Por Larissa da Silva
Na última semana, a independência do Brasil virou discussão em Portugal. A comemoração do 2 de julho de 1823, muito comemorada em Salvador e no estado da Bahia, virou assunto deste lado do oceano depois que o Presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, propôs o “Dia da Consolidação da Independência do Brasil” para todo território brasileiro. O dia é conhecido como a saída das últimas tropas portuguesas do Brasil, quase um ano depois do famoso “grito do Ipiranga” proclamado por Dom Pedro I em São Paulo.
O Portal Vozes entrevistou Sérgio Guerra Filho, historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, para nos contar a história do 2 de julho. O professor diz que a consolidação é a celebração do povo: “E aí tem um elemento importante, porque o 2 de julho acaba se contrapondo ao 7 de setembro. 7 de setembro é um ato de um nobre português e o 2 de julho é resultado da participação de indígenas, de negros, de negras, de pessoas pobres, livres, de vários lugares. Então, de alguma forma, essa guerra consolida a independência.”
Guerra reforça que a Independência do Brasil não foi a conquista de um dia só, mas sim uma luta de séculos de brasileiros, negros, indígenas, povo pobre, que de muitas formas ocupou o país para chegar a grande conquista em 1822: “Por que que a gente não sabe disso? Porque a gente tem um um uma série de mitos, eu vou chamar assim, de um ecossistema de mitos que constituem a narrativa de uma história pacífica e ordeira, onde o progresso é sempre fruto da boa vontade das elites ou de grandes acordos e apertos de mão.”
Sobre a repercussão em Portugal, Sérgio se mostra surpreso e diz: “…eu acho que há também uma uma ignorância sobre o que a historiografia brasileira, sobre o que historiadores e historiadoras têm escrito sobre a independência nos últimos 20 ou 30 anos”, destacando as atualizações que a investigação brasileira tem dado na real história do Brasil.
O Brasil tem uma independência negociada com a elite, segundo Guerra: “o Brasil não saiu da independência como um país progressista, como um país republicano, como um país democrático. O Brasil saiu da independência como um país reafirmando a escravidão, reafirmando o latifúndio, reafirmando o poder dos homens ricos, né, da aristocracia”.
E diz: “O que eu acho que é importante é que a lei é uma prestação de contas com nós mesmos, é um olhar para trás para destruir ou superar, na verdade, um mito do 7 de Setembro que não dá voz a à complexidade desse processo…Não é uma prestação de contas com Portugal, mas uma prestação de contas com a nossa própria memória coletiva, a nossa própria história, que de alguma forma foi escrita de uma maneira muito elitista.”
Confira a entrevista completa:
Larissa da Silva: O que é 2 de julho de 1823 para a Bahia e pro Brasil?
Sérgio Guerra Filho: Bom, o 2 de julho hoje consiste na data magna da Bahia, portanto é feriado. Os estados, nessa composição política brasileira não podem criar feriados, somente a União e os municípios podem. É uma garantia anti-separatista, anti-regionalista. Assim, os estados escolhem uma data magna e a data magna da Bahia é o 2 de julho. É o que marca o fim da guerra de independência na Bahia.
É importante atentar para o alerta que o professor Luiz Henrique de Tavares já faz desde os anos 70, porque às vezes a gente fala “a independência da Bahia”, para encurtar, mas, na verdade, o que ocorreu foi uma guerra pela independência do Brasil na Bahia. E isso é muito significativo, pelo fato de que não só os baianos lutaram contra as tropas portuguesas. Houve o envio de tropas que se somaram ao contingente que já estava na Bahia. O general Pierre Labatut foi contratado por Dom Pedro para comandar as tropas na Bahia, e trouxe soldados do Rio de Janeiro. Ele desembarcou em Alagoas, arregimentou soldados de Pernambuco, de Alagoas, de Sergipe e depois ainda vieram tropas do Piauí, de Minas Gerais. Era uma tropa não só baiana, mas podemos aí talvez já chamar de uma de uma tropa brasileira.
O que ocorreu foi esse processo de crise do Reino Unido, quando da construção da Constituição. Até então, éramos todos portugueses: portugueses da América, portugueses da Europa, portugueses de África e da Ásia. Praticamente todos mandaram seus representantes para as Cortes Constitucionais de Lisboa. Mas, em certo momento, os deputados das províncias do Brasil perceberam que havia uma tendência a atropelar os interesses do reino do Brasil. Então, há uma série de incômodos e há rupturas, muitos dos deputados fogem, alguns ficam. Ficam, mas não assinam a Constituição.
