O Portal Vozes entrevistou Leosmar Terena, ativista ambiental, agricultor agroecológico, biólogo, professor, indígena no povo Terena, em Mato Grosso do Sul, Brasil.
Leosmar compartilha a história de luta e resistência do seu povo e compartilha suas histórias, vivências e opiniões sobre os temas atuais de sustentabilidade, agricultura agroecológica, como Mercado de Carbono, a COP 30 que será no Brasil este ano e a resistência na terra Cachoeirinha.
“Hoje, se nós temos aqui uma dificuldade de produção de alimentos, nós entendemos que é porque o Estado brasileiro nos impôs sementes transgênicas, nos impôs o pacote tecnológico da Revolução Verde, nos impõe ideologias mercantilistas, projetos desenvolvimentistas”.
Quem é o Leosmar Terena?
Meu nome é Leosmar Terena, sou da etnia Terena, aqui da Terra Indígena Cachoeirinha, aqui do Pantanal, do Mato Grosso do Sul.
Sou professor também, tenho formação acadêmica na área da biologia. Sou um ativista ambiental e sou agricultor agroecológico.
E estive no Ministério dos Povos Indígenas recentemente na função de coordenador geral de promoção do Bem Viver Indígena.
Para a gente explicar, você já disse onde é que do Mato Grosso, no Pantanal, mas queria que você falasse do povo Terena..
Então, o povo Terena é um dos povos indígenas aqui do Mato Grosso do Sul. O Mato Grosso do Sul é um estado que detém a terceira maior população indígena do país. São mais de 116 mil indígenas aqui pertencentes a seis etnias, a seis povos indígenas diferentes.
O povo Terena é do tronco linguístico Aruak e na literatura acadêmica, o povo Terena é reconhecido como exímio agricultor, como produtores de alimentos, são reconhecidos por terem desenvolvido ao longo da sua história tecnologias muito sofisticadas de produção de alimentos, de manejo do solo, das águas, das matas, tanto que, na explicação da nossa origem, já tem uma relação muito forte com a agricultura.
Então, não sei se cabe a gente contar um pouco, rapidamente, dessa história de criação do povo terena. Quando nos perguntam de onde nós viemos, nós falamos que viemos do buraco, que nós acreditamos que em um dado momento da história, um homem muito grande chamado Oreka’yuvakae estava caminhando pela mata e de repente ele avistou o bem-te-vi olhando fixamente para o chão, muito assustado.
Então ele viu que o bem-te-vi estava olhando para um amontoado de folhas, de galhos, para uma serrapilheira e quando ele tirou todo esse material, tinha um buraco, e lá estavam os Terena, todos nus, com frio, então o Oreka’yuvakae retirou os Terena do buraco e deu semente para os Terena, deu semente de milho, de feijão, de abóbora, de arroz e ensinou os Terena a cultivar a terra, a plantar comida. Hoje isso explica por que os terrenos são considerados agricultores, têm essa aptidão, têm todo esse vasto conhecimento.
É uma característica muito marcante, a agricultura para os Terena, porque também a agricultura, ela não é só composta por técnicas, mas também por uma interdependência de dimensões espirituais, sociais, cosmológicas, econômicas, então são várias dimensões que envolvem esse mundo da agricultura. E aí surge o povo Terena.
E o povo Terena hoje está aqui no Mato Grosso do Sul, tem povo Terena também em São Paulo, em Mato Grosso. E aqui na terra indígena onde eu moro, muitas pessoas são falantes ainda, dominam a língua materna, o Tereno. Diferente de muitos povos já do Mato Grosso do Sul, por conta de fatores históricos que nós conhecemos, da colonização, essas etnias foram perdendo a sua língua materna. Mas ainda aqui na terra indígena Cachoeirinha, muitas pessoas ainda dominam a língua Terena.
