No mês de setembro, foi realizado em Luanda a Conferência Internacional sobre Arquivos Históricos dos Estados-Membros dos 9 países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. O Portal Vozes entrevistou Ana Flávia Magalhães Pinto, Diretora-Geral do Arquivo Nacional do Brasil, que nos conta o que será essa rede.
O objetivo da rede é criar um espaço de partilha, troca entre os países que se conectam pela língua portuguesa, mas não só “inegavelmente nós temos um evento colonial que, inclusive, explica a possibilidade de termos uma língua compartilhada, considerando a história, a agência dos sujeitos faz com que o colonialismo, a colonialidade, não dê conta da experiência vivida”.
Reforça que a rede vai em duas direções, “um reconhecimento da realidade e a construção de um instrumento que potencializa a articulação necessária para que a gente saia de uma abordagem abstrata da agenda de patrimônio e arquivos e estabeleça até mesmo canais, que facilitem essa cooperação internacional.
Ana Flávia também comentou sobre reparação história e como esse processo de memória pode contribuir, “e uma maneira da gente lidar com essa agenda da reparação é justamente reposicionar essa memória, que é nacional, mas ela é compartilhada, ela tem escala global e passa por uma reorganização daquilo que se pretende ser como nações ou como comunidade de nações, porque a CPLP, nós sabemos, que se ela simplesmente operasse para fazer a manutenção de um pacto colonial, ela seria uma tragédia e não é isso que os países envolvidos desejam.
Confira a entrevista completa:
Para começar a nossa entrevista, você acabou de voltar de uma viagem à Luanda, Angola, queria que você contasse um pouco de como nasceu a ideia de criar essa rede de patrimônio histórico, de arquivos dos países da CPLP, e como é que foi essa agenda inicial?
Bom, eu acho que é importante a gente recapitular onde que essa agenda dos arquivos, ela encontrou ressonância no âmbito da CPLP. Existe uma área dentro da CPLP dedicada à cultura e dentro desse espaço de debates da agenda de cultura, é que se desenvolvem também as reflexões, as articulações a respeito de patrimônio, e tem um longo percurso.
A gente está há dois anos de a CPLP completar 30 anos, mas se a gente considerar decisões que foram tomadas nas reuniões dos ministros da cultura da CPLP, a exemplo do encontro em Luanda em 2012, Maputo, 2013, novamente Maputo, em 2014, Díli em 2016, Brasília 2018, Luanda em 2022 e São Tomé em 2023, essa agenda dos arquivos, do patrimônio, até mesmo dos arquivos especificamente, tem sido tratada. Ano passado, houve até mesmo na carta de São Tomé, que foi até
Para além desse encontro de ministro, foi no encontro dos representantes de chefes de Estado, houve um elogio a uma iniciativa desenvolvida no Brasil, de um encontro Brasil-PALOP, para pensar em arquivos e cooperação internacional.
É num processo de identificação de demandas ao longo desses anos, que no âmbito desse setorial de cultura da CPLP, se criou a agenda para uma conferência de arquivos históricos, a CPLP em Luanda, e nesse processo de organização da conferência também trabalhou-se pela constituição desta rede. João Ima-Pamzo foi o representante da CPLP na Conferência e conduziu a institucionalização da Rede
Então, veja que nesse processo a movimentação vai em duas direções, um reconhecimento da realidade e a construção de um instrumento que potencializa a articulação necessária para que a gente saia de uma abordagem abstrata da agenda de patrimônio e arquivos e estabeleça até mesmo canais, que facilitem essa cooperação internacional. Isso porque, se a gente considerar a realidade da CPLP, temos temos ora proximidades, ora diferenças. Por que eu acho importante chamar atenção para essas proximidades e diferenças? A primeira proximidade tem a ver com a língua. É, nesse canal aqui é evidente, que a gente tem um conhecimento a respeito, mas não é demais lembrar que a CPLP, ela inclui, além de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, também a gente passa a incorporar a Guiné Equatorial, porque é um território em que o português também é falado, além do espanhol e outras línguas, porque a gente está falando em língua oficial portuguesa.
