trajeto, eu sou, perdão, esqueci, tenho uma especialidade em pediatria, sou médico pediatra da clínica Multiperfil, é uma clínica da Casa Militar do Presidente da República e eu estou no serviço de urgência.
A par disso, sou professor de Saúde Pública no Instituto Superior Politécnico Alvorecer da Juventude, é um dos institutos que têm cá, e sou também professor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto. Basicamente é isto.
Você vive em Luanda, certo?
Sim, sim.
Fiquei curiosa com a sua ida a Argentina, tinha alguma parceria com a universidade?
Na altura era a única universidade que eu conhecia e que estava a dar formação online. A maior parte eram presenciais. Isto foi em 2008 e só ia para a Argentina para fazer as provas.
Gostaria que você explicasse o que é essa doença cólera, como ela é transmitida, como é que ela reage no organismo, para a gente começar a entender a doença e depois a entender como é que ela está em Angola.
A cólera é uma doença causada por uma bactéria, que nós chamamos de vibrião colérico. Esta bactéria, habitualmente, é transmitida para os seres humanos pelo consumo de água que esteja contaminada ou de alimentos que estejam contaminados.
Quando nós consumimos ou ingerimos um alimento que esteja contaminado por essa bactéria, habitualmente podemos levar cerca de uma semana para começarmos a apresentar os sinais e sintomas da doença, que habitualmente são caracterizados por vômitos bastante profusos, diarreia abundante, fraqueza muscular, febre em alguns casos e que leva à desidratação ou a perda de líquidos de forma muito rápida e que habitualmente se o indivíduo não for atendido rapidamente pode resultar em óbito no espaço inferior a 6 horas, porque o vômito e a diarreia é muito abundante e desidrata rapidamente o doente.
Por isso é que habitualmente nós consideramos a cólera como sendo uma doença muito ligada à pobreza, porque habitualmente está mesmo ligada às populações, elas surgem em populações onde há um deficiente saneamento básico onde as populações não têm acesso a água potável e onde não existem muitos cuidados com os alimentos, desde a produção dos alimentos, por exemplo, o cultivo dos alimentos que é feito com em Angola.
Por acaso, não é o primeiro surto que nós temos de cólera, nós já tivemos outros surtos de cólera no país. Este foi também dos mais intensos. Na altura nós não tínhamos um sistema de saúde que funcionasse. Era o primeiro ano depois de aceitarmos o processo democrático, estávamos a sair de um processo eleitoral muito conturbado e que resultou numa guerra civil. o Estado não tinha todas as condições criadas para conseguir dar conta do surto.
Tivemos um surto menos de 10 anos depois da independência, o nosso sistema de saúde quase não existia. Poucos profissionais, poucas infraestruturas, difícil acesso, porque estávamos mesmo no calor da guerra civil e então foi muito mais difícil, foi mais difícil de controlar, porque o governo não tinha acesso a todas as zonas do país, só tinha acesso a algumas zonas, outras eram controladas pela força que na altura se considerava ser rebelde.
Então, ficou mais complexo. Tivemos um outro surto em 1995. Na altura foram 90 mil casos e mais de 4.500 óbitos. Foi muito superior. Esse foi o surto mais intenso da Cólera que nós tivemos. Depois voltamos a ter em 2011. Em 2011 tivemos um surto também que resultou em 2.284 casos com 181 óbitos. O último que nós tivemos foi em 2016, 2017. Esses aqui foram poucos casos, foram apenas 252 casos e 11 óbitos, que ocorreram nas províncias do norte de Angola, nas províncias de Cabinda, do Zaire e alguns casos em Luanda.
Agora, o surto deste ano é que está a ser mais intenso. Nós tivemos o primeiro caso notificado em janeiro de 2025. O governo deu a conhecer dia 7 de janeiro. Mas nós já suspeitávamos que provavelmente iríamos ter casos de cólera já há algum tempo que vínhamos fazendo pressão ao governo e, de facto, também a Organização Mundial da Saúde deu conta disso, porque em finais de 2023, não causadas pela cólera, mas causadas por outras condições ligadas à pobreza.
