A Casa do Brasil de Lisboa afirma que a reestruturação do SEF foi realizada sem a participação da sociedade civil
Por LIna Moscoso, Lisboa
O Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF) e o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) foram extintos em outubro de 2023, o que deu lugar à Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA). Na verdade, as funções do SEF serão transferidas para sete organismos. A AIMA assumiu as competências administrativas de emissão de documentos para estrangeiros junto com o Instituto de Registo e Notariado (IRN). As funções de controle de fronteiras passaram para a Polícia de Segurança Pública (PSP), a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia Judiciária (PJ). Para dar conta de todas as funções, foi ainda criada a Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros, que vai funcionar sob a alçada do secretário-geral do Sistema de Segurança Interna e será responsável pela coordenação da atuação das polícias entre si e com os outros órgãos: IRN e a AIMA.
A PSP vai vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras aeroportuárias e ainda ser responsável pela gestão dos centros de instalação temporária existentes nos aeroportos. A GNR controlará as fronteiras marítimas e terrestres e a PJ vai investigar a imigração ilegal e o tráfico de pessoas.
Números
A AIMA, que começou a atuar formalmente em 29 de outubro de 2023, herdou 327 mil processos de pedidos de autorização de residência, de acordo com os dados divulgados pelo Ministério da Administração Interna (MAI). Esse número equivale a mais que o dobro do número de títulos concedidos em todo o ano de 2022, quando 143.081 pessoas receberam o documento de autorização de residência.
O objetivo da extinção do SEF foi a separação entre as funções policiais e as funções de autorização de documentação de imigrantes que estava prevista no programa do anterior Governo do Partido Socialista. No entanto, a morte de um cidadão ucraniano nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa impulsionou a reestruturação dos serviços, anunciada pelo ex-ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. A extinção do SEF foi aprovada na Assembleia da República a 22 de outubro de 2021, mas adiada até maio de 2022, porém, em abril de 2022, o governo postergou as mudanças pela segunda vez, até a criação da Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA), primeiro nome dado ao órgão que depois passou a ser chamado de Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA).
Para a presidente da Casa do Brasil de Lisboa (CBL), associação civil criada em 1992 para apoiar os imigrantes brasileiros em Portugal, Cyntia de Paula, a extinção do SEF foi uma grande mudança, mais do que na política, na visão de como Portugal encara as questões da imigração. “Para nós a maior mudança é essa transformação de onde nós tratamos os nossos documentos não ser numa polícia. Acho que retirar esse caráter policial de um documento de identificação que somos obrigados e obrigadas a ter, politicamente falando da pessoa migrante como um sujeito de direito, é a transformação que já deveria ter sido feita há muito tempo, mas comemoramos agora essa mudança”, destaca.
Por outro lado, a Casa do Brasil assistiu e acompanhou, de forma muito negativa, como o processo de reestruturação do SEF foi feito. “Ou seja, comemoramos as mudanças que são fundamentais e são frutos de uma luta da sociedade civil, das associações que lutam há muito tempo para que essa componente não seja tratada por um órgão policial porque migração não é crime e as pessoas não podem ser criminalizadas pela decisão de migrar”, aponta. Mas, mesmo com a concretização das mudanças é preciso questionar, conforme argumenta Cyntia. “O processo de destituição do ACM e do SEF foi feito sem nenhuma participação da sociedade, das associações e das comunidades”.
Participação da sociedade civil
A presidente revela que seria extremamente necessária a participação da sociedade civil no sentido de ser um processo participativo em que os imigrantes pudessem trazer a sua experiência de vida e de luta diária. “São pessoas, nós não estamos a falar de números, nós estamos a falar de histórias de vida que entram todos os dias pela porta da Casa do Brasil e pela porta de tantas outras organizações”, acrescenta.
A Casa do Brasil de Lisboa vê com alguma preocupação o fato de as funções de fronteira ficarem com a PSP e com a GNR. Já no que concerne à questão da Polícia Judiciária, Cyntia acha que é importante esse órgão assumir as questões da investigação de crimes.
De um modo geral, foi muito positivo, mas falta comunicação efetiva, conforme a presidente da CBL. “Eu acho que por um lado todo esse movimento que estamos a viver de transformação na política migratória, como se enxerga, como se executa e como se vê a pessoa migrante em Portugal. Historicamente, Portugal é um país que tem boas leis e tem boas iniciativas para a garantia dos direitos das pessoas imigrantes, por outro lado, na prática isso não é assim”, diz.
Uma das dificuldades centra-se no campo do trabalho. A mão de obra oriunda dos países de língua portuguesa da África, do Brasil e da Ásia ocupa vagas de trabalho mais precarizadas, como os serviços de entrega, restauração (cadeias de restaurantes) e na construção civil, por exemplo. Cyntia comenta que a Casa do Brasil escuta relatos sobre essas dificuldades diariamente.
Outro problema é a contratação de pessoas para agilizar o andamento dos processos de pedidos de residência. Mas, apesar disso tudo, a presidente considera que Portugal até aqui teve posturas mais positivas no sentido da construção de leis da criação de políticas públicas para os imigrantes, como referido acima.
Vistos CPLP
Antes das mudanças ocorridas em outubro de 2023, entrou em vigor, em março deste ano, a lei que concede a autorização de residência “automática” para imigrantes do Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, os chamados vistos CPLP em que pessoas nacionais da Comunidade de Países de Língua Portuguesa podem obter a autorização de residência em Portugal online.