Nesse contexto, a língua é importante porque, quando a gente pensa na gestão de documentos, na gestão desse patrimônio documental dos diferentes países, a gente precisa ter algumas referências comuns, esse compartilhamento da língua, possibilita uma maior facilidade para que estabelecemos projetos de articulação, uma vez que categorias utilizadas, categorias de descrição, indexação, etc., elas podem ser pactuadas numa língua comum.
Além disso, por razões históricas, pelo processo histórico vivido, eventos que são de interesse comum entre todos os países também. Inegavelmente nós temos um evento colonial que, inclusive, explica a possibilidade de termos uma língua compartilhada, bom, considerando a história, a agência dos sujeitos faz com que o colonialismo, a colonialidade, não dê conta da experiência vivida.
Mas existem temas sensíveis que precisam ser trabalhados, até mesmo numa perspectiva daquilo mesmo que constitui essa comunidade, se a gente considerar que é da totalidade dos países a gente tem os países africanos que compõem os PALOPs, que também estão sub agrupados, nós temos o Brasil que é uma nação da sexta região da diáspora africana, então nós temos uma experiência africana, tanto continental quanto diaspórica, que é bastante marcante e que, por certo, também produz ressonâncias em Portugal, Timor-Leste, e isso, portanto, no caso brasileiro e considerando que estamos em plena, estamos aí encerrando uma década de afrodescendentes trabalhando pela atualização dessa década, nós temos questões que são interessantes e caras de serem tratadas, uma vez que essas questões, a gente goste ou não, elas são constitutivas das nossas experiências nacionais.
É nessa chave que esse, adiantando um pouco, talvez, às suas perguntas, que essa rede de arquivos nacionais da CPLP, ela se constitui como uma oportunidade, até mesmo, de a gente iluminar experiências individualizadas e superar desafios que os países encontram, porque aí a gente sai das proximidades e vai também pensar nas diferenças.
Países como Portugal e Brasil já dispõem de uma estrutura tecnológica de organização dos arquivos há mais tempo. O Brasil, por exemplo, o Arquivo Nacional do Brasil, ele conta hoje com 186 anos. Em janeiro alcança a marca de 187 anos. Mas existem, dentro da CPLP, experiências em que a gente não tem um arquivo nacional constituído nesses termos.
É por isso que o documento reconhece até mesmo instituições congêneres, a exemplo do que nós temos na Guiné-Bissau. Guiné-Bissau, como tem evidenciado o professor Iaguba Djalo, você tem uma instituição responsável pelos documentos nacionais, que está vinculada a uma fundação de arquivos e bibliotecas. Eles têm feito um esforço profundo para organizar uma legislação que fortaleça essa institucionalização, mas não há a exemplo do que acontece no Brasil, em Portugal, ou mesmo em Cabo Verde e Angola, um arquivo nacional da Guiné-Bissau. E isso, a gente também tem uma outra diferença. Existem países em que você tem uma estrutura tecnológica para operar nesse universo dos arquivos digitais, dos ciber arquivos, Brasil avança, Portugal também, mas há países em que não temos nem sequer um site para esses arquivos, quanto mais uma base de dados.
É nesse sentido em que é que essa rede de arquivos da CPLP, ela é criada numa perspectiva de não só estimular a institucionalização dos arquivos nacionais onde a gente tem instituições congêneres ou em alguma medida enfraquecidas, uma vez que em todos os lugares do mundo os arquivos estão sempre numa situação de relativa insegurança, porque a gente pode falar sobre isso daqui a pouco, que é a imagem de que arquivo é depósito. Arquivo é muito mais do que um depósito, mas por ser entendido como um depósito, muitas vezes ele é negligenciado, porque como depósito parece que ele só guarda papel velho com importância só para um grupo muito restrito de pessoas, mas não é isso, não é essa a realidade dos arquivos.