Estamos a falar da deficiente alimentação, tínhamos famílias inteiras e ainda temos a consumirem alimentos no lixo, os aterros sanitários que existem no país por causa da situação de pobreza extrema. Nós temos cerca de 43% da população a viver na situação de pobreza, uma pobreza multifatorial. E então tínhamos muitos casos de doença diarreica. As pessoas estavam a consumir tudo o que tinham para consumir. E então iam tendo muitos quadros de diarreia e apareciam nas unidades de saúde.
A partir daí, demos conta que algo não estava bem e que a qualquer altura iríamos ter cólera.Então o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde começaram já a dar formação aos técnicos. Foram dando formação, já criaram um plano de contingência bem estruturado para aguardar pelo surgimento de casos. E porque também os outros países, há países vizinhos com quem nós temos muita troca comercial, que já estavam a ter surtos. Era o caso da Zâmbia, Moçambique e República Democrática do Congo. E a África do Sul também tinha identificado alguns casos. Como o contato pela via aérea e terrestre é muito intenso com esses países. Nós temos voos quase todos os dias e temos, por causa da troca de produtos, também pela via terrestre e marítima, muito frequente.
Então suspeitamos que a qualquer altura, se não importássemos os casos, seriam mesmo casos autóctones. É assim que a gente chama, casos oriundos do país mesmo. E foi o que aconteceu.
A princípio de janeiro de 2025, tivemos os primeiros casos na província de Luanda diagnosticados e de lá para cá a coisa não para. A tendência todos os dias tem sido um aumento tanto no número de casos como no número de pessoas que estão a morrer pela doença.
No dia 12 de abril, em 24 horas já haviam sido registrados 245 novos.Pega rápido. A contaminação é muito rápida, é fecal, oral, e nós temos o problema de entrarmos, neste mês de abril, na fase de chuvas, e chuvas muito intensas, e as chuvas são uma forma de propagação da doença.
Nós estamos a ter muita dificuldade em controlar o surto em si, porque a nível do país estão criadas todas as condições para que o surto continue, independentemente do esforço que o governo vai fazendo, mas há este risco, há estas condições criadas para que o surto continue.
São algumas fraquezas que nós temos a nível do sistema que permitem que a doença continue. Por exemplo, em relação ao acesso à água potável, é uma das nossas fraquezas. Porque a nível do país, nós temos cerca de 55% da população que tem acesso à água potável. Tem acesso à água potável. E o consumo de água, água infectada no caso, é uma das principais formas de transmissão da doença. Então, esta é uma das nossas fraquezas, nós temos cerca de 45% da população que não tem acesso a água potável.
Depois, nós temos o problema do destino dos lixos. Nós temos cidades que os sistemas de recolha e tratamento do lixo ainda não estão abastecidos e aqueles que não funcionam de forma mais adequada. A província da Huíla, por acaso, é uma das províncias que consegue controlar e tratar o lixo, mas Luanda, por exemplo, não consegue.
Nós temos sempre os contentores abarrotados de lixo, temos uma população, temos zonas que nós chamamos de musseques, aí no Brasil vocês chamam de, como é que seria, favelas. Vocês chamam de favelas, nós chamamos de musseques, são as nossas
favelas. Temos zonas muito faveladas, onde a população não tem acesso aos contentores de lixo e deposita o lixo nas chamadas valas, nas grandes valas de drenagem da água das chuvas. E então criamos muitos transtornos.
Em outras zonas, o lixo fica mesmo a céu aberto. Depois, em cada 10 angolanos, nós temos o problema de apenas 4 terem um sistema de saneamento básico funcional, que tem, por exemplo, quartos de banho, que tem latrinas. O resto da população faz defecação ao ar livre. Este é um problema sério. Muitas zonas, às vezes até mesmo no centro da cidade, temos esse problema porque nós não temos balneários públicos para as pessoas entrarem, fazerem necessidades e tudo mais.