Hoje você trabalha com outros projetos, mas quando volta para aí, você ainda tem o seu cultivo…
Isso mesmo. Embora a gente tenha muitos desafios hoje para a manutenção dessa prática agrícola tradicional, da questão das ameaças ambientais, dos agrotóxicos, que estão sendo aplicados no entorno das terras indígenas, dos empreendimentos agropecuários, nas fazendas, as mudanças climáticas, as instabilidades de chuva que se tem hoje, por conta de toda essa depredação que teve, e isso reflete diretamente, impõe maiores desafios para a produção de alimentos, mas ainda assim o povo Terena vem cultivando a sua agricultura.
O povo Terena no ano passado, recebeu, através da organização Caianas, a qual estou vinculado também, um reconhecimento internacional da Organização das Nações Unidas, por conta desse movimento de preservação da prática agrícola, seguindo e valorizando os princípios da agricultura ancestral.
A terra indígena cachoeirinha possui um título, pertencem ao povo, qual é a situação do território?
Aqui a terra indígena Cachoeirinha, ela já foi reconhecida, já tem um laudo antropológico, que define os limites do território ancestral Terena, aqui da terra indígena, são reconhecidos como terra indígena Terena 36 mil hectares, que correspondem à terra indígena, só que está em litígio, ainda está em processo de homologação.
E desses 36 mil reconhecidos, por esses laudos antropológico, arqueológico, sociológico já reconhecidos pela justiça brasileira, apenas em torno de 6 mil estão sob o usufruto do nosso povo, aqui tem em torno de 5 mil pessoas. Os outros 30 mil hectares ainda estão em posse de latifundiários, a serviço de atividades de alto impacto ambiental, de empreendimentos agropecuários, plantio de soja em larga escala, pastagem.
Então, nós estamos na luta, nós estamos agora no estágio onde estão sendo colocados os marcos físicos para delimitar esses 36 mil hectares. Ano passado, iniciou o processo de fixação desses marcos físicos mas que foi interrompido porque um dos fazendeiros, um fazendeiro muito bem conhecido aqui no Mato Grosso do Sul, impetrou na justiça uma ação e conseguiu interromper esse processo e nós então continuamos na luta para ver se nós conseguimos a continuidade de fixação dos marcos físicos e depois é mais uma luta também para a gente conseguir a homologação, que é um dos estágios finais já do processo de regularização fundiária.
Você já citou a organização Caianas, gostaria que nos contasse o trabalho que exercem aí no território.
Estou desde a idealização dessa organização jurídica, que começou em 2012.
O próprio nome Caianas com C, é um acrônimo de Kayanas com K e com Y. Kayanas com K e com Y, ela se refere a um segmento tradicional da estrutura organizacional do povo Terena, que faz referência ao segmento dos sábios. Kayá, na língua Terena, é cérebro. Então, Kayanas são os pensadores. Então, dentro da organização do povo Terena, tem um segmento dos Kayanas, que são aquelas pessoas que têm a atribuição de enxergar o futuro, de construir respostas para os desafios da comunidade.
Quando se discutiu um nome para este movimento, os anciões, que são os nossos sábios, disseram, nós somos Kayanas, porque a gente está preocupado com o futuro, nós estamos pensando no futuro então nós somos os Kayanas e então Kayanas com com K e com Y e nós fizemos um exercício de querer ter uma sigla que pudesse ser traduzida depois cada letra traduzida. Mudamos a grafia de Kayanas com K e Y para Caianas com C e com I.
Ficou Coletivo Ambientalista Indígena de Ação para a Natureza, Agroecologia e Sustentabilidade. Mas Caianas com C e com I é uma referência a Kaianas com K e com Y, que é o segmento dos pensadores. E a Caianas se tornou uma personalidade jurídica após a finalização do projeto GATI (Projeto Gestão Ambiental e Territorial Indígena) que foi um projeto piloto da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, a PNGAT, que é assegurada pelo Decreto 7.747, de 5 de junho de 2012. Esse decreto, então, institui essa política que foi construída pelo movimento indígena brasileiro.