E aí nesse sentido, essa rede, além de fortalecer as lutas internas nos países pela institucionalização, vai criando uma oportunidade de que o compartilhamento das informações referentes aos acervos custodiados pelos diferentes países, ela seja feita sem que a soberania dos Estados nacionais sobre o seu patrimônio documental se perca. Porque nessa era de que muito se fala em digitalização, digitalização, digitalização, muitas vezes essas instituições são expostas a projetos de digitalização que acabam enfraquecendo-as ainda mais. Em que sentido? As instituições, sejam universidades, sejam empresas privadas, organizações de diferentes naturezas, têm interesse numa documentação, vão ao local, digitalizam, compartilham na sua própria base de dados e isso não é associado a uma ação do próprio Estado Nacional.
Isso é algo que essa rede está bastante atenta e podemos falar o que está previsto, mas eu já destaco um dos primeiros objetivos é justamente criar e implementar um espaço digital comum na página da CPLP que seja possível dar notícia das atividades, mais eventualmente possa ter uma plataforma, para que, com base nessa definição de critérios, de descrição arquivística, a gente possa compartilhar e dar visibilidade a esses patrimônios documentais no plural, isso pode ser trabalhado de inúmeras formas, considerando eixos temáticos, temas sensíveis, enfim, agendas que são caras, ao próprio, à própria comunidade.
Tomaz Silva/Agência Brasil
Você já antecipou que uma das ideias é criar um espaço digital dentro do site da CPLP com a agenda de vocês, mas vai existir um arquivo compartilhado assim, onde vocês vão selecionar, cada país seleciona um arquivo e compartilha nesse espaço ou não, cada um tem o seu e vocês direcionam?
O que acontece, um arquivo unificado é algo que são possibilidades que estão sendo até mesmo elaboradas nesse universo dos cyber arquivos. Mas é complicado a gente ignorar as experiências nacionais. Por isso que eu tenho falado da possibilidade de, a partir de projetos com um perfil específico, a gente ir alimentando esses espaços comuns. Por quê? Em alguma medida, a gente pode criar um ambiente em que se dê notícia das bases de dados dos respectivos arquivos e isso já é importante, e é possível também se trabalhar, numa espécie de recorte, que conecte todos os arquivos, de modo a demonstrar essa intersecção.
Quando a gente pensa em experiências que têm acontecido a partir de outros projetos, a gente tem esforços de demonstração de acervos de mulheres no mundo. E há experiências de arquivos que se juntam para evidenciar esses pontos de contato para iluminar, o próprio Arquivo Nacional tem feito um esforço a respeito, o Arquivo Nacional do Brasil, é importante dizer, fez em outros momentos e segue trabalhando para evidenciar, essa agenda comum no que diz respeito aos arquivos da ditadura militar.
Essas são experiências que, mais do que duplicar o registro, a gente consegue evidenciar esses pontos de conexão, sem esvaziar as iniciativas nacionais. Isso é bastante importante. Porque, às vezes, a gente fica na expectativa de que o que nós precisamos é de um arquivo único, um arquivo central. Essa é uma imagem que foi desejável, sobretudo, quando nós estávamos numa era de arquivos analógicos. No momento em que nós temos arquivos, se a gente tem passado por uma transformação digital dos arquivos, esse reconhecimento das bases de dados e a garantia de interoperabilidade entre as bases, ela é algo que não é só um desafio, mas é uma meta e é uma metodologia de articulação. Essa é uma agenda, por exemplo, quando a gente pensa nessa rede de arquivos nacionais da CPLP, ela é muito cara para a gente dar visibilidade justamente a essa demanda de transformação digital dos arquivos.
Como eu mencionei há pouco, a gente ficou com essa ideia de arquivo como o lugar em que a gente deposita documentos que não estão sendo mais utilizados nas rotinas da administração pública. De que arquivo é absolutamente o lugar onde se guardam os documentos de governo, ponto.
