A liberdade religiosa tem de ser protegida e valorizada, mas não pode ser usada como argumento para práticas que resultem na discriminação de outras pessoas, especialmente aquelas que estão no exercício de funções públicas. É o caso dos homens imigrantes que se recusam a falar com mulheres – ou de cidadãs e cidadãos que exigem ser fotografados com símbolos religiosos como hijab ou turbantes. Os imigrantes não estão dispensados de cumprirem todas e cada uma das disposições civilizacionais, humanistas, laicas e democráticas que Portugal construiu desde o 25 de Abril.
Têm-se verificado em diversos balcões da Agência para a Integração, Migrações e Asilo – AIMA episódios recorrentes, e com cada vez maior frequência, de homens muçulmanos que se recusam a ser atendidos por funcionárias pelo simples facto de estas serem mulheres. Utilizam quase sempre como estratégia simular a não compreensão até que apareça um funcionário homem, com o qual, então, interagem prontamente.
Ao mesmo tempo, os serviços do Estado têm permitido que em documentos de identidade seja aceite a utilização de fotos de cidadãs e de cidadãos envergando símbolos religiosos, como o hijab, no caso das mulheres, ou o turbante, no caso dos homens. Apesar de as regras disporem o contrário, como muitos se recusam a retirar os adereços no momento da recolha da imagem, alguns funcionários acabam por aceitar essas fotografias: esta permissão contraria o que está estabelecido como padrão de identificação neutra, que é o que se deve aplicar a todos os cidadãos.
Estes casos levantam questões graves sobre a conjugação do respeito pela liberdade religiosa e a defesa de valores democráticos fundamentais e indeclináveis, como a igualdade de género e a laicidade do Estado.
Em Estados democráticos e laicos, a igualdade de tratamento e a dignidade são valores essenciais. A Constituição da República Portuguesa, as legislações nacionais e europeias e documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos defendem o direito de todos a serem tratados sem discriminação de género, religião ou origem.
Ora, quem se recusa a ser atendido por uma funcionária mulher está a exercer um tipo de discriminação que é inaceitável, por entrar em choque com esses valores. Em espaços públicos, especialmente em serviços oferecidos pelo Estado, qualquer cidadão deve sentir-se livre para professar a religião que entende – mas, ao mesmo tempo, deve cumprir integralmente as regras e as leis da república que o acolhe.
Isto não significa que a lei se sobreponha à religião ou às convicções de cada um: significa simplesmente que, quando uma cidadã ou um cidadão interage em Portugal com a máquina do Estado, a religião e as tradições do país onde nasce, ou de onde é a sua família, não são para ali chamadas.
Cada cidadão pode frequentar como entender a igreja, a sinagoga ou a mesquita. Na república, porém, são todos iguais perante a lei – e têm de se comportar de acordo com ela. Isto é válido não só para balcões de serviços: vigora igualmente nas escolas, nas universidades e politécnicos, nos hospitais ou no Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Era só o que faltava que um qualquer homem muçulmano pudesse vetar as funcionárias encarregadas de o entrevistar para lhe encontrar um emprego compatível ou lhe atribuir um subsídio!
Portugal está a fazer um esforço notável para integrar cada vez melhor os imigrantes que o procuram e que hoje são já mais de um milhão a viver no país. Neste esforço é muito importante o ambiente de neutralidade que o Estado deve manter no seu trato com os cidadãos, sejam eles nacionais ou imigrantes.
A liberdade religiosa tem de ser protegida e valorizada, mas não pode ser usada como argumento para práticas que discriminem outras pessoas, especialmente as que estão no exercício de funções públicas. A convivência democrática exige um equilíbrio entre o respeito pela diversidade e a defesa dos direitos fundamentais de todos.
A laicidade exige que o Estado se mantenha neutro perante crenças e símbolos religiosos, para garantir um tratamento igualitário a todos os cidadãos. Ao permitir exceções, o Estado português corre o risco de abrir precedentes que comprometem a uniformidade e a imparcialidade esperadas das suas normas de identificação, estabelecendo uma diferença de tratamento entre os cidadãos.
Assim como um cidadão autóctone – seja ele caucasiano, cigano, ou pertencente a outra minoria – não vê aceite uma foto de identidade tirada com uma boina, um chapéu tradicional ou um barrete de campino – por mais heranças culturais que estes transportem – o mesmo se deve passar com outro tipo de adereços.
Quando práticas culturais ou religiosas colidem com direitos fundamentais, como a igualdade de género, cabe ao Estado assegurar que estes direitos prevalecem. O contrato social das democracias liberais não permite concessões que enfraqueçam a igualdade e a dignidade que a todos é devida. As adaptações culturais devem respeitar as normas democráticas e não contrariar valores fundamentais das democracias constitucionais.
A sociedade democrática não pode ser comprometida por práticas discriminatórias, mesmo que justificadas pela religião ou pela cultura. A laicidade e a igualdade de género precisam ser defendidas sem concessões, reafirmando a neutralidade e a imparcialidade como fundamentos da coesão social e do respeito mútuo.