O projeto GATI, piloto dessa política, foi implementado em 32 terras indígenas no Brasil e a terra indígena Cachoeirinha era uma das áreas experimentais do projeto GATI. Aqui começou a se desenvolver, na terra indígena Cachoeirinha, iniciativas voltadas principalmente para a produção de alimentos, para a agricultura, para sistemas etno-agroflorestais, porque a comunidade percebeu que o projeto era uma oportunidade para fortalecer sua autonomia produtiva, fortalecer a conservação das sementes ancestrais, das etnovariedades ancestrais. Então, o projeto iniciou em 2012, a implementação prática do projeto, GAT, iniciou em 2012 e em 2015 estava no processo de encerramento, então as famílias envolvidas no projeto viram que era importante uma organização jurídica para dar continuidade nas ações que estavam em curso.
E a Caianas hoje percebendo a realidade de que o contexto atual é fruto de um processo sistêmico do Estado brasileiro, então a Caianas pensou que para responder a esses desafios era importante pensar ações articuladas, convergentes e sistêmicas também.
Hoje, se nós temos aqui uma dificuldade de produção de alimentos, nós entendemos que é porque o Estado brasileiro nos impôs sementes transgênicas, nos impôs o pacote tecnológico da Revolução Verde, nos impõe ideologias mercantilistas, projetos desenvolvimentistas.
Então, para a gente responder, desconstruir essa mentalidade, é preciso a gente pensar ações estratégicas. Hoje, a organização Caianas, ela trabalha com várias linhas de ações, focado em formação de jovens, focado na inserção da etnoagroecologia Terena no contexto escolar, em séries iniciais, focado na espiritualidade tradicional, na etnomedicina, em tecnologias, na valorização dos saberes tradicionais também, da ciência Terena, de manejo do solo. Hoje, a organização Caianas trabalha esse conjunto de ações que se convergem.
E também nós recebemos estudantes indígenas que estão na universidade para desenvolver os seus estágios na organização Caianas. E esses alunos vêm, desenvolvem estágio, desenvolvem suas pesquisas na Caianas, defendem seus trabalhos de conclusão de curso, constroem seus trabalhos de conclusão de curso na organização.
E eles também aprendem a valorizar a ciência tradicional e também muitas vezes acabam reconhecendo que nem tudo aquilo que você aprende na universidade é aplicável nas terras indígenas, porque são tecnologias que não estão concatenadas com a filosofia de vida dos povos indígenas. Então, às vezes, uma tecnologia acadêmica, ela pode, implementada na terra indígena, aos povos indígenas, ela pode continuar aprisionando ainda mais o nosso povo.
Então, a gente faz esse exercício de reflexão com os jovens indígenas, para terem esse cuidado também. E também de valorizar a ciência do nosso povo, a ciência tradicional do nosso povo.
Além dessas ações, nós temos agora, mais recentemente, estamos trabalhando com a produção agroecológica de galinha caipira, de hortaliças. E agora nós vamos instalar aqui na terra indígena Cachoeirinha, será a primeira terra indígena onde terá uma estação meteorológica, que vai ser implantada pela organização Caianas, porque nós queremos medir diariamente a temperatura, a umidade do território, o vento, o índice de chuva.
Queremos fazer o levantamento constante, diário, para que ao longo do tempo nós tenhamos condições de ter um conjunto de informações para demonstrar também o quanto as mudanças climáticas estão afetando a nossa terra indígena. Esse projeto vai começar e a Cachoeirinha será a primeira terra indígena onde terá uma estação meteorológica.
E agora a gente também está numa discussão de construção de uma rádio comunitária para que seja também um instrumento de formação. Porque nós percebemos que a Caianas deve contribuir com as escolas na busca pela valorização da nossa ciência, de discutir a questão territorial, de discutir a valorização da nossa ciência, de discutir a questão territorial, de discutir a valorização da língua, discussão da espiritualidade.