Bom, pode ser isso, mas pode ser muito mais do que isso. E tem sido. Isso é importante dizer. Tem sido. Por quê? Nas suas ações cotidianas, até mesmo para dar forma às ações de governo, as instituições lidam com registros que muitas vezes são externos a ela, mas que ficam incorporados ao seu acervo. Também existe um esforço de interlocução com a sociedade civil que permite incorporar também acervos pessoais, privados, comunitários, aos acervos dos arquivos nacionais. E para que isso aconteça, a gente tem uma tarefa dos arquivos que muitas vezes as pessoas ignoram, que é a organização da gestão documental no momento em que os documentos estão sendo produzidos. Essa massa documental vai sendo elaborada. Os arquivos atualmente, os arquivos públicos, em especial os arquivos nacionais, eles têm sido demandados, já tem algumas décadas, mas com essa ação, esses processos de transformação digital, isso se acentua, eles têm sido demandados a atuar dessa maneira, como orientador, como órgãos centrais da gestão, de sistemas de gestão documental nacionais, de sistema de arquivos nacionais.
É nessa chave que eu acho importante a gente falar que a CPLP, essa iniciativa ajuda a trazer algo que normalmente é associado só à agenda de cultura, fazer com que isso seja percebido também como uma agenda estratégica de gestão pública, porque sem memória, dificilmente os países conseguem lidar com seus desafios de médio e longo prazo. E lidar com essa documentação, essas séries históricas que podem ser acionadas por meio dos arquivos, considerando os desafios de países que têm pela frente a missão de desigualdades, pobreza, enfim, uma série de vulnerabilidades sociais internas e compartilhadas, essa documentação é muito importante.
Até mesmo para a gente evidenciar os caminhos que devem ser priorizados em agendas de cooperação internacional no âmbito daquilo que nós temos chamado de sul global. Quando a gente considera a realidade da CPLP, a maioria dos países são expressões do chamado sul global. E como, então, a gente consegue fazer dos arquivos um instrumento de aceleração do reconhecimento dessas agendas e da superação de entraves que são crônicos, mas que nem por isso devem ser lidos como insuperáveis.
Eu acho importante dizer que, pensando nas experiências, nos episódios recentes que nós tivemos, a declaração do presidente de Portugal no início desse ano, ela foi muito importante para iluminar os desafios que a comunidade tem. Há um trauma da colonização, há um trauma do escravismo que atravessa todos os nossos países e que dificilmente a gente vai resolver por meio de uma reparação monetária e individualizada. E uma maneira da gente lidar com essa agenda da reparação é justamente reposicionar essa memória, que é nacional, mas ela é compartilhada, ela tem escala global e passa por uma reorganização daquilo que se pretende ser como nações ou como comunidade de nações, porque a CPLP nós sabemos que se ela simplesmente operasse para fazer a manutenção de um pacto colonial, ela seria uma tragédia e não é isso que os países envolvidos desejam. A gente está num processo de valorização da língua, a gente sabe que inclusive nos debates internacionais, os países de língua portuguesa às vezes têm uma certa dificuldade de afirmação da sua relevância, a gente trabalha, obviamente, pela possibilidade de termos interlocutores diretos com a nossa língua, desde a nossa língua comum, mas existem outras questões também que essa articulação no âmbito E essa agenda da memória, ela me parece, tem nos parecido, é fundamental, foi o que nós sentimos bastante, mais esse momento de encontro lá em Luanda, no mês de setembro.
Nós ainda não temos a língua portuguesa como língua oficial da ONU, ainda temos muita luta pela valorização da língua…
E algo que o Brasil pela sua dimensão, somado às outras aos outros países da comunidade, tem o potencial de desnaturalizar. E se a gente considera o caráter inovador dessa rede de arquivos nacionais da CPLP, isso pode ajudar a evidenciar.
Nós sabemos a importância do Brasil nos debates sobre o impacto da escravidão, o impacto da experiência colonial nos países que lutaram, que hoje são nações independentes, etc. E nisso a gente ganha uma nova relevância, promove uma visibilidade daquilo que é vivenciado em comum, de modo a se posicionar num debate mais amplo.
