Em Portugal, os museus seguem o modelo baseado na ideologia política do Estado Novo
Por Lina Moscoso, Lisboa
Boa parte dos museus europeus foi projetada com base na ideologia colonial. A historiadora francesa Françoise Vergès, que lançou recentemente no Brasil o livro “Decolonizar o museu – programa de desordem absoluta”, acredita que “o museu é uma instituição baseada na ideia de superioridade, na redefinição da arte e na transformação de objetos comuns em arte, retirando-os de seu contexto original. Os museus europeus ocidentais e norte-americanos acumularam uma quantidade massiva de objetos, inimaginável em escala, com dezenas de milhares de itens roubados”.
Os museus foram concebidos no século XVIII na Europa, durante o período de expansão e conquista imperialista, movimento liderado pela França, de acordo com Françoise Vergès em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil. Os europeus seguiam a ideia de que eram a civilização e, portanto, cabia ao mundo civilizado guardar os tesouros da humanidade, mesmo através de pilhagens em larga escala, conforme a historiadora.
Os museus da Bélgica, da França e do Reino Unido enquadram-se no modelo colonial. Em Portugal não é diferente. No caso desse país, a ideologia colonial tem a sua origem no fim do século XIX, princípio do século XX. “Portanto, não tem 500 anos de existência como os discursos nos dão a entender que o passado colonial – os passados coloniais são muitos, na verdade – uma primeira fase declaradamente é o que sustentava o escravagismo”, argumenta Mário Moutinho, docente e investigador na área da Sociomuseologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
A partir da conferência de Berlim – realizada em 1885 para redefinir aspectos do mapa colonial dos finais do século XIX – é que, de fato, há um interesse no ato de colonizar com ocupação territorial. Mário lembra que antes dessa conferência a presença portuguesa na África concretizava-se através de poucos postos ao longo da costa orientados para o tráfico de pessoas escravizadas e não havia exploração do território e nem do trabalho local.
O comércio efetivo e a exploração de territórios tiveram início no princípio do século XX, momento em que foram constituídos os projetos coloniais e os conceitos que poderiam sustentar os atos da colonização, que dizem respeito às crenças de que havia os povos civilizados e os não civilizados; os que não possuíam religião e os que possuíam; e os que utilizavam dialetos em vez de línguas, de acordo com Mário Moutinho. “Portanto, é durante o Estado Novo, que dura até o 25 de Abril, que essa ideologia colonial se constrói”, afirma. Desta forma, o docente acredita não ser possível separar a constituição dos museus coloniais dos discursos que foram construídos nessa época.
“Claro que antes havia outras formas de ideologia colonial, como, por exemplo, o questionamento se o africano tinha alma ou não. O fato de dizer que a ideologia colonial em Portugal é fruto do século XX não significa que para trás não houve conflitos e sofrimentos”, destaca.
E foi também durante o período do Estado Novo que antropólogos, filósofos e juristas foram chamados para formular uma ideologia colonial que justificava a presença de Portugal na África. “O que nós vivemos atualmente é a ideologia colonial construída durante o Estado Novo através da legislação, onde foram buscar todos os fundamentos para a exploração colonial, através dos programas escolares, onde iam condicionar a mente das pessoas, através dos comportamentos dos tribunais”. Além disso, durante o Estado Novo tudo era feito para impedir que os cidadãos de Angola, da Guiné, de Moçambique e de Cabo Verde fossem residir em Portugal, como observa Mário Moutinho. “Essa ação era justificada pela teoria de que Portugal era uma pátria pura”, argumenta.
“Posto isto, eu acho que a ideologia colonial foi construída, funcionou, sustentou a guerra colonial e logicamente ou ilogicamente depois da revolução de 25 de Abril, não houve um trabalho de desmontagem, portanto descolonizamos, mas a colonialidade do pensamento ficou”.
De acordo com o docente, a descolonização formal foi feita, mas a estrutura ideológica que sustentava o colonialismo e a guerra colonial permaneceu e “nós encontramos essa ideologia nas escolas, nos tribunais, nas polícias, na comunicação social e no dia a dia, onde efetivamente existem mil e uma formas de agressão de natureza racista contra os afrodescendentes que hoje vivem em Portugal”, salienta.
Museus em Portugal
Alguns museus portugueses seguem o modelo europeu, ou seja, são equipamentos construídos através de processos de pilhagem e, portanto, são espaços que guardam “os tesouros da humanidade”, sob a justificativa de preservação da arte, e não exercem a função social de questionar os atos coloniais. Mário dá o exemplo do Museu da Guerra Colonial, localizado em Famalicão, que, para ele, não possui sentido crítico “em relação nem à ideologia colonial, nem ao ato colonial e nem à guerra colonial”.
