Por Larissa da Silva
O Portal Vozes esteve presente no evento da Casa da Cultura da Guiné-Bissau em comemoração ao centenário de Amílcar Cabral e a realização do I Encontro de Artistas e Escritores Guineense.
Para apresentar a Casa, entrevistamos Amadú Dafé, escritor e um dos membros fundadores do projeto, para nos mostrar a ideia de apresentar e reforçar a cultura da Guiné-Bissau em Portugal.
Amadú diz que ao conhecer a cultura guineense: “os portugueses e todas as comunidades que vivem em Portugal acabam por aprender e adquirir novos valores, novas formas de ler o mundo, de compreender o outro, de conhecer o outro”.
Confira a entrevista completa:
Quem é o Amadú Dafé?
Bom, eu posso me apresentar, talvez, num ângulo… Há vários ângulos em que uma pessoa se possa apresentar, não é? Eu posso apresentar-me no ângulo ligado à cultura, e ligado à cultura, a Amadú Dafé é uma pessoa que é escritor, tem alguns livros publicados e traduzidos, e que está agora à frente de um programa também de literatura na televisão pública portuguesa, RTP África mais concretamente, como apresentador desse programa chamado “Mar de Letras” e é também um dos membros fundadores da Casa da Cultura da Guiné-Bissau aqui em Portugal, da Associação de Escritores Guineenses.
Você nasceu em Bissau? Como é que é a sua trajetória?
Sim, eu nasci na Guiné-Bissau, já vivo em Portugal há 12 anos, onde trabalho atualmente e resido permanentemente. Vim para estudar, tenho um curso de contabilidade, curso superior de contabilidade que fiz na Guiné e no terceiro ano do curso de contabilidade, estava a trabalhar na Faculdade de Direito de Bissau e acabei por gostar do curso de direito, e como calhou logo a seguir, consegui uma oportunidade para vir estudar cá, vim para cá e fiz curso de direito aqui na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
E ficou? E volta de vez em quando para visitar ou já não tem?
Voltei só em 2017 para ir tentar trabalhar, fiquei lá um ano e depois desisti e voltei outra vez para cá.
Você tem família lá e aqui?
Tenho familiares, os meus familiares estão lá, a maior parte, a grande parte dos meus familiares estão lá e aqui também.
Tenho alguns familiares que vivem cá, espalhados entre Portugal e o resto de outros países da Europa.
Vamos entrar então na Casa da Cultura. Sabemos que é uma casa feita com muitas mãos, quando é que vocês pensaram em construir essa casa, que também não é um local físico ainda, né?
É um conceito muito moderno. Sim, curiosamente estavas-me a falar precisamente daquele encontro, daquele simpósio que se fez sobre a Amílcar Cabral na Assembleia da República. A ideia já vinha existindo e alguns de nós já íamos falando da necessidade de haver ou de prover à cultura da Guiné-Bissau um espaço próprio.
Aqui há a semelhança do que há para Cabo Verde, que tem um centro cultural, para Angola, que tem a Casa de Angola. Pensamos que a Guiné também pudesse ter um espaço próprio, sobretudo porque calhava com a altura em que se celebrava os 50 anos da independência da Guiné, os 50 anos da morte da Amílcar Cabral e o centenário da Amílcar Cabral.
Começamos a pensar nisso e naquele encontro foi onde nos encontramos mais. O Miguel de Barros, o Tony Checa, o Abdulai Silá, o Sumaila Jaló, lá eu, a Rita, estávamos lá, imensas pessoas. Lançamos o repto. Portanto, a ideia de criar a casa surgiu ali, mas depois entre começar as diligências, fazer todas as movimentações necessárias, as consultas, os inquéritos, só conseguimos criar de facto a associação em 12 de setembro de 2023.
Portanto, criamos a associação naquela altura, criamos os estatutos sociais e depois só fizemos o lançamento público numa cerimónia que aconteceu na UCLA, no dia 20 de janeiro de 2023. Uma cerimónia que foi muito bonita porque juntou mais de 300 e tal pessoas. A UCLA estava a abarrotada, foi mesmo muito bonita porque foi sinal de que as pessoas estavam à vida, estavam à espera de um espaço desses para a cultura da Guiné-Bissau, as pessoas aderiram em massa. E, portanto, foi quando nós lançamos e foi também onde apresentámos todo o programa do Centenário de Amílcar Cabral.
E ali nós, além de apresentar o programa da celebração do Centenário de Amílcar Cabral, explicamos também quais eram os objetivos da criação da Casa da Cultura. E eles, aliás, são essencialmente três.
Que era promover a cultura da Guiné numa lógica de trazer o que se produz lá no país para cá, para dar ao mundo a conhecer o que se produz lá, o que existe lá e como o que existe lá é bom. E levar daqui para lá também o que se produz fora. porque há muita produção cultural da Guiné-Bissau fora e que os próprios guineenses não conhecem e que às vezes até os próprios guineenses que residem nas diversas diásporas também não sabem das produções uns dos outros. Portanto, pensamos em fazer uma espécie de rede que intercalasse as várias produções culturais que existem pelo mundo fora, nessa lógica de levar e trazer, levar e trazer.
E foi nessa perspectiva que pensámos então, este objetivo de interligar as produções culturais nos diferentes cantos do mundo culmina com a necessidade de criarmos um site, um site que fizesse uma espécie de mapeamento de artistas
de diferentes áreas da produção artística, desde músicos, artistas plásticos, escritores, investigadores, bailarinos, tudo o que é artista no sentido mais técnico da palavra, fazer um mapa, onde é que andam, o que é que fazem, o que é que produzem, o que é que já ganharam, toda a informação sobre a sua vida que esteja num sítio na internet onde as pessoas possam quando pesquisassem por alguma coisa relacionada com a Guiné encontrassem. Mas também, ao mesmo tempo, o mesmo site servir como uma espécie de plataforma, uma espécie de catálogo sobre produtos culturais guineenses, onde
se possa consultar livros ou ver informação sobre livros existentes de escritores guineenses, músicas de músicos guineenses, quadros ou galerias de arte dos artistas plásticos guineenses, roupa ou lojas de venda e costura de roupa com estilo guineense, todos os outros tipos de artefactos relacionados com a cultura da Guiné-Bissau que estejam ali num catálogo onde pelo menos no mínimo que haja informação descritiva sobre onde encontrar como contactar o que custa e estas coisas todas. Portanto, foi esse o objetivo. O primeiro objetivo era mesmo esse.
O segundo objetivo era poder implementar em Portugal e nas várias comunidades diaspóricas da Guiné-Bissau, espaços físicos de atuação e animação cultural, pontos físicos de encontro entre os guineenses. Este segundo objetivo não é imediato, o que era imediato mesmo era a criação de uma associação que pudesse implementar os outros objetivos. E o segundo objetivo era a criação de uma plataforma que já está criada, já temos o site, já está mais ou menos com esse design, mas não tem ainda todos os catálogos, porque é preciso muitas horas de trabalho, é preciso muito esforço para se chegar lá, mas vamos fazendo, vamos cumprindo esse objetivo paulatinamente.
E o terceiro objetivo era mover um espaço físico para a cultura da Guiné-Bissau, aqui em Portugal ou noutros cantos de Portugal ou Europa, onde a cultura da Guiné possa ser apreciada em termos físicos, em termos materiais, em termos de representação
física e todos os sentidos possíveis da vida humana, desde a visão e por aí fora tudo o que se possa representar num espaço, que haja esse espaço sobre a cultura.
Portanto, é isso. Foi ali que apresentamos os objetivos. Os objetivos são essencialmente estes três, para já, que vão culminando, claro, quando falamos em dinamizar a cultura, implica ter um plano de atividades e criar um conjunto de atividades que animem, que divulguem. E temos também, pelo menos, nessa linha de criar redes, de criar pontes, a possibilidade de prestar apoio aos artistas.
Todos os tipos de apoio possíveis, desde ajuda na divulgação dos seus trabalhos, ajuda na concepção dos seus trabalhos, ajuda em contatos com outros potenciais financiadores, apoiadores e outras redes. É para isso que a Casa da Cultura serve.
Qual é a história do logo da casa?
A descrição oficial da posição da própria casa está no site. Se visitares o site, está lá a explicar o que aquilo significa. Mas representa várias coisas.
A ideia é artística e pode ser interpretada de várias formas como qualquer outra obra artística. Portanto, deixo à consideração do design da Casa da Cultura, que é do Cláudio, para explicar, mas posso dizer que a informação que é oficial da própria casa está no site.
Foi criado do zero sim de facto, mas baseado num tipo específico de um pássaro guineense e na lógica de um embrião que se leva às costas como um potencial cimento da cultura, com a lógica de Bambarã que é na Guiné ou em África as pessoas levam as crianças às costas e toda a ideia de crescimento que uma criança ou um embrião tem de potencial. É mais ou menos a base, ao mesmo tempo de um pássaro que tem asas e é livre e voa para todos.
Tanto a Casa de Angola quanto a Casa de Cabo Verde têm relações com o governo dos seus países, não? São financiadas pela embaixada?
Nós tentamos, tentamos, mas para já não tivemos nenhuma resposta por parte da embaixada. Felizmente estiveram presentes no ato do lançamento da Casa da Cultura no dia 20 de janeiro, mas nós tínhamos solicitado uma audiência para vos irmos apresentar o projeto e não nos marcaram a audiência. Depois do lançamento da Casa também contactámos-los novamente para os convidar a estarem presentes, aliás a nos receberem para podermos falar com eles também não nos responderam até a data
e curiosamente mais tarde ouvimos dizer que eles também tinham ideia da criação de uma outra casa da cultura, portanto é para dizer que não temos apoio e nem aspiramos ter também esse apoio.
Vamos falar agora sobre sobre línguas, porque no evento que vocês fizeram teve uma das mesas que era uma mesa com dois artistas e você até no início disse, “olha, essa mesa vai ser feita em crioulo”. Queria saber um pouco como é que vai ser essa relação com a língua nas ações da Casa.
Vamos ter muitos desses momentos, não só para habituar as comunidades, nas várias comunidades que existem aqui em Portugal, a ideia de que em África, nos países chamados PALOP, a língua portuguesa é apenas uma das várias línguas que lá existem e devem ter as mesmas forças, não é? Portanto, o próprio Portugal, quando recebe essas comunidades aqui em Portugal, deve aceitar a sua diversidade cultural. E a diversidade cultural inclui também a diversidade linguística. Portanto, é um dos objetivos.
Mas mais do que isso, há dois aspectos que eu queria aqui frisar. O português é já uma língua da Guiné. Isto é um fato paciente. Não vai desaparecer, porque já está. Além de que já é uma língua oficial, também é uma língua que até à data, todos os documentos oficiais do país estão redigidos em língua portuguesa. Não há como essa língua desaparecer. Mas é importante, em simultâneo, lembrar que o guineense no dia a dia não fala a língua portuguesa. Como não fala a língua portuguesa, convém a comunidade, no geral, assumir a responsabilidade de valorizar essa língua. E a valorização dessa língua passa também por valorização do seu peso cultural, do seu valor cultural, da sua representação em momentos oficiais, em momentos de diversão em todos os momentos é mais para isso, e outra parte disso é também que se é para nos compreendermos melhor se é para representarmos melhor a cultura guineense, não podemos escamotear a sua parte linguística.
Não podemos representar a música guineense e esquecermos que ela é feita em crioulo. Não podemos fingir que, embora muitos guineenses escrevam, como é o meu caso, escrevemos os nossos livros em português, há muitas expressões em crioulo que lá estão. Portanto, a língua guineense também tem que ter o seu próprio espaço de atuação. Isto não conflitua de forma alguma com a língua portuguesa. Muitos, aliás, complementam-se e essa complementaridade é que se deve valorar, não é?
Você em nenhum momento escreveu em crioulo e depois traduziu para português?
Já escrevi em português e uso algumas referências do crioulo. Embora, claro, com as limitações que isto tem, porque sai claramente, sou muito mais fluente em crioulo do que em português.
Não há uma padronização do crioulo, não há uma adoção formal, oficial, sobre, as normas do crioulo. a gramática, não é? Porque nós falamos, comunicamos, entendemos através daquela gramática que existe, mas não há uma padronização
sobre a forma de escrever crioulo.
Mas nós nos entendemos, qualquer que seja o estilo ou a forma que a pessoa adota, é uma pessoa que percebe bem crioulo, consegue perceber. Então também naquelas formas que eu adotei, eu escrevo e estou tranquilo.
Queria que você comentasse como você acha que a cultura Guineense é recebida aqui em Portugal?
Estamos ainda a sondar, a compreender um pouquinho como é que é isto por africanas, Kizomba acaba por entrar muito mais na lógica de Angola e Cabo Verde.
Cabo Verde porque tem uma comunidade muito maior em relação à comunidade guineense, Angola porque eles também cantam em português e as pessoas acabam por perceber. Kizomba em crioulo da Guiné já é um bocadinho diferente e mistura outras sonoridades, mas também porque não há assim músicos guineenses que se tenham afirmado muito aqui em Portugal.
São vários fatores que podem explicar o porquê de não haver uma afirmação da música guineense em grande escala. E também a nível dos escritores guineenses é a mesma coisa. Não há escritores guineenses muito conhecidos. Há aqueles que, quando se fala em escritores guineenses. Mas as pessoas devem saber.
Da música, da literatura, talvez porque a Guiné em termos de poderio económico,
de influência externa e também do número de população não se possa comparar por exemplo Angola e Moçambique ao contrário de Cabo Verde, mas Cabo Verde é um fenómeno raro no meio dos países de língua portuguesa em África, mas há uma coisa que é certa, a maior parte das pessoas que vão contactando com as nossas atividades, com a nossa forma de fazer cultura que é única, é muito diferente da cultura moçambicana, muito diferente da cultura angolana. As pessoas às vezes tendem a pensar, o Palop não é um país, são vários países muito distantes um do outro, com línguas diferentes, culturas e costumes e hábitos completamente diversos.
Por isso, não é uma novidade porque a Guiné fez parte de uma das colónias de Portugal e portanto a ligação com a Guiné existiu sempre, não na proporção
que existe com Angola, Moçambique e Cabo Verde mas existiu sempre e nessa medida a cultura da Guiné têm vindo a ter o seu próprio espaço é um nicho muito pequeno
e é isso que nós queremos aqui a chacoalhar, mexer e ver se mais pessoas procuram e mais pessoas se interessam e há, e tem havido, cada vez mais pessoas a interessarem-se há cada vez uma maior adesão às atividades culturais guineenses portanto, acho que é uma variedade é um valor acrescentado que a cultura guineense é uma espécie de coloração diferente, que a cultura guineense tem a dar à diversidade cultural em Portugal. É uma coisa diferente, é uma coisa positiva, é uma coisa que tem os seus próprios valores que os outros possam rever.
Portugal só tem a ganhar com a promoção da cultura guineense que é em Portugal, porque os portugueses e todas as comunidades que vivem em Portugal acabam por aprender e adquirir novos valores, novas formas de ler o mundo, de compreender o outro, de conhecer o outro. Portanto, nessa perspectiva acho muito vantajoso e espero que haja cada vez não só a participação das pessoas, mas o apoio a nível institucional e a nível particular também. Então tudo mais. Sim. Olha, eu acho que quanto à casa eu tenho bastante informação. Informação, sim.
Se você quiser complementar alguma informação sobre a Casa.
Nós já temos o plano de atividades para o próximo ano, que vai continuar a celebrar Cabral, porque Cabral terá nascido a 12 de setembro, terá não, nasceu a 12 de setembro e portanto o seu centenário só termina a 12 de setembro de 2025, até lá vamos continuar com as atividades vamos deixar público as nossas atividades para o próximo ano, portanto as pessoas se quiserem poderão consultar o nosso site
estarão lá todas as atividades que vamos fazer, mas mais do que essas atividades, a nossa recomendação forte aqui mesmo é o apoio que nós precisamos.
Como disse há bocado, o apoio é preciso não só na participação das pessoas, como o apoio financeiro, que é uma das grandes dificuldades que temos vindo a ter, mas não vamos desistir por causa disso. Vamos tentar mostrar que merecemos esse apoio para as pessoas que nos puderem ajudar.
Você chegou a escrever algum livro quando estava em Bissau ou já foi aqui em Portugal que você começou a…
O meu primeiro livro é um conjunto de contos, contos literários, a maior parte deles foram escritos lá em Bissau, depois compilei aqui e publiquei.
A minha segunda publicação foi em 2017, aliás, escrevi em 2017 quando estava lá, mas depois publiquei aqui. O resto foi tudo aqui, porque entretanto eu só vivo aqui.
Sabemos que a Guiné-Bissau está vivendo um momento delicado politicamente. No âmbito da cultura, como está o momento onde quem produz cultura lá na Guiné-Bissau?
A Guiné é um país que, pela sua história, percebe-se claramente que não se deixa amarrar. Portugal fala em guerra ou guerrilha pela libertação que terá começado para Portugal em 1961, mas para a Guiné-Bissau começou desde que os portugueses lá chegaram.
Houve sempre resistências, houve sempre guerras, luta para não se deixarem dominar pelos portugueses, tanto mais que é das colónias mais problemáticas para Portugal. Ora, se assim é o nosso histórico, duvido que uma pessoa ou um grupo limitado de pessoas vão conseguir restringir as pessoas, sobretudo para quem faz cultura.
O problema é que quem faz cultura é aquela pessoa que sente mais o país, que vive mais o país. Ora, quem vive com tal intensidade um país, podes ter a certeza que podes tentar matá-lo, mas que não vais calar.. Eu acho que a cultura não se vai calar, não se vai deixar intimidar.
Podem tentar, mas não vão conseguir. E, pelo contrário, vão incentivar ainda mais, até porque têm estado a incentivar mais. Cada vez há mais músicas, há grupos de músicos que se unem para cantar estas situações, como uma espécie de protesto.
Há, cada vez, mais iniciativas de manifestação, iniciativas… Olha como, por exemplo, a sociedade civil celebrou o centenário de Amílcar Cabral e perceberás que, de facto, a cultura é por onde a transformação do país pode acontecer.
E nós acreditamos nisso.