Porque nós não podemos nos acostumar, acho que, com essa experiência de que somos escanteados, porque boa parte das outras nações falam ora inglês, ora espanhol, e há um grupo menor. Esse grupo menor, ele pode ser numericamente menor, mas ele fala de experiências nacionais que são estratégicas. A gente está falando do maior país da América do Sul, um dos maiores da América Latina. A gente está falando de um conjunto nada desprezível de países africanos e estamos falando também do Timor-Leste e de Portugal. também do Timor-Leste e de Portugal, né? Ou seja, você tem Ásia, África, América e Europa.
São experiências que vocalizam, né, um percurso de escala global. Que as iniciativas, elas não são apenas para uma operação interna, mas justamente por um fortalecimento interno que projete, dê visibilidade à relevância que temos.
Voltando ao arquivo, que você falou que vão trabalhar, vou chamar de projetos, não sei se é essa palavra, mas eu já comecei a pensar que, por exemplo, ano que vem, tenho 50 anos da independência de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Já queria passar no Arquivo Nacional do Brasil para ver o que tem neste período. Já tem algum projeto dessa rede dedicado a este período?
A gente saiu de Angola com uma série de ações a desenvolver, entre essas ações, nós temos o desenvolvimento de projetos de cooperação multilateral, promovendo a partilha de recursos e conhecimentos. É multilateral porque, inclusive, não obriga que qualquer iniciativa tenha que articular todos os países, mas todos os países precisam estar atentos para fortalecer e dar visibilidade a essas iniciativas.
Nesse sentido, isso que você está dizendo e a julgar pelo Arquivo Nacional do Brasil tem, certamente essa pode ser uma oportunidade de já iniciar e contribuir para esse espaço digital comum, de dar notícia desses pontos de contato, porque o Arquivo Nacional possui documentos por meio dos quais o Brasil vivenciou, acompanhou essas lutas por independência. Ano passado a gente teve, por exemplo, a visita de uma delegação de Gana, não da CPLP, mas de Gana, em que a gente levantou uma documentação e todo mundo ficou muito impressionado com o tipo de documentação que havia aqui.
Assim como, quando a gente pensa os contatos com o Senegal, então a gente está pensando, língua inglesa, língua francesa oficial, pensando em línguas oficiais, língua inglesa, língua francesa, português, então, tem muita coisa. Então é uma oportunidade, sim.
A reunião, esse ano, inclusive, aconteceu, ela começou no dia 18 de setembro. As delações chegaram no dia do herói nacional, o Agostinho Neto e esse projeto de nações, essas reflexões sobre nações independentes foram retomadas em diferentes momentos dos debates, ainda que haja uma diversidade política entre os representantes dos países, então isso é algo interessante.
Tem algo que é interessante porque assim, a gente tem um outro eixo, que é Programa de Formação e Capacitação Técnica para profissionais de arquivos. Quando a gente fala em formação e capacitação técnica, não é só operar maquinário, não é só aprender a desenvolver tabelas de temporalidade, código de classificação. Mas até mesmo a facilitar essa abordagem dos acervos de maneira voltada ao acesso à informação, à difusão e isso é muito, muito importante, porque isso, inclusive, assim, você tem uma articulação de redes de arquivos nacionais, mas os arquivos nacionais, eles se constituem a partir da interlocução com outras instituições. No caso brasileiro, por exemplo, você tem os arquivos do Ministério das Relações Exteriores, eu estive em Angola também, a gente fez uma visita ao Instituto Guimarães Rosa, que é responsável pela agenda cultural do Itamaraty e lá a gente tem muitos referenciais até para pensar e muito mais, e a gente está vivendo um momento interessante para o Brasil, que pela primeira vez o Instituto Rio Branco ofereceu uma cadeira para a formação de diplomatas, cujo título é História e Pensamento Africano e Afro-Brasileiro, que é, obviamente, pautado nos debates do internacionalismo, do transnacionalismo, mas que aponta para uma sensibilidade para lidar com essas conexões Brasil, continente africano, e por certo, no momento que a gente pensa esse Brasil-África, a gente está pensando todo esse mundo atlântico, e obviamente avançando também na possibilidade de pensar conjuntamente com a Ásia, em especial o Timor-Leste, se a gente considerar a realidade da CPLP.