Então, o que acontece é que, muitas vezes, mesmo as pessoas que circulam pela cidade, procuram emprego, tratam documentos, quando sentem algum aperto, têm necessidades, algumas vezes são obrigados a encontrar um terreno baldio, um edifício abandonado, onde as pessoas vão e fazem necessidades maiores, necessidades menores. temos muita defecação ao ar livre.
Temos também zonas que o sistema de drenagem dos dejetos vai logo desaguar nas valas de drenagem ou no rio. São zonas que não têm mesmo quarto de banho. Então as pessoas constroem às vezes um quarto de banho, não possuem uma fossa. Os dejetos vão direto para o rio. E é nesse mesmo rio onde as pessoas retiram a água para beber, a água para… é onde fazem a higiene pessoal, é onde lavam a roupa, é onde tiram a água para a higiene da casa. Isto existe em muitas zonas urbanas.
Como resultado, quando chove, o que nós temos é um sistema de drenagem que não funciona. É a água da chuva a acumular-se no mesmo espaço com lixo e fezes. E fica ali parada durante dias e dias quando o sistema de drenagem é por declive, ela vai parar direto no rio. Está ali a água da chuva, a água parada, misturada com lixo, misturada com fezes, que vai parar no rio, e quando não vai parar no rio, vai parar nas valas de drenagem. Só que estas grandes valas de drenagem, elas desaguam no mar, e esta bactéria que causa a cólera, ela sobrevive até cerca de duas semanas no mar, ela tem esta capacidade.
Como resultado, até os banhistas, nós estamos em pleno verão, até os banhistas também correm risco de contaminação quando vão às praias e o sistema de drenagem da cidade, por exemplo, de Luanda, o sistema de drenagem das valas a céu aberto, elas desaguam nas zonas com as praias mais famosas da cidade.
Então, já dá para imaginar como é que é este circuito todo, que nós sabemos muito.
Depois temos alta densidade populacional. Nós temos um rácio de cerca de sete habitantes por família, porque a nossa taxa de natalidade é das maiores do mundo. Então, quando uma pessoa tem cólera numa residência, facilmente vai passar para mais, por causa da alta densidade populacional.
Temos um baixo rendimento econômico das famílias, as famílias não têm dinheiro, a situação econômica em Angola é muito sofrível. Estamos a falar mesmo de famílias, de chefes de famílias, que vamos encontrá-los no contentor de lixo. Nota-se isso pela cidade. A procura de alimentos no lixo, o acesso à informação é difícil.
O sistema de saúde só cobre 70% da população. Temos 30% da população que não tem acesso aos serviços de saúde. Todos esses aspectos são condições que propiciam a transmissão da doença. E são condições que o controle é muito dificultado.
O Estado, quer dizer, nós estamos de caras com um surto, o Estado tem que tomar medidas, mas as medidas que tem que tomar são medidas que não resolvem o problema imediatamente. Não resolvem. Por quê? Porque se nós temos agora 50 anos de independência, 23 anos de paz efetiva, só conseguimos dar água potável, corrente, a 55% da população. Não vamos conseguir em um mês, dois meses, três meses ou um ano, dar acesso a água a outros 45% da população.
E o Estado às vezes pode pensar, vamos garantir água por cisternas, não é? Então vai dar por cisternas. Há zonas que essas próprias cisternas não chegam, porque são guetos, são favelas, são musseques. Não tem… as habitações não estão urbanizadas.
Quer dizer, a Polícia Nacional não entra, as cisternas não chegam, a população não tem acesso à água e então, por mais que o Estado tenha vontade, não consegue, porque fornecer água por cisterna não é sustentável. É uma população muito vasta. Então, as pessoas continuam a estar sujeitas a consumir a água não tratada.
Agora, a questão do saneamento básico, então nem se fala do saneamento básico, quer dizer, não é hoje que se vai demolir as residências para estruturá-las de forma adequada, para construir casas, latrinas, nos musseques, onde as famílias já não tem espaço para construção, são zonas bastante densas.