Então a gente não vê hoje, por exemplo, nosso líder espiritual no contexto escolar, porque na matriz curricular não existe um componente que trata da espiritualidade, mesmo, sendo uma dimensão importante no sistema de vida do povo Terena. Então a gente precisa fazer um processo formativo complementar ao ensino escolar. A rádio comunitária, ela será um instrumento de formação também, porque pela rádio nós queremos fazer uma produção, uma produção de podcast falando sobre a questão ambiental, sobre a questão do território, falando sobre a questão da espiritualidade, da etnomedicina terrena, das sementes.
A gente quer que a rádio comunitária seja mais uma ferramenta de formação, também, como mais um mecanismo também estratégico dentro desse processo sistêmico que a Caianas acredita.
Estamos agora construindo Centro de Formação Kayanás e aí é Kayanás com K e com Y e não com C. É Kayanas com conceito de formação é um espaço para formação de sábios terena, então nós vamos lá nós temos nesse espaço um barracão, que é um onde a gente faz os nossos encontros. Nós temos a casa de reza e de canto já, então já temos esse espaço. Esse espaço fica no limite da terra indígena, porque os anciões pediram que fosse um espaço distante da área de habitação, porque eles queriam estar mais em contato com a natureza, ter um lugar mais silencioso e assim, com condições melhores para fazer um processo formativo.
Ali é a sede da Caianas. Nós estamos estruturando. E agora, a gente conseguiu um apoio para fazer um viveiro lá também e a nossa ideia é cultivar espécies medicinais terenas nesse espaço. Então, nós vamos estruturar esse espaço, porque é lá que a gente quer fazer um contraponto. Um contraponto não, mas uma complementação à formação que as crianças e os jovens estão recebendo no espaço escolar.
Como eu disse, o sistema de educação tradicional Terena ultrapassa os limites das paredes escolares. Então, lá, a criança, o jovem, vai aprender sobre medicina tradicional, sobre espiritualidade Terena, sobre cosmologia Terena, histórias Terena, sobre roças Terena, então, e aí outros cursos também de beneficiamentos de produtos do Cerrado, do Pantanal, empreendedorismo dentro de uma perspectiva indígena, então a gente quer um espaço de formação, aprender a pescar, né, você preparar um anzol, você preparar, saber pescar, aprender a caçar, isso é educação indígena, educação Terena, aprender a plantar, aprender a fazer a leitura da lua, entendeu, da chuva, então esse vai ser um onde consta “espaço de formação Caianas,” substituir por Centro de Formação Kayanás, para formar sábios Terena.
Esse é um projeto que estamos aí, um desafio, mas temos avançado muito já.
Vocês conseguem financiamento por projeto? Como é que funciona a arrecadação?
A gente fica pesquisando os editais. Quando os editais abrem, a gente submete uma proposta. E aí a gente vai avançando. Então, agora tem uma previsão. Lá no Centro de Informação Caianas, conseguimos um apoio do Instituto Ibirapitanga para construir uma cozinha. Então, a gente já tem um barracão, temos uma casa de canto e reza, já temos apoio para construir o viveiro, e agora a gente tem um apoio também para construir a cozinha. Então, essa cozinha também vai ser estruturada pensando tanto de preparar o alimento para as reuniões, para as formações, mas para fazer o beneficiamento processamento de frutos do Cerrado do Pantanal e construir outras possibilidades de renda também, conciliar renda com conservação do Pantanal, do Cerrado é então essa ideia da cozinha.
E assim a gente vai avançando aos poucos a gente não tem uma equipe que é remunerada, aí a gente aprova um projeto, aí tem que implementar, prestar conta, aí tem as nossas redes sociais que a gente tem que alimentar, tem um site também, então, assim, nós somos muito abençoados porque nós temos, conseguimos, sensibilizar muitas pessoas que acreditam na ideia do que é a Caianas e se voluntariam, então a gente depende muito disso hoje, assim, a gente quer um dia poder ter condições de ter pessoas fixas, dedicando o seu tempo exclusivamente a essa luta, porque a gente acredita muito, mas a nossa caminhada tem sido desse jeito, assim.
Neste governo Lula 3 foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, gostaria que você comentasse esse processo histórico e os conflitos que ainda assim continuam nos estados e municípios brasileiros.