E na turma mesmo mesmo a gente tinha representantes, de estudantes, na verdade diplomatas que estão eram cursistas também dos PALOPs. Você tinha todos os países africanos incluindo a Guiné Equatorial, então a gente tem uma uma oportunidade de não só, a partir dessa rede, falarmos entre nós, mas também promover ações de sensibilização que se dirijam a esses representantes da própria diplomacia brasileira, das instituições de ensino e pesquisa, dos veículos de comunicação. Porque a partir desse encorajamento, que parte dessa rede, a gente pode ir promovendo ecos, porque, eu volto a dizer, o propósito da rede não é se fechar em si mesmo, é justamente para permitir uma maior visibilidade do potencial que os arquivos têm para a promoção de cidadania, direitos humanos, etc, etc.
Semanas antes, no Brasil, tinha acontecido a Conferência Regional das Américas, a etapa da Conferência da Diáspora Africana nas Américas, que é uma etapa preparatória para a Conferência Pan-Africana, que ocorre agora no mês de outubro, no Togo. Naquele contexto, também se tirou uma recomendação para a constituição de redes de arquivos, que conectam todas essas discussões entre os países. Aí a gente já não está falando só de países de língua portuguesa, mas pensando todo um universo aí que remete à diáspora com suas múltiplas línguas e que o Brasil teve um protagonismo. Ou seja, um representante da CPLP teve um protagonismo em pautar essa agenda.
A gente mal saiu de lá e conseguiu institucionalizar a rede da CPLP, que em sua maioria é de países africanos, quer dizer, na sua totalidade. Portugal é um território da diáspora africana. Vamos assumir.
Você falou já de reparação histórica, eu só queria confirmar se isso é uma pauta dentro mesmo da rede?
É, embora esse seja um tema sensível, você sabe disso, você tem uma postura, por exemplo, de países como Brasil, Guiné-Bissau e Angola, que até por conta da relevância de seus acervos, tratam abertamente da importância dessa ação. E quando a gente dialogou no âmbito dos PALOPs aqui no Brasil, isso ficou ainda mais, foi falado mais abertamente ainda. Mas o fato é que essa é uma agenda necessária, porque a própria, quando a gente considera a agenda de memória, direito à memória, no âmbito da cooperação internacional, ela nos conduz aos debates que deram origem ao Conselho Internacional de Arquivos, o ICA. O ICA foi constituído, ele está com 76 anos, e se faz a conta, a gente efetivamente associa a criação do ICA a um esforço de preservação da memória para evitar que um trauma com o vivido no contexto da Segunda Guerra Mundial possa se repetir. Por quê? Muito daquela experiência traumática se deu no esforço de retirar, apagar a memória e, portanto, a legitimidade da existência de grupos nos territórios em que ocupavam. Um apagamento da existência.
E aí, nesse sentido, quando a gente opera numa cooperação internacional com foco na promoção do bem comum, a superação de políticas de rebaixamento, minorização de países africanos, de países do sul global nessa geopolítica, é algo caro, sobretudo aos países que são vulnerabilizados por essa dinâmica. O Brasil, até nesse momento que nós vivemos, a representação brasileira tem absolutamente, essa tranquilidade a representação brasileira tem de falar abertamente sobre a necessidade de reparação, considerando que, no atual momento, a despeito dos desafios, houve um gesto de institucionalização de retomada do Ministério da Igualdade Racial, com toda a nomenclatura de Ministério, pela primeira vez, porque, numa experiência anterior, nasce como uma Secretaria Especial com status de, o que inclusive, para a efetividade do reconhecimento, isso
comprometeu, nesta nova etapa, a gente já tem um Ministério da igualdade racial, temos o Ministério dos Povos Indígenas, temos o Ministério dos Direitos Humanos, e temos, sobretudo, um acumulado produzido pela sociedade que demanda ações de reparação. Haja vista os debates que foram mobilizados pela sociedade civil a respeito do envolvimento do Banco do Brasil com o tráfico.
Enfim, num país fundado na escravidão, todas as instituições estão envolvidas, incluindo o Arquivo Nacional. Não como financiador, mas como aquele que tem a responsabilidade de lidar com esses registros.