O Estado fica com muitas dificuldades de poder garantir água potável, a situação econômica do país não é boa, então não consegue garantir alimentação condigna para as famílias.
Uma das formas de prevenção da doença é pela vacina. As vacinas são caras, a disponibilidade internacional de vacinas é muito baixa.
Nós temos uma população de 36 milhões de habitantes e temos 17 das 21 províncias com casos, quer dizer que nós temos aproximadamente 30 milhões de população já em risco, que identificou casos nas suas províncias, e tivemos menos de um milhão de doses de vacinas. Está insustentável.
Às vezes digo, em tom de brincadeira, que o Estado está no CAFRIQUE. Eu não sei se conhece esse termo, CAFRIQUE. CAFRIQUE é um termo que nós usamos em artes marciais, está vendo? É quando alguém vem assim por trás e cruza o braço no pescoço para sufocar. Então, essa é uma técnica chamada de cafrique. Então, o Estado está no cafrique porque está nas Finanças para liberar 15 milhões de dólares para se dar uma melhor resposta à cólera. 15 milhões de dólares. Mas depois a Ministra das Finanças diz que não tem dinheiro. Esses 15 milhões de dólares não vão sair porque não tem dinheiro.
Então, não tem dinheiro para vacina, as medidas não estão a ser tomadas, pede-se à população que colabore, mas é difícil pedir a colaboração de uma população que não tem acesso à água, o lixo está aí consigo, não tem latrinas, porque era rapidamente começar com a distribuição de latrinas portáteis, aquelas móveis, fazer recolha de fezes nessas zonas, mas é muita gente, é muita gente, então por isso é que dizemos que o Estado está sem saída.
Eles (governo) se reuniram disseram que vão mudar a estratégia, mas o problema não é da estratégia que não está boa, a estratégia está bem delineada. É a implementação que está a ser sofrível, porque não há dinheiro, não há meios e os meios que se precisam são muitos para tentar controlar o surto em si. Então, agora estamos…
Eu queria fazer uma pergunta sobre a vacina. Quem é que fabrica hoje em dia? Vocês compram da onde?
Muitas empresas que fabricam a vacina internacionalmente. A nossa está vindo da OMS. É uma parceria que a OMS tem com o governo e então ajudou o governo a conseguir essas doses. Mas internacionalmente, há farmacêuticas como a GSK, a europeia Pfizer, a Nox, que também fabrica vacinas, entre outras.
E a distribuição, o governo angolano que organiza, não é?
Sim, sim. O governo angolano, como é que aplica? O governo tem duas hipóteses, ou adquire por meios próprios aí o custo é elevado e parece que os cofres não estão tão simpáticos ou então via OMS acaba por oferecer, mas a OMS tem poucas doses porque a OMS tem que apoiar outros países que neste momento estão na mesma condição, outros países africanos.
Moçambique não consegue controlar o surto, a epidemia. Tem epidemia de cólera corrente até agora. A República Democrática do Congo também tem, está agora com o surto. Depois temos a Zâmbia, penso que a Zâmbia também tem. Então, são muitos países para ajudar, são muitos países para ajudar. Como resultado, as doses disponíveis não são muitas, são poucas. E poucas doses não ajudam.
E sendo que o problema é estrutural, não é? Que é o que você já contextualizou aqui.
Exato.
A melhor forma que nós temos de controlar o surto é pela vacina. Não temos outra, outras formas vão levar anos e anos para conseguir resolver e nesses anos como é que ficamos? Pois a população vai continuar a beber água suja, continuar a ter um lixo presente, continuar a fazer a defecação ao ar livre, mas vacinados, bem mais vacinados é um contrassenso.
Eu queria entender o tratamento, porque você disse que é muito rápido no início, que em seis horas a pessoa já pode vir a óbito. O tratamento tem que ser muito rápido, então. É só com hidratação? Como é que vocês fazem esse tratamento?