Sim, como você disse, foi histórica a instituição de um ministério especificamente para cuidar das agendas dos povos indígenas e a principal delas é a efetivação dos direitos territoriais dos povos indígenas e que não é tão fácil colocar isso em prática.
Não é tão fácil porque, embora exista muita vontade do Ministério, existe toda uma configuração política que está posta e estruturada para impedir que os direitos dos povos indígenas avancem, sejam efetivados. Uma prova disso é o próprio marco temporal, a tese do marco temporal, que foi derrubada pela instância suprema da justiça brasileira, mas que foi aprovada pelo Congresso Nacional.
Então, o movimento indígena entendeu que, com o Ministério dos Povos Indígenas, foi feito, conseguiu-se avanços importantes, retomar políticas importantes, uma delas foi o que eu disse, a política nacional de gestão territorial e ambiental de terras indígenas, ela tinha sido excluída da estrutura do governo Bolsonaro e com o ministério, ela foi reinserida na estrutura do atual governo.
Mas é um ministério que, para a gente, povos indígenas, é uma estrutura burocrática. E tivemos que, infelizmente, nós, povos indígenas do Brasil, tivemos que nos inserir a esse sistema como uma estratégia de sobrevivência também. Então, eu acho que foi mais uma estratégia também de resistência à instituição do Ministério dos Povos Indígenas.
O principal órgão hoje indigenista, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, está fortalecida também, mas nós temos todo um sistema, um sistema judiciário que sofre influência também das elites do país. Nós temos um congresso que sofre influência das elites brasileiras, então estamos inseridos dentro de um sistema que o poder econômico decide muita coisa.
Mas o movimento indígena também tem seus projetos de ampliar a representatividade indígena no Congresso Nacional, nos legislativos municipais, nós temos prefeitos indígenas hoje no país, temos muitos vereadores indígenas no país, aqui no município onde eu estou, nós temos dois vereadores indígenas, temos deputada, temos a deputada Célia Xakriabá, deputada federal, deputada federal Juliana Cardoso, que também é indígena, a própria ministra Sônia Guajajara também foi eleita. Então, eu acredito que o movimento indígena sempre foi muito sábio.
E nos perguntaram certa vez se a gente não tinha preocupação quando o governo Bolsonaro foi eleito. E nós sempre dissemos, não, nós não temos preocupação, porque Bolsonaro sempre declarou ser anti-indígena, anti-direito dos povos indígenas e nós estamos há 520 anos, mais de 500 resistindo, desde a colonização. A preocupação que nós temos é com vocês, se vocês vão conseguir sobreviver, vocês não indígenas vão conseguir sobreviver, porque nós, povos indígenas, estamos aí resistindo há muito tempo.
Então eu acho que o povo indígena é muito sábio, consegue fazer a leitura e consegue criar mecanismo também de resistência, como eu disse, embora nós estejamos aqui no território, nos mobilizando, nos organizando, a gente tem pessoas em Brasília, também ocupando esses espaços importantes.
E o Ministério foi importante, a gente tem políticas públicas que eram direcionadas apenas para povos indígenas da Amazônia, por exemplo, que sempre foi o foco de muitas políticas públicas. E hoje existe uma democratização de muitas políticas públicas. Aqui no Mato Grosso do Sul, por exemplo, um instrumento de gestão que é muito comum nas terras indígenas da Amazônia, que são os planos de gestão territorial e ambiental, muito comum na Amazônia, com a instituição do Ministério dos Povos Indígenas, estão sendo construídos os primeiros planos de gestão territorial e ambiental em terras indígenas aqui no Mato Grosso do Sul.