E é importante dizer, eu gosto sempre de falar isso, num país escravista, ainda que Rui Barbosa tivesse realmente mandado queimar tudo, ele tinha que ter tocado fogo no Brasil inteiro para apagar os registros da escravidão nesse país.
Então, a gente tem como, sim, e essa agenda da reparação, que envolve lidar com os traumas da escravidão, mas também com as continuidades das violências e o racismo nisso tudo é central, é uma agenda que, ora os órgãos do Estado precisam ser mais ou menos pressionados para dar respostas, mas a pressão está aí, é uma perspectiva global.
A última que eu vou perguntar é sobre o direito à memória. A gente sabe, você já falou várias vezes aqui, de que cada país do CPLP vive o seu processo, com golpes, guerra civil em alguns lugares. São contextos diversos e que a memória vai se perdendo e vai sendo construída de uma forma. Como é que você vê esse direito à memória nesse espaço, nessa rede partilhada?
O direito à memória segue sendo um patrimônio. A agenda de direito à memória está associada a um patrimônio e como todo e qualquer patrimônio, ela é objeto de disputa. Ele é objeto de disputa. Por isso que não está dado, quando eu digo que há da parte do Brasil uma postura de trazer para o centro do debate, posicionar essa agenda, não é que as coisas estejam estabilizadas, mas ao mesmo tempo, é importante dizer que as nações são polifônicas, e os registros de memória são polifônicos também.
Por que eu estou chamando a atenção para essa polifonia do território, da experiência nacional e dos registros? Porque o vivido, ele está dado, mas ele só assume força de existência no tempo presente se ele é mobilizado. E uma das coisas que mais me surpreenderam nessa viagem para Angola foi descobrir o encantamento que as pessoas têm pelo que o Brasil faz.
Porque no Brasil vocês têm uma lei de ensino em história e cultura africana e afro-brasileira, em que se trabalha com a questão da ancestralidade, com jogos africanos, e nós aqui em Angola não temos isso. Como assim? Porque no Brasil a gente está achando que está muito aquém do que a gente precisa, mas está no currículo.
O nosso desafio é avançar, fazer valer o que está estabelecido na lei e fortalecer essas iniciativas. Mas essas iniciativas não são irrelevantes, porque, veja bem, poucas e fracas já atravessaram o Atlântico e acenderam uma chama que eu fiquei, de fato, emocionada quando eu tive esse relato. E quando esse relato, ele encontra eco também em perspectivas que estão sendo demandadas em Cabo Verde, Guiné-Bissau, na Conferência da Diáspora mesmo, eu tive um diálogo com um professor que está atuando aqui na Universidade Federal da Bahia, e ele falava dos riscos de fechamento dos cursos de História em Cabo Verde. Isso é algo para a gente se atentar nesse momento, porque como que a gente vai ter uma boa mobilização dos acervos, dos arquivos de Cabo Verde, se não tem gente para mobilizar, inclusive internamente? Vai se produzir, vai continuar alimentando uma produção sobre a história de Cabo Verde, não feita pelos próprios cabo-verdianos?
Então assim, tentando dar uma resposta bem direta à sua pergunta, a constituição de uma rede de arquivos nacionais da CPLP, ela abre janelas e, ao mesmo tempo, ela reconhece portas abertas em outros espaços, para que essa cooperação internacional, ela lide, ela seja um instrumento para que os países das comunidades tenham ferramentas para lidar com desafios que são constitutivos, porque se não fossem desafios entendidos como importantes, a própria rede não seria criada. Uma própria rede não estaria sendo criada no sentido de preservar a documentação.
Seria interessante, inclusive, perder essa documentação, evitaríamos ter que lidar com aquilo que temos sido, com os registros do que temos sido. Nisso já há um avanço. E essa coragem de iluminar a importância da preservação desse patrimônio documental já é algo muito caro para que os diferentes segmentos possam promover as disputas de memória e de história, que são essenciais para a construção de futuros para as diversas democracias, para as diversas formações nacionais que nós temos diante de nós.