Exatamente. Ele é muito rápido. Dois a seis dias depois da pessoa entrar em contato, vai dar início aos sintomas. Quando dá início aos sintomas, a pessoa tem que começar o tratamento.
O mais importante é, primeiro, desde o momento que a pessoa suspeita que tem alguém em casa que tenha cólera, o mais importante é começar já com a hidratação. Porque a pessoa está a perder muitos líquidos, então começa mesmo o tratamento em casa, hidratando a pessoa com soro. Pode ser o soro caseiro, nós recomendamos isso às pessoas, pode ser o soro caseiro ou então pode ser o soro de hidratação oral, aqueles pacotes com quantidades já bem medidas.
É muito importante a hidratação porque quando se hidrata as pessoas, cerca de oitenta por cento das pessoas têm recuperação garantida. Depois quando tá no centro de tratamento, aí fazemos o tratamento intravenoso com hidratação novamente, mas as pessoas continuam tendo muitas fezes, que caem direto no balde, depois pegam-se no balde e vão se limpando.
Então, faz-se muita hidratação no hospital e fazemos tratamento com antibiótico específico e habitualmente as pessoas recuperam. Se não recuperam do tratamento,
de toda a hidratação e do antibiótico que se faz, quando se chega no hospital já num estado muito grave, com uma desidratação muito grave que às vezes nós nem sequer conseguimos apanhar uma veia para passar a hidratação venosa, que é muito importante nessa fase.
É uma doença que tem tratamento. Se as pessoas chegam cedo, tem tratamento. Aqui no nosso país, especificamente, os doentes chegam muito tarde à unidade de saúde. Primeiro, conforme eu dizia, nós ainda temos 30% da população que não tem acesso aos serviços de saúde. Habitualmente tratam-se ou nos países vizinhos, ou então usando os terapeutas tradicionais. Essas pessoas chegam tarde ao hospital, permanecem muito tempo em casa a tentar fazer o tratamento dos sinais e sintomas com ervas, e quando chegam, muitas vezes já não se consegue fazer muita coisa.
A maior parte dos nossos óbitos ocorrem fora do hospital. Isso também porque nós estamos a falar de musseques, estamos a falar de algumas zonas muito perigosas às vezes, que se o indivíduo começar com os sinais e sintomas de noite, não tem como naquela mesma noite sair de casa para ir à unidade de saúde, por causa dos bandidos.
Se não morrer de cólera, vai morrer por causa dos bandidos. E os nossos serviços de emergência médica ainda não funcionam como tal, em condições para resgatar as pessoas nos seus domicílios. Habitualmente o resgate é mesmo mais na rua. Então tudo isso piora a situação.
Temos muita gente a chegar ou a morrer em casa ou a chegar tarde e muito grave. Na província do Cuanza Norte, por exemplo, no princípio do mês, onde tivemos 15 óbitos em 24 horas. 15 óbitos, aquilo foi uma coisa tão aguda que inclusive a população que reside naquela aldeia abandonou a aldeia, fugiram, abandonaram a aldeia, quando viram que as pessoas estavam a morrer de cólera, eles estavam a ver as pessoas a morrer. E é uma zona de difícil acesso, só se chega de comboio ou então de helicóptero para poder resgatar os doentes. E aquela zona viu-se com um número muito elevado de óbitos num curto espaço de tempo.
Depois foram para outras zonas. Nas zonas onde foram, essas pessoas estavam doentes, algumas estavam contaminadas. Acabaram por contaminar outras pessoas. O governo teve que fazer aí uma cerca, a gente disse, cerca sanitária, mas como é uma zona de muita mata densa, as forças de defesa e segurança não conseguem cobrir toda a mata densa. As populações conhecem os caminhos por onde passaram, que às vezes a própria nossa segurança não consegue, então a comunidade fugiu mesmo.