No caso da Bahia, especificamente, há uma situação que é Dom Pedro, então príncipe regente, controlando o Rio de Janeiro e as províncias ao seu redor. Desse modo, dá-se uma tendência de acumular tropas que já eram significativas na Cidade da Bahia, que é como se chamava Salvador. Em fevereiro de 1822, há uma mudança de comando das armas na província. O general Madeira de Melo é nomeado pelas Cortes Constitucionais e isso cria um incômodo na província.
Há o episódio de fevereiro, onde Madeira assume o cargo à força e aí as tropas baianas se dissipam: alguns são presos, alguns mandados presos para Lisboa, outros saem da cidade e começam a organizar de fevereiro a junho de 1822, articulando uma resistência a Madeira de Melo, que é um fiel seguidor das Cortes Constitucionais. muito ligado a Lisboa e, portanto, contrapondo-se a Dom Pedro no Rio de Janeiro.
Neste cenário, você começa a ter tropas que vêm de outras províncias, por exemplo, as tropas que Dom Pedro expulsa do Rio de Janeiro não voltam para Lisboa, acabam desembarcando em Salvador. As tropas que saem de outras províncias também desembarcam em Salvador. E há ainda o envio de alguns reforços de Portugal. Salvador está ocupada militarmente por Madeira de Melo e os baianos começam articular uma resistência a isso.
Em junho de 1822, os baianos fazem, em duas vilas, aclamação de Dom Pedro como defensor perpétuo do Brasil. Veja bem que não é uma declaração de independência, é uma declaração de apoio a Dom Pedro, mas isso é visto como uma afronta por Madeira de Melo. Então, 14 de junho, Santo Amaro faz a aclamação com muita gente do povo participando. Madeira de Melo manda uma tropa subir pelo rio Subaé e promovem um quebra-quebra na vila em represália à aclamação. No dia 25 de junho, em Cachoeira, há poucos quilômetros de distância, quando os cachoeiranos vão aclamar Dom Pedro, já sabendo o que houve em Santo Amaro, a população já desce para a vila munidos de armas de fogo. Madeira de Melo havia mandado uma embarcação de guerra fechar o porto da vila de Cachoeira. E há uma batalha que é a chamada batalha de Cachoeira, que é considerada o início da guerra de Independência.
Veja que isso é em 25 de junho, portanto, antes do 7 de setembro. Isso é importante, para entendermos que a independência não é um evento, é um processo. Eu estou falando sobre a Bahia, mas cada província estava vivendo esse drama de uma forma específica.
A partir disso, Cachoeira vira uma espécie de capital rebelde. Eu tenho dito que é a primeira capital brasileira da Bahia, porque ela se articula com Dom Pedro. Uma das primeiras ações desse governo foi mandar emissários ao Rio de Janeiro. As vilas da Bahia todas confluem para Cachoeira e essa confluência política vai arregimentando tropas que cercam a cidade da Bahia.
Então, Madeira de Melo fica isolado política e militarmente. A cidade da Bahia é uma fortaleza, é uma cidade, construída justamente em um lugar alto, já no século XVI, para se defender melhor, com muitas fortalezas. Era uma cidade difícil de ser tomada e sempre que houve alguma batalha pela cidade, a batalha foi ganha pelo cerco. Cerca-se a cidade, não entram alimentos, as pessoas capitulam ou, como no caso de Madeira de Melo, se retiram.
Depois do 25 de junho de 1822, organiza-se o cerco à capital, que se realiza a partir do final de julho, início de agosto. Em finais de outubro, chegam as tropas de Labatut e, logo na sequência, a batalha de Pirajá, que é uma tentativa de Madeira de romper esse cerco, mas não conseguem vencer. Depois, em 7 de janeiro, tentam tomar a ilha de Itaparica na Baía de Todos os Santos para ter acesso a alimentos. Não conseguem, então ficam esperando reforços que não chegam.
Por que que não chegam? Porque, entre outras coisas, Portugal está vivendo também uma crise política. É um momento de muita intensidade da história portuguesa. Você tem a própria revolução do Porto, o retorno de Dom João. Depois você tem duas tentativas de golpe, inclusive uma que é Dom Miguel que tenta e depois é expulso de Portugal. A rainha fica presa no castelo porque ela é acusada também de conspirar. Depois tem essas idas e vindas que impedem que Portugal consiga realmente mandar uma expedição que foi planejada e, inclusive, chegou-se a nomear um comandante para essa expedição.