Isso graças a políticas públicas, a instituição do Ministério dos Povos Indígenas. Nós temos um curso que foi construído, um curso de agroecologia intercultural indígena, curso de agroecologia que a Caianas protagonizou a construção desse curso em 2015, durante a implementação do projeto GATI. E esse curso está sendo colocado em prática agora, um curso em nível de graduação, bacharelado, com previsão de bolsa para os estudantes indígenas, que ficou em torno de 6 milhões de reais. E esse curso está recebendo apoio do Ministério dos Povos Indígenas para ser implementado. Então, com a instituição do Ministério dos Povos Indígenas, já teve seleção, inclusive, de professores, já teve seleção dos indígenas aqui do povo do Pantanal, o curso vai começar agora em agosto, então é importante sim o Ministério dos Povos Indígenas, embora com toda essa dificuldade, se dependesse do Congresso, o Ministério dos Povos Indígenas já tinha sido extinto, por várias vezes no início de 2023, o Congresso articulou a extinção do Ministério, mas um movimento indígena muito atento conseguiu fortalecer o Ministério.
Eu acho assim, nós estruturamos o Ministério, formação de equipe, de departamentos, de instâncias e agora acho que cada momento é um objetivo diferente. Agora estamos no momento de implementar aquilo que foi planejado. O Ministério está em pé, porque o ministério também não tinha nem espaço físico, eu fui um dos primeiros a chegar lá, não tinha computadores, não tinha mesa, não tinha cadeira, não tinham pessoas ainda, muitas pessoas ainda, eram muitas agendas e agora não, agora já tem uma equipe, já tem uma estrutura física, então, acho que agora é ir avançando.
Gostaria que comentasse sobre o Mercado de Crédito de Carbono, como avalia, o que já teve conhecimento no Brasil.
É, existe uma regulamentação em curso, com relação ao mercado de crédito carbono, existe um assédio, esse assédio foi muito mais intenso no governo Bolsonaro, sobre os territórios indígenas. Sempre com essa promessa de melhorar a qualidade de vida dos povos indígenas, de construir escolas, de construir postos de saúde, de aquisição de maquinários, sempre com essas promessas, mas hoje nós não temos nenhum desses acordos firmados de crédito carbono entre empresas privadas e terras indígenas, nós não temos nenhuma terra indígena que se beneficiou de fato de todas essas promessas. Primeiro que é algo muito novo, uma compreensão muito difícil para os povos indígenas, porque como é que você vende algo que você não enxerga? Você vende um elemento químico que você não vê.
E fora isso, tem a questão de que normalmente os contratos, eles são num prazo muito longo e isso é muito complicado. Então você tem uma reserva florestal dentro de uma terra indígena que os povos indígenas muitas vezes, em muitos contratos, elas são impedidas de usufruir daquele espaço, porque ela pertence à empresa e tem que gerar uma quantidade X de crédito de carbono.
Então você impõe uma mudança no modo de vida tradicional daquele povo. E você passa a mercantilizar a natureza, que até então os povos indígenas tinham toda uma relação com aquele ecossistema. E o risco de a gente mercantilizar, dos povos indígenas também começarem a olhar para a floresta como um mercado financeiro, também é complicado.
E eu sou do pensamento que eu acho que os povos indígenas deveriam receber crédito pela preservação de florestas que já sequestraram milhares de toneladas de dióxido de carbono
Então, há quanto tempo, há séculos, nós preservamos as matas, as florestas, as águas, geramos crédito de carbono e não recebemos nada. Eu acho que nós devíamos ter essa reparação histórica e recebermos por aquilo que nós já produzimos de crédito carbono.
Porque hoje algo que é fato, comprovado pela ciência, é que os territórios indígenas, eles têm um índice de desmatamento, inclusive inferior às unidades de conservação, inclusive ao desmatamento que acontece nas unidades de conservação.
Então, isso demonstra que a relação dos povos indígenas com as matas e as florestas é uma relação que promove a conservação da biodiversidade. É algo bem complicado. E existem protocolos que devem ser seguidos, a consulta livre, prévia, informada aos povos indígenas, como está garantida na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, muitas empresas chegam nas terras indígenas e faz consulta, com 10 pessoas, como se estivesse consultando mil pessoas, e aí, assim, esse processo de consulta, ele precisa ser no tempo da comunidade e ele não pode ser impositivo também.