Queria falar um pouco sobre as doenças tropicais e também de pobreza, que você também estudou. Você estava falando muito sobre tratamento de esgoto, saneamento básico, isso também é um problema para nós no Brasil. Como é que a gente olha para essas doenças que surgem, como é que a gente cuida, sabendo que passa por processos, como você disse, de muita infraestrutura para esses países tão desiguais?
O nosso clima é tropical e então estamos muito suscetíveis às doenças tropicais. Algumas delas negligenciadas, muito frequentes aqui, como é o caso da elefantíase, é o caso da oncocercose ou também chamada de cegueira dos rios. E depois temos a malária, que praticamente está em vias de transformar-se em uma doença negligenciada. É a nossa primeira causa de doença e de morte em Angola. Todos os anos, o país notifica cerca de 10 a 11 milhões de casos de malária, com um número de mortes entre 13 a 16 mil mortes todos os anos. Este é o nosso principal problema.
E está aí uma situação, é que nesse período de verão, muito sol, muita chuva, que nós vamos ter aumento do número de cólera, é um período que, por norma, nós também temos os surtos epidêmicos de malária. É um período em que os casos de malária aumentam muito e quase que pressionam muito os serviços de saúde.
Então, estamos a ter uma dupla pressão da malária e depois também da cólera.
Outra das doenças muito frequentes, que é a segunda maior causa de doença e de morte, é a tuberculose. Todos os anos, com aproximadamente 50 a 60 mil casos, que resultam em cerca de 8 a 9 mil mortes todos os anos.
Depois, doenças como a dengue, nós temos, nessa fase vamos tendo também casos de dengue, mas estamos em números muito diferentes do Brasil. Não temos mais de mil casos todos os anos e habitualmente não temos registros de mortes por dengue. Quer seja dengue, quer seja que é transmitido pelo Aedes, o Aedes aegypti. O Aedes ainda transmite também a febre amarela, que habitualmente nós temos menos de 30 casos sem mortes e transmite também a chikungunya, que também não temos registrado mais deste caso. O zika, também não temos registro de casos do zika vírus, felizmente aqui na nossa região.
O mais comum tem sido mesmo as doenças negligenciadas, já falei de algumas. Depois temos também a, como é que se chama, a doença do sono, a tripanosomiasis, também é muito frequente aqui.
Depois da tripanosomiasis, deixa eu ver mais, as principais causas de morte e doença no nosso país, está mesmo, ponto 1, a malária, ponto 2, tuberculose, ponto 3, acidentes de viação, ponto 4, as doenças respiratórias agudas, estamos aqui a falar da pneumonia e outras. Depois vem as demais doenças diarreicas agudas, causadas.
São essas as principais doenças, mas em números muito elevados e que pressionam mesmo o serviço de saúde.
Porque a saúde é complicada, né? Porque saúde é tudo.
Sobre o acesso à saúde, gostaria que explicasse para as pessoas como é a saúde pública em Angola.
Nós também, à semelhança de Portugal, temos o SNS, que é o Serviço Nacional de Saúde. O nosso Serviço Nacional de Saúde é constituído por três níveis.
Temos o nível primário, onde estão os centros de saúde, os postos de saúde, os hospitais municipais. Depois temos o nível secundário, onde estão os chamados hospitais provinciais e o nível terciário que é constituído pelas instituições de saúde que prestam serviços de saúde mais especializados de caráter mais complexo.
No Ministério da Saúde todos os anos é feito um orçamento e, habitualmente, o nosso sistema de saúde recebe cerca de 2 bilhões de Kwanzas. Nós ainda, conforme dizia, temos cerca de 27 a 30% da população que não tem acesso ao Serviço Nacional de Saúde, vivem em zonas onde nós não encontramos unidades de saúde. Nós, em termos de Serviço Nacional de Saúde, temos muitas dificuldades ainda, melhoramos bastante, melhoramos bastante desde 2002, que é a altura que nós tivemos a paz efetiva.