Sem muita alternativa depois que Dom Pedro mandou, em maio de 1823, uma esquadra fechar o porto da Bahia, que era a única entrada que tinha de alimentos, Madeira de Melo começa a planejar uma retirada. A esquadra brasileira também era comandada por um por um militar estrangeiro contratado, o lorde Cochrane. Dom Pedro manda com ele as embarcações de guerra portuguesas que haviam ficado no Rio de Janeiro. Ele transforma essas embarcações na frota brasileira e essas embarcações vão fazer combate à frota portuguesa comandada na Bahia pelo almirante Félix.
Então, 2 de julho é esse dia em que as tropas portuguesas se retiram da Bahia. Na minha tese, eu cheguei a contar cerca de 100 embarcações. Consegui contar a quantidade de pessoas, cheguei a quase 8.000 pessoas, mas em 20 embarcações eu não consegui saber quantas pessoas tinham embarcadas. Aplicando uma média, eu posso afirmar que cerca de 10.000 pessoas saíram da Bahia entre primeiro e segundo dia de julho de 1823.
Para se ter uma ideia, a comitiva que vem com Dom João em 1807, 1808 tem mais ou menos esse tamanho. É uma retirada muito grande, porque também não foram só soldados, muitas famílias portuguesas saíram temendo alguma represália, quando o exército pacificador entrasse na capital.
O 2 de julho é esse momento em que o exército pacificador, depois de um ano de guerra, entra na cidade desocupada. Não há uma grande batalha nesse dia. E depois do 2 de julho ainda precisou-se reafirmar a adesão de outras províncias. O 2 de julho inclusive não é a última cena desse processo. O 2 de julho é significativo. E por que ele é considerado a consolidação? Porque, de fato, o grande contingente das tropas portuguesas estava na Bahia. E veja, a ordem que Madeira de Melo e que João Félix tinham era de, depois de conquistada a Bahia, fechar o porto do Rio de Janeiro para forçar alguma negociação com Dom Pedro. Então, como eles nem conseguiram sair da Bahia, porque a guerra não deu trégua, e depois se retiraram para Portugal, aquilo daria fim a uma possibilidade real de Portugal manter algum controle na porção da América que esteve desde 1500 sob seu domínio.
Por isso que se considera a consolidação da independência. É isso que o 2 de julho significa.
Agora, o 2 de julho hoje é uma festa que ocorre em Salvador, mas também em outras cidades da Bahia, em geral em torno de um caboclo ou de uma cabocla ou no caso de Salvador, dos dois, que celebra a participação popular nessa guerra.
E aí tem um elemento importante, porque o 2 de julho acaba se contrapondo ao 7 de setembro. 7 de setembro é um ato de um nobre português e o 2 de julho é resultado da participação de indígenas, de negros, de negras, de pessoas pobres, livres, de vários lugares. Sendo assim, a guerra consolida a independência. Talvez não fosse possível pensarmos num Brasil como a gente vê hoje, caso a guerra da Bahia tivesse tido outro fim.
Na festa do Dois de Julho, as categorias políticas levam suas faixas, os movimentos sociais, os partidos de oposição, partidos de situação, disputam espaço. Isso sempre houve na festa. Então, ela de alguma forma é uma festa de celebração, mas também uma festa de afirmação política das pautas populares.
Larissa Silva: partindo da ideia de que memória é uma disputa de poder, quem constrói tem algum poder ou quer ter algum poder. E com essa base, né, você acha que o Brasil conhece e reconhece todo esse processo histórico? Você acha que a gente conhece assim, pode dizer que uma pessoa lá de São Paulo, conhece esse processo histórico, sabe quem foram as heroínas? E se não, por que você acha que a gente não sabe disso?
Sérgio Guerra Filho: Eu vou começar pela última parte, Larissa. Por que que a gente não sabe disso? Porque a gente tem um uma série de mitos, eu vou chamar assim, de um ecossistema de mitos que constituem a narrativa de uma história pacífica e ordeira, onde o progresso é sempre fruto da boa vontade das elites ou de grandes acordos e apertos de mão.
O 7 de setembro é um deles, o mito do 7 de setembro que é sintetizado no grito do Ipiranga, acaba calando outras expressões. O 7 de setembro se eternizou no quadro do Pedro Américo, que eu acho que todo mundo no Brasil, se fechar os olhos, consegue lembrar daquela imagem, de Dom Pedro nas barrancas das margens do Ipiranga com a espada em cima de um cavalo, aquela cena épica.

Pedro Américo realmente montou um ícone da história brasileira que talvez seja a imagem mais conhecida pelos brasileiros, porque circula, eu não conheço um livro didático que não tenha essa imagem ou que não comece com essa imagem o capítulo sobre a Independência do Brasil.