Outro exemplo é a exposição que está em cartaz no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Muhnac), chamada “Plantas e Povos”, em que “são utilizados exatamente os mesmos argumentos para explicar uma determinada vitrine que eram usados nos anos 50 em Portugal”. A mostra é de objetos de Artur Murimo Mafumo, chamado de curandeiro, que foi preso em dezembro de 1955 e os seus instrumentos de culto e adivinhação, como ossículos adivinhatórios, foram apreendidos e trazidos para Portugal por Joaquim Santos Júnior, chefe da 6.ª campanha da Missão Antropológica de Moçambique (uma expedição científica). “No entanto, o Museu deveria identificar quem são os filhos e netos do senhor para devolver as peças. Mas não há nenhum esforço para localizar essas pessoas”, observa Mário Moutinho.
Além disso, o Museu do Tesouro Real, em Lisboa, “guarda” as joias da coroa. O acervo de mais de mil peças engloba moedas, medalhas, joias, insígnias e utensílios reais, muitas feitas com matérias primas extraídas do Brasil. Entre as peças que vieram desse país para Portugal está um estojo da coroa real, feito em Pau-Brasil, em 1817, bem como a coroa real, o cetro e o manto usado na aclamação de Dom João VI, todos confeccionados no Rio de Janeiro no mesmo ano.
O museu possui uma secção intitulada “Ouro e Diamantes do Brasil” que representa o processo de mineração-desumanização praticado ao longo de séculos por Portugal na ex-colônia. Nessa secção está uma pepita de ouro de 20kg, possivelmente arrancada do solo de Goiás, na segunda metade do século XVIII, além de um fragmento de 35 quilates de um diamante extraído de Minas Gerais pouco depois.
O ponto de situação é que os museus normalmente não contextualizam os processos de obtenção das peças. No caso do Museu do Tesouro Real, o texto curatorial fala sobre a importância da descoberta das minas para a joalheria portuguesa, mas não menciona a mão-de-obra escravizada empregada na mineração.
“Não há uma leitura crítica e, portanto, esses museus são perniciosos para com a juventude”, aponta Mário Moutinho. O docente afirma que os prejuízos recaem principalmente na juventude, “que visita os equipamentos e que vem de lá com uma ideia completamente acrítica do que são as relações que tem por base um pensamento neocolonial, um pensamento que não reconhece o outro como indivíduo, mas apenas o reconhece enquanto o grupo. E não reconhecer alguém enquanto indivíduo evidentemente é abrir a porta a todos os preconceitos. Antes do grupo existe o indivíduo”, expõe.
Como reitera Mário, os museus portugueses, portanto, estão amarrados a uma ideologia colonial moderna do século XX do Estado Novo e que não foi suficientemente combatida.
Pós-museu
No entanto, o docente acredita que é possível desconstruir os museus, respeitando o aspecto da função social e não apenas “pincelar” a decolonialidade, através da realização de alguns eventos que trazem questões sociais nos espaços do museu. “É uma luta do dia a dia. Há coletivos de várias instâncias que procuram lutar contra isso dentro dos museus. E fora dos museus existe, de fato, uma insurgência partilhada que tem por base uma leitura crítica do que foi o colonialismo”, exemplifica.
“Os museus nacionais de Portugal, que são os institucionalizados, incluem na sua pauta qualquer coisa que tenha a ver com antirracismo para dizer que estão dentro do tempo, mas, na verdade, todo o resto do projeto desses museus continua a ser um projeto normativo conservador”, aponta Mário.
Segundo especialistas da Museologia Social, os novos museus ou um conceito de pós-museu deveria estar focado na revisão de discursos por meio da contextualização crítica – da escravatura e de outros processos de violência -; e refazer coleções sobre o passado colonial, bem como ampliar a intervenção nas e das comunidades, tornando os museus mais democráticos. Para Françoise Vergès, seria preciso haver uma revolução para o surgimento de um conceito de pós-museu. A historiadora acredita que a reparação, através, sobretudo, do reconhecimento de que houve crime, contando as verdadeiras histórias, é um passo importante.
Museologia Social
No sentido da formulação de um novo conceito de museu, está a Museologia Social que tem raízes profundas antes da nova museologia, no princípio do século XX, com os educadores, como Paulo Freire. A proposta é que os mecanismos de valorização