Nesse momento, o nosso sistema tem cerca de 3 mil unidades de saúde, um déficit de aproximadamente 1.500 unidades. Em termos de recursos humanos, nós temos cerca de 12 a 13 mil médicos para 36 milhões de habitantes, é muito pouco. Isso dá uma média em torno de um médico para cada dois mil habitantes. Temos cerca de 90 mil enfermeiros, cerca de 3 mil técnicos de diagnóstico e terapêutica.
Nós temos hospitais com equipamentos de ponta, nós temos até unidades de saúde com cirurgia robótica, temos uma unidade de saúde com cirurgia robótica. Temos equipamentos de ressonância magnética, de tomografia, entre outros. Mas depois, alguns desses equipamentos não estão a funcionar, porque não tem técnico.
Quer dizer que, pusemos a carroça em frente dos bois. Quer dizer, nós construímos unidades de saúde de terceiro nível, equipadas com equipamentos de ponta, mas sem profissionais de saúde para manusear esses equipamentos. Temos esse déficit.
O que fez com que o Estado entrasse em contato com seus parceiros internacionais e obtivesse um financiamento do Banco Mundial de cerca de 200 milhões de euros para a formação de quadros no setor da saúde, para tentar dar resposta a essa falta gritante de técnicos de saúde.
Habitualmente, independentemente do número de médicos, de enfermeiros e de unidades de saúde que temos, elas não têm sido suficientes para dar resposta à necessidade da população, porque em função dos determinantes de saúde, alimentação, situação econômica, emprego e outros, a população adoece muito.
Então, como adoece muito, pressiona muito os serviços de saúde e os serviços de saúde não conseguem dar resposta à necessidade de saúde da população. Mas a norma é essa, o acesso às unidades de saúde é gratuito para cidadãos nacionais, para cidadãos estrangeiros, os portugueses aqui têm acesso à saúde sem restrições.
Agora aí na Europa, aquelas restrições e aquela tendência para restringir cada vez mais cidadãos estrangeiros, aqui não, aqui basta o indivíduo correr à unidade de saúde, vai ser atendido. Se depois vai ser resolvido, essa é outra história, mas que vai ser atendido, vai ser atendido.
Interessante isso, acho que você explicou bem sobre a questão dos níveis, como é que é o sistema de saúde, e isso tudo é um projeto que nasceu há 50 anos ou foi após a Guerra Civil?
Não, foi logo depois da independência que foi se construindo. O SNS foi logo depois da independência. Antes da independência, nós tínhamos profissionais de saúde só portugueses, em sua maioria. Nacionais eram menos de 2%.
Logo deu-se a independência, houve fuga dos médicos, enfermeiros, de quase todos os profissionais de saúde, regressaram a Portugal e entramos numa falência que levou a uma crise sanitária terrível. E até formar a universidade…A universidade foi criada nos anos 70. A primeira universidade foi criada mesmo nos anos 70, a primeira faculdade de medicina, porque antes disso os médicos eram formados mesmo em Portugal, e Portugal habitualmente mandava para a colónia, que era Angola, os profissionais menos competentes, os aprendizes de médicos, os maqueiros, que lá eram médicos, os enfermeiros que postularam eram considerados médicos. Aquela força de trabalho menos qualificada é a que eles mandavam.
Então, com a independência, deu-se uma falência gritante do sistema de saúde, o país teve que recorrer a Cuba, Cuba auxiliou, mas logo depois, alguns anos depois, entramos numa guerra civil que levou ao encerramento das faculdades que já existiam, faculdades de medicina, tanto que até 2002 só tínhamos uma faculdade de medicina em todo o país.
Só depois de 2002 é que abriram mais e hoje temos sete faculdades de medicina, formam-se cerca de mil médicos todos os anos. Ainda é um número bastante reduzido, muito reduzido. Com esta velocidade nós não vamos conseguir atingir o rácio médico-população nem nos próximos 200 anos. Temos que acelerar mais a formação.
Nós aqui, 80% dos médicos estão na capital, Luanda. Temos províncias que não tem nem sequer um médico especialista.