Por Samantha Buglione
“Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!“
Escreveu uma freira portuguesa para um soldado francês, no século XVII.
E não seria o amor uma espécie de desgraça? A desgraça do descontrole e da insegurança, do imprevisível? Um tipo de perdição, consciência de um vazio, de desejar o que não existe e criar, através de um outro, sentidos que nos faltam. O dar o que não se tem a alguém que não o quer, diria Lacan. O amor do desejo do outro, de um desejo que é falta. O desejo do que falta, praticamente estamos a falar de um clichê. Por sorte em português temos a palavra saudade. A poesia é sempre e por causa do amor, escreveu o poeta moçambicano Guita Jr., e não seria todo o amor uma espécie de saudade, mesmo quando presente?
“Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa… ao privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há?“
Continuou a freira na sua primeira carta. O amor causa e desperta. A dor destes amores partidos habita o paradoxo do encontro: cada encontrar traz em si uma partida. Melhor não amar, certamente diria Bucowski. Mas não há controle sobre o isso. O amor é uma desgraça, afinal. Ama-se no outro mais que ele próprio, ama-se o que este outro nos provoca. Me arriscaria a dizer que as cartas da freira foram a liberdade possível. O ato subversivo que só os que amam são capazes de cometer.
Mariana Alcoforado (1640-1723) escreveu cinco cartas para o jovem Noël Bouton de Chamilly. As cartas foram publicadas como Lettres Portugaises em 1669, em França, por Claude Barbin. Mas a autoria hoje é presumida. Rousseau, por exemplo, por achar as cartas belas demais para serem escritas por uma mulher, negava-lhes a autoria atribuindo a escritores franceses ou portugueses como Alexandre Herculano ou Camilo Castelo Branco. De qualquer maneira, Mariana existiu e desde a publicação das cartas sucederam-se por toda a Europa edições em diversas línguas inspirando poetas e artistas. O amor maior, grande de mais para um só ser, escreveu o poeta Reiner Maria Rilke sobre as cartas.
Em 1972 as cartas da freira foram revisitadas por três escritoras portuguesas sob o título de Novas Cartas Portuguesas, uma obra questionadora das posições e condições das mulheres, sobre destinos impostos e sobre os sentidos de amor, além de ser uma evidente oposição ao fascismo do regime salazarista. O que levou as suas autoras — as três Marias: Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno — a severas sanções as vésperas da Revolução dos Cravos (1974). As três marias subverteram a ordem de autorias e autoridades o que, em certa medida, seria uma tardia, mas contundente, resposta a Rousseau.
Sabe-se que Maria Alcoforado foi obrigada a entrar para um convento aos onze anos a fim de ficar a salvo da guerra, mas, principalmente para honrar o testamento materno que a nomeava freira do Convento da Conceição. Mas, foi a chegada à cidade de Beja de um regimento francês que permitiu um tipo de fuga da clausura imposta. O desejo sempre acha um caminho.
Escrever pode ser a melhor forma de esquecer. Para Fernando Pessoa a literatura é a maneira mais agradável de ignorar a realidade. Uma fuga ou uma sublimação, a vivência possível diante do interdito de um desejo.
Quis o destino que da janela do convento que dava para as portas de Mértola, na cidade de Beja, Mariana visse o jovem oficial francês. A história preservou as cartas, preservou o que ficou dos riscos assumidos, das visitas proibidas de um homem a cela de uma mulher destinada a deus, e fomentou a imaginação dos leitores sobre detalhes que somente Mariana e Bouton saberiam confessar. Quando descobertos o jovem oficial, temeroso por sua vida diante do escândalo e da poderosa família dos Alcoforados, deixa Portugal. Mariana esperou e escreveu, a resposta foi o silêncio
“Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te em toda a parte (…) Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda (…) Desafio-te a que me esqueças completamente. Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos.“
Na filosofia pensa-se o amor a partir de quatro vocábulos gregos: Eros, Agaphe, Philia e Storge. Há uma tendência em hierarquizá-los e pensá-los moralmente. Ousaria dizer ser mais produtivo estudá-los como parte de uma paleta de cores. O amor como um palco composto por diferentes personagens e enredos, com simetrias e assimetrias, mas sempre, sempre dentro de relações.