Envolta em polêmicas, a lei dos vistos CPLP suscitou questionamentos por parte da Comissão Europeia por causa do modelo de documento adotado, ou seja, Portugal “não cumpriu as suas obrigações no âmbito do regulamento 1030/2002, que estabelece um modelo uniforme para o título de residência para os nacionais dos países terceiros”, de acordo com a Comissão Europeia.
Além disso, a polêmica girou em torno da circulação das pessoas com visto CPLP no espaço Schengen – área composta por 27 países que aboliram passaportes e controles de fronteiras. Os vistos CPLP, de fato, não permitem essa circulação porque é uma autorização de residência emitida aos cidadãos nacionais de Estados onde esteja em vigor o Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP e que confere o direito de residência em Portugal.
Relativamente ao tema dos vistos CPLP, a presidente da Casa do Brasil questiona também a forma como o processo foi feito. “Houve uma alteração Legislativa e que permitiu que as pessoas pudessem ter a sua autorização de residência CPLP, mas como tudo nesse país também é feito sem a participação das pessoas envolvidas, as associações também não foram convidadas, nem as pessoas migrantes para participar desse processo de debate de como poderia ser a implementação dessa autorização de residência que atinge os falantes de língua portuguesa”, narra. Cyntia critica a forma como a lei foi divulgada para as pessoas, sem muita informação, o que fez com que muitos imigrantes que já tinham manifestação de interesse e estavam à espera de serem chamados para o atendimento para receber a autorização de residência foram induzidas por um primeiro comunicado que foi feito de órgãos do Governo do Estado. O ACM divulgou que a autorização de residência permitiria a livre circulação no espaço Schengen. “O que acontece é que não permite, só que a informação de que não permite só veio depois de grande maioria das pessoas, inclusive a Casa do Brasil, fazer a divulgação da informação que veio de um órgão oficial”.
Houve um grande sentimento de que as pessoas foram enganadas, segundo a presidente, pelo fato de as informações que foram divulgadas não serem as reais relativamente à circulação do espaço Schengen.
A crítica recai também sobre o tipo de documento adotado e que foi questionado pela Comissão Europeia. Cyntia de Paula revela que as pessoas que pediam a autorização de residência CPLP recebiam um PDF impresso sem fotografia, ao invés de um cartão de residência, “que é o documento mais esperado para pessoa imigrante e reconhecido pelo sistema PRADO da União Europeia”. De acordo com a presidente, o sistema não reconhece esse documento ainda de forma igualitária com as outras autorizações de residência. “Então nós ainda acompanhamos as pessoas que vão no trabalho e a entidade empregadora não reconhece aquele documento. Estamos num processo de fazer com que o sistema reconheça aquele documento”, frisa.
Sobre o funcionamento da nova agência, a presidente da Casa do Brasil revela que as associações ainda não foram informadas sobre os processos, incluindo os vistos CPLP e os atendimentos.
AIMA Spot
No que concerne aos atendimentos, a Casa do Brasil poderá passar a ser uma instituição enquadrada na Portaria n.º 324-A/2023, de 27 de outubro, da AIMA, que prevê que o organismo pode dispor de espaços AIMA Spot, unidades orgânicas territorialmente desconcentradas no âmbito dos serviços prestados presencialmente aos seus utentes. Ou seja, poderá estender os seus atendimentos para o público de outros países, tendo em vista que a associação já recebe muitos pedidos de pessoas dos países de língua portuguesa e da América Latina.
No entanto, conforme Cyntia de Paula, o regulamento foi publicado, mas as associações não receberam toda a informação necessária. “Ter polos da AIMA descentralizados e que as associações e outras entidades tenham esses polos, que vão chamar pequenos polos AIMA Spot para criar um serviço proximidade num primeiro momento nos parece algo bacana, de complemento ao nosso trabalho. Por outro lado, nós precisamos de informações muito mais profundas sobre como isso vai funcionar. Qual é o financiamento? A nossa grande questão é se vai ser um serviço terceirizado em que as associações farão um serviço que tem que ser do Estado, mas com os recursos da própria associação e as pessoas que já vivem em situação precária. Então é isso que precisa ser debatido”, observa.
Os atendimentos da Casa do Brasil a pessoas dos países de língua portuguesa da África e da Ásia (Timor Leste) têm aumentado. “Estão cada vez mais presentes pessoas de outras nacionalidades e não só a comunidade brasileira na Casa do Brasil, o que eu acho que é maravilhoso, porque é algo que a gente também sempre quis, mas claro que continuaremos sendo um polo da nossa comunidade brasileira. No entanto, que a casa possa ser também um espaço de luta pelo direito de migrar e de informação fidedigna de trabalho para todas as pessoas”, enfatiza.
A CBL realizou 2.159 atendimentos no geral, e 1.483 pessoas, em 2022. Dessas, 857 mulheres, 613 homens e 13 sem gênero identificado.
Renovação automática
Dentre as alterações introduzidas pelo governo português após a instituição da AIMA está a prorrogação automática de visto de permanência ou de residência de imigrantes da CPLP. A regra vale para as pessoas que não têm registo criminal. O decreto regulamentar foi aprovado no início de dezembro de 2023, mas ainda depende de promulgação do presidente de Portugal.
Segundo a presidente da Casa do Brasil de Lisboa, a grande expectativa em relação aos vistos da CPLP é se na renovação vai ser emitido o cartão de residência que é reconhecido pelo sistema PRADO e que “a falha seja corrigida”.