Então, o que a gente percebe na formação de muitos contratos, é que muitas vezes, grande parte da comunidade não sabe daquele acordo que está sendo formado, apenas poucas pessoas sabem. E a experiência que nós temos né a experiência já de nós conhecemos de contratos de crédito carbono, não deu certo, não deu certo.
É um terreno muito delicado e por outro lado você tem o estado brasileiro ausente nas terras indígenas, então fica nessa situação muito delicada, porque também o Ministério dos Povos Indígenas recebe muita pressão também de lideranças indígenas para firmar esses acordos, para assinar esses contratos.
Então, ao mesmo tempo que o Estado brasileiro está ausente, não efetiva as políticas educacionais indígenas, as políticas de saúde, não tem estrutura básica de acessibilidade, de geração de renda. Aí chegam as empresas com todas essas promessas e acabam cooptando lideranças indígenas. Mas a gente sabe que nem sempre tem funcionado. Então, é difícil.
Por outro lado, eu vejo também que existem outras formas de se firmarem acordos de mercado de carbono que muitas vezes as empresas não querem. Que é, por exemplo, aqui na Caianas, nós desenvolvemos práticas agroecológicas, dentre as nossas práticas agroecológicas, há incorporação de dióxido de carbono. Então, nós também estamos estocando carbono com as nossas… Quando a gente faz a restauração de uma área degradada, dependendo daquela prática, você também está fazendo um sequestro de carbono. Mas as empresas não querem investir nisso, porque, não sei se é porque é mais caro, mas isso é uma coisa que eu não entendo. Por que não investe em mercado de carbono, em um processo de restauração? Aí você paga os povos indígenas para restaurar e incorporar carbono.
Queria que você comentasse se é importante ou não ter esse COP 30 no Brasil e como avalia a atuação no Brasil.
Então primeiro eu considero que é muito importante e que os povos indígenas tenham é posso e fez influenciar na tomada de decisão, possam ter espaço de fato e efetivo nas discussões da COP, que vai ter no Brasil. Depois, a gente tendo essa participação efetiva dos povos indígenas, com o poder de influenciar decisões, de ter protagonismo, de ter espaço de fala, de fato, eu vejo que é uma oportunidade, porque no último relatório, inclusive no último relatório do IPCC, do painel intergovernamental de mudanças climáticas da ONU, que é uma instituição científica renomada, reconhecida, ela traz de forma muito enfática que para a gente combater as mudanças climáticas, para a gente combater inclusive a fome, e a fome está muito atrelada à questão climática, as mudanças climáticas, para a gente combater a desertificação, a gente precisa valorizar as ciências indígenas, os conhecimentos ancestrais dos povos indígenas, de manejo do solo, de manejo das águas, de manejo das florestas, elas são respostas efetivas, comprovadas cientificamente para combater, para sequestrar carbono, dióxido de carbono, para combater as mudanças climáticas, para combater a fome e a desertificação.
Você já deve ter ouvido falar da terra preta de índio da Amazônia, nós temos lá em áreas que tem mais de 3 metros de profundidade de terra preta, que são terras ricas de muitos nutrientes, e que são terras produzidas a partir do manejo dos povos indígenas.
Então, hoje, eu acho que os povos indígenas têm que ter esse espaço nas discussões, nas tomadas de decisão, ter protagonismo, serem ouvidos e terem suas falas consideradas, porque a ciência já apontou isso, que a ciência indígena é estratégica.
A gente tem que entender que não é a Europa que é o centro do mundo, quem tem que ser o centro do mundo são os territórios indígenas e seus povos. Temos que mudar, inverter essa lógica de pensamento.
Se for assim, eu acredito muito que nós teremos avanço e hoje nós precisamos, é uma grande oportunidade de tentar angariar recursos para que os povos indígenas possam fortalecer os seus processos de gestão territorial e ambiental sustentável dos seus territórios.
Existe um sentimento de medo, de angústia com relação à COP, mas existe esperança também. Temos que ter esperança, acho que no fundo a gente pulsa ainda uma esperança.
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