Mas, o que é dito na literatura sobre o amor? É possível perceber as diferentes configurações de amor produzidas pelos clássicos, pelo cristianismo, pela sociedade de cortesia (séc. XII), pelo amor-paixão romântico (XVIII-XIX) e pela contemporaneidade. Sabemos dos amores trágicos, do amor cortês, do romantismo e dos papéis sociais. O que talvez passe despercebido é que antes de 1800 somente quatro mulheres escreveram em língua portuguesa: Bernarda de Lacerda (1565-1614); Soror Violante do Céu (1601-1693); Mariana Alcoforado (1640-1723) e Teresa da Silva e Orta (1711-1793). O amor dito seria dito por alguém? Sandra Gilbert e Susan Gubar (1979) estudaram escritoras do século XIX; e Kooij (1996) realizou o estudo Gender Differences in Love Stories, no qual analisou contos de amor de dez autores e dez autoras. Ambos estudos convergem em dizer que os escritos das mulheres, em regra, desafiam papéis de gênero tradicionais e a busca pelo ‘amor verdadeiro’ geralmente é subordinada à busca pela liberdade e auto realização. Mulheres escrevem e criam a sua maneira, mas são menos publicadas e menos lidas. O ponto é que quando há uma referência ideal o diferente será um desviante com qualidade questionável, o que, em certa medida reforça os frágeis simulacros de ideação sobre arte e cultura. Kathy Leonard (1996) afirma que enquanto a literatura ocidental tem sido amplamente definida pelo amor romântico idealizado, a literatura latino-americana e africana, por exemplo, abordam questões sociais, políticas e econômicas e o amor, surge, via de regra mais complexo e multifacetado e atravessado pelas realidades da vida.
Mas, o que seria o amor idealizado? Num sentido platônico o ideal é o que não perece, é a ideia, o imaculado e universal. Esses estudos mostram que as mulheres quando escrevem dão voz a um amor dito vulgar, encarnado no cotidiano das dinâmicas da vida, com textura e moldáveis. Se formos atentos será possível observar que no Banquete de Platão há um questionamento as dicotomias dogmáticas de um divino vs um vulgar. Mas essa não é a visão hegemônica. O próprio Rougemont, no seu livro O amor no Ocidente, pensa a paixão amorosa condicionada por uma visão protestante de dicotomia inconciliável de Eros e Agaphe. Mas há outros caminhos. Eriximaco no seu discurso no Banquete ao perguntar se seria o agudo mais musical que o grave ou se haveria música da lira sem seu arco, põe em cheque a existência desses duplos antagônicos. Para Eriximaco a música existe da tensão do encontro. O sofrimento e a tragédia, nesse sentido, talvez não sejam uma sentença, mas apenas uma saudade e a saudade é parte da música. Em Eriximaco não há nem vulgar, nem divino, apenas música.
Essa musica é o encontro, um encontro com um outro que nos leva a um encontro com si mesmo. Sem o soldado francês a escritora de um romance epistolar não teria surgido. Todo amor é um certo, porque cria algo e isso é Eros e isso é divino e isso somente acontece no vulgar das coisas que perecem. O amor é um acordamento nem sempre manso ou sutil. Delírio talvez, mas não como patologia e sim como matéria criativa de novos caminhos e formas, fomento para a imaginação e para suportar o indizível do real.
Ousaria dizer que poucos amores deram tão certo quanto o da freira de Beja e o do soldado francês, um amor capaz de permanecer no tempo, um tal de amor divino para alguns e para a tristeza dos seus amantes que preferiam, creio eu, os sussurros vulgares.