Mas de fato, o que é que esse grito do Ipiranga cala? Eu considero que tem três elementos aí. Primeiro, ele cala todo o processo que ocorreu nas outras províncias para além do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nesse sentido, a guerra da Bahia, a batalha do Jenipapo, no Piauí, a esquadra de Cochrane ameaçando bombardear Belém, as disputas no Ceará e no Maranhão, e, enfim, a própria Confederação do Equador (porque de alguma forma pode ser vista como um resultado de uma independência mal amarrada, digamos assim), essa história, essas histórias, todas são apagadas. Um território vasto como o do Brasil, seria difícil que esse grito resolvesse as questões ligadas à estrutura colonial escravista, agroexportadora, elitista, aristocrática, que o Brasil até hoje briga para resolver.
A segunda coisa é o protagonismo popular. Minha dissertação é justamente sobre a participação do povo na guerra de independência. Quer dizer, a participação de indígenas fica apagada, a participação de negros e negras, a participação de mulheres fica apagada, com exceção de Leopoldina, salvo engano, (uma participação, digamos assim, palaciana, de uma imperatriz, de uma princesa que vai virar imperatriz) e mais nada. Assim, o espaço do protagonismo feminino, indígena, negro é retirado.
E um terceiro que eu acho assim muito significativo, que é a ideia de que a independência foi um processo pacífico. Mas houve guerra, houve derramamento de sangue. Esse ecossistema mítico de um Brasil pacífico, cordial – parafraseando Jorge Ben Jor: “abençoado por Deus e bonito por natureza” –, esse Brasil onde não há racismo, esse Brasil onde não há luta de classes, ele precisa olhar para essa história, ele precisa olhar para a guerra de independência, ele precisa olhar para a os Malês, ele precisa olhar para guerra de Canudos, ele precisa olhar para o massacre de Eldorado Carajás, porque é isso, essa mitologia que diz que nós somos um povo pacífico e ordeiro está em contradição com a realidade.
Somos um país recordista em feminicídio. Somos um país onde o racismo não foi ainda superado e as pessoas ainda ficam fazendo discursos contra as cotas, achando que as cotas sociais seriam suficientes. Esse discurso das cotas sociais e outros tantos, são baseados nessa ideia de que a nossa história tudo pode ser conseguido com acordos. A gente está vendo agora que o Congresso Nacional está fazendo em relação ao povo brasileiro.
Assim, se a gente não for para rua lutar pelos nossos direitos, ninguém o fará. E aí tem uma outra decorrência que eu acho muito cruel: toda vez que um grupo social se levanta pelos seus direitos, sejam os indígenas, sejam os camponeses sem terra, sejam as pessoas de periferia que lutam por direito à saúde, por direito à educação, esses movimentos são criminalizados. Então, os indígenas que lutam pela sua terra, os camponeses que lutam pela sua terra são criminalizados, as pessoas que lutam pelo seu salário, as greves…
E veja, quando falo de greve, estou falando de um movimento que é legal porque tem uma legislação que ordena como deve ser uma greve e, mesmo assim, as greves são o tempo todo criminalizadas. Então esse é um Brasil que foi criado em cima dos mitos como o 7 de setembro, como 13 de maio e outros tantos, como se os grandes atos de avanço fossem benesses da elite do Brasil.
De fato, todo avanço é fruto de muita luta. Para chegar no 13 de maio, foi necessário muita luta dos escravizados. Antes da Lei Áurea, houve muita luta. Teve muito quilombo, teve muita revolta. E antes e depois do 7 de setembro também teve muita luta e teve muita morte.
Larissa Silva: Sérgio, depois desse contexto todo, por que você acha que Portugal se preocupa tanto com as falas do Presidente Lula sobre 2 de julho em 2025?
Sérgio Guerra Filho: Eu estranhei muito a reação em Portugal, porque como eu estudo isso, as pessoas foram me mandando material, cortes de programas e eu fiquei com a impressão que isso causou mais impacto em Portugal, do que no próprio Brasil. Eu acho que isso pode decorrer de alguma ignorância em relação ao que foram esses últimos anos no Brasil.
A primeira coisa: fazer alguma alusão de um ato desse como um ato para ganhar votos ou como um ato populista, é ignorar que, de fato, o que hoje está em grande debate do Brasil não passa por uma nova data de independência, passa pela taxação dos super ricos, taxa pela isenção do imposto de renda para quem ganha até certa renda. Passa pela discussão pelo fim da jornada 6 por 1. Esses são os temas que as pessoas estão engajadas.
A repercussão na imprensa brasileira foi uma repercussão meramente de informe: o Presidente Lula mandou essa matéria ao Congresso. O que o governo tem respaldo popular não é uma lei como essa, é no avanço de políticas sociais, o que tem sido muito difícil no contexto atual em relação ao legislativo. Então, essa é a batalha.

Não creio que o presidente tenha ganho nenhum grande contingente de votos por essa ação, mas sim por outras. Por exemplo, pelo fato de agora estar enfrentando o Congresso. Uma outra coisa que eu acho interessante é que esse não foi um ato do Presidente Lula, como se ele tivesse acordado e pensando: “Como vou ganhar votos? Ah, vou fazer uma lei”. Na verdade, isso é um movimento que vem de muito tempo, há muitas tentativas legislativas, desde o começo do século XX, de transformar o 2 de julho, inclusive, num feriado nacional, que nem é o caso do atual projeto de lei. O que está em questão no Projeto de Lei nº 3.220/2025 é o reconhecimento de que houve uma guerra aqui e que essa guerra definiu o fim da tentativa portuguesa de manter alguma posse na América.
Nesse sentido o governo, o presidente Lula, transformou em projeto de lei algo que já é uma demanda de muito tempo. Inclusive, baseando-se nessa reescrita historiográfica da independência como um processo que aconteceu com várias cenas, entre elas, o grito de Ipiranga. Por isso afirmo que há ignorância sobre o que a historiografia, sobre o que historiadores e historiadoras têm escrito sobre a independência nos últimos 20 ou 30 anos. São muitos trabalhos que revelam a participação feminina, participação indígena, participação popular, participação das camadas subalternas, de outros projetos de independência, inclusive mais radicais, de muita rebeldia, portanto, de uma elite brasileira que precisou manter a ferro e a fogo a integridade do império e o seu status quo.
Então, o Brasil não saiu da independência como um país progressista, como um país republicano, como um país democrático. O Brasil saiu da independência como um país reafirmando a escravidão, reafirmando o latifúndio, reafirmando o poder dos homens ricos, da aristocracia.
Havia ainda muita luta a ser travada para que isso fosse superado. Então, de toda forma, isso não foi uma invenção do presidente, como até chegou a ser sugerido por um dos comentadores [do programa Arena CNN], como uma sandice de Lula. Isso foi, na verdade, reflexo de um processo que tem sido construído há muito tempo, nesse últimos 20 ou 30 anos.
O projeto de lei é uma prestação de contas com nós mesmos, é um olhar para trás para destruir ou superar, na verdade, um mito do 7 de Setembro que não dá voz a à complexidade desse processo.
Não é uma prestação de contas com Portugal, mas uma prestação de contas com a nossa própria memória coletiva, a nossa própria história, que foi escrita de uma maneira muito elitista.
Larissa Silva:. Como você acha que devemos e estamos a cuidar da nossa memória? Como construir narrativas construídas pelo povo?
Sérgio Guerra Filho: Eu acho que talvez seja essa a grande tarefa da nossa geração. De alguma forma, isso vem na esteira de uma tendência a desacreditar as ciências humanas. Então, depois de ideologizar todas as questões, porque de fato não existe ciência sem ideologia, nem as ciências exatas, nem as ciências biológicas, desde a produção de vacinas até descoberta de supercondutores ou de alguma energia renovável. Tudo isso também tem viés ideológico e político. Mas, no caso específico dessa questão, o negacionismo aportou e eu não acho que seja uma exclusividade das ciências humanas.
Você não vê um pesquisador das universidades e dos centros de pesquisa brasileiros dizer que não houve ditadura militar no Brasil. Você pode até discordar do termo, se ela foi militar, civil-militar, empresarial etc. Mas é fato que vivemos um regime de exceção e que pessoas morreram e pagaram com a vida por lutar contra isso.
Nesse caso, as reescritas do passado são muito perigosas e dizem respeito a interesses políticos escusos que de fato sempre tendem a diminuir o espaço do debate, a negar a legitimidade do outro de falar, e de destruir um dos fundamentos da democracia que é o contraditório. Eu posso discordar de você e nós vivermos cordialmente com nossas discordâncias e concordarmos naquilo que for possível.
Eu acho que a democracia é essa arte difícil, dura, mas necessária, para que a gente possa viver em sociedade. Então, desse modo, eu acho que o nosso papel é criar cada vez mais canais de diálogo e de debate para que, quando alguém levantar alguma hipótese como essa, seja imediatamente desacreditado, porque isso é um desserviço. Não só à história, mas também à vida em comunidade. É um desserviço à democracia.