Por Acácio Pereira
A UNEF criminaliza a imigração e faz Portugal retroceder
Sob a cobertura do chamado Plano de Ação para as Migrações, o Governo aprovou, em Conselho de Ministros no dia 26 de setembro de 2024, uma Proposta de Lei a ser enviada à Assembleia da República para a criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF), integrada na Polícia de Segurança Pública (PSP). Segundo o Governo, esta nova unidade visa reforçar o controlo das fronteiras e regular a imigração, restaurando a capacidade operacional e de fiscalização do Estado sobre a permanência de estrangeiros em território nacional. A extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) teria, alegadamente, comprometido estas capacidades. Adicionalmente, a UNEF teria como objetivo melhorar o regime de afastamento e retorno de pessoas em situação ilegal no país, competências que seriam agora atribuídas à PSP.
Embora todos os modelos possam ser ajustados com o objetivo de melhoria, o cenário atual não reflete tal intenção. A proposta do Governo representa um dos maiores retrocessos em matéria de gestão de fronteiras e imigração. Para encontrar algo semelhante, seria necessário recuar até ao período conturbado da Primeira República, mais precisamente durante a chamada Ditadura de Sidónio Pais, onde a centralização das funções do Estado em órgãos securitários tomou forma. Criar uma nova estrutura com funções similares ao extinto SEF, dentro de uma força policial de natureza securitária e de prevenção criminal, é um erro grave que pode ser interpretado como uma criminalização da imigração.
À data da extinção do SEF, foi feito um alerta sobre o risco de criminalizar a imigração, o que não poderia ser o caminho seguido por um país como o nosso, que possui uma enorme diáspora e cujo tecido social é profundamente multicultural, verifica-se agora que o alerta caiu no vazio. Tal abordagem não é compatível com os princípios de uma democracia madura e europeia, alicerçada nos valores defendidos no Tratado de Lisboa. A proposta atual de criar a UNEF dentro da PSP é um claro retrocesso e não pode ser justificada simplesmente pelo facto de que, à data da extinção do SEF, o PSD — partido que hoje sustenta o Governo — se opôs a essa extinção. Esse argumento, por si só, é insuficiente.
Participei pessoalmente nas negociações com os diversos atores políticos com assento na Assembleia da República, tanto em reuniões formais como informais, e posso atestar que o PSD, à época, não assumiu a extinção do SEF como uma causa prioritária. O partido teve oportunidades para agir, uma vez que a extinção foi adiada em duas ocasiões. Sendo o maior partido da oposição, poderia ter invocado que a extinção do SEF mexia com direitos, liberdades e garantias, forçando assim a necessidade de uma maioria de dois terços na Assembleia, o que teria inviabilizado a extinção. No entanto, o PSD optou por não o fazer. Esta postura coincidiu com a transição de liderança para Luís Montenegro, que preferiu afastar o único deputado do partido com experiência e autoridade no tema, André Coelho Lima.
Além disso, nesta questão, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não pode permanecer em silêncio. Marcelo esteve profundamente envolvido no processo do SEF, assumindo competências que, por norma, não cabem ao seu cargo, e influenciou decisivamente o rumo que as decisões tomaram. Agora, o Presidente deve adotar uma posição pública clara em relação à proposta de criação da UNEF.
O contexto atual de Portugal torna esta medida ainda mais preocupante. Em paralelo com o anúncio da criação da UNEF, a extrema-direita xenófoba tem liderado manifestações anti-imigração, sendo uma das mais recentes realizada em Lisboa e convocada pelo partido Chega. A socialista e antiga ministra da Educação, Maria de Lourdes Rodrigues, descreveu a manifestação como “um dia triste para o país”. Durante uma entrevista ao programa Ponto Central da Antena 1, Maria de Lourdes criticou duramente as motivações por trás dos protestos, afirmando que “a semana foi má não apenas pela manifestação, que foi absurdamente violenta, mas também pela coincidência do anúncio da criação de uma polícia de estrangeiros”. Maria de Lurdes Rodrigues chegou a considerar que “é uma medida até inconstitucional” e questionou a lógica por trás da criação de uma polícia destinada a pessoas concretas, sublinhando que “nós podemos ter polícias especializadas no território, nas fronteiras, na regulação da circulação, mas contra pessoas é um pouco absurdo”.
Estas manifestações são um reflexo de um ambiente social cada vez mais polarizado, em que a imigração é retratada negativamente, de que é exemplo particular o debate parlamentar na apresentação do Relatório de Segurança Interna há dias. Além disso, o Governo tem inflacionado os números relativos às pendências de atendimento na Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA), possivelmente como forma de justificar políticas mais restritivas em relação à residência de imigrantes, como o fim da “manifestação de interesse”, que facilitava a sua regularização.
Todos os sinais que acompanham a criação da UNEF apontam para um alinhamento preocupante do Governo com a extrema-direita, em particular com o partido Chega. Esta proposta é uma cedência às pressões da direita fascista, que tem fomentado uma narrativa anti-imigração e anti integração.
As políticas de segurança, especialmente no que diz respeito à imigração, devem ser tratadas com sentido de Estado, respeitando os direitos dos cidadãos e o interesse nacional. Estas políticas devem ter previsibilidade e estabilidade, e não podem mudar cada vez que um novo Governo toma posse, como acontecia frequentemente durante a Primeira República. O país não pode permitir-se este tipo de volatilidade, particularmente em questões tão sensíveis como a imigração e o controlo de fronteiras.
Portugal deve ser capaz de equilibrar a segurança com o respeito pelos direitos humanos, garantindo uma política migratória que seja justa, equilibrada e que respeite os compromissos internacionais do país. A criação da UNEF na PSP, tal como está concebida, não cumpre esses critérios e é um passo na direção errada.
Cabe agora aos partidos da oposição, e particularmente ao maior partido da oposição, o PS, pugnar pela exigência de aprovação por maioria qualificada de dois terços, uma vez que estão em causa alterações que afetam diretamente o regime dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. A criação de uma polícia destinada a controlar especificamente a imigração coloca em risco princípios fundamentais de uma sociedade democrática e plural, e deve ser submetida a um escrutínio mais rigoroso e exigente, por forma a evitar erros do passado assegurando que medidas desta natureza, que restringem liberdades, só possam avançar com um amplo consenso parlamentar, respeitando os direitos constitucionais e a estabilidade democrática do país.
Crédito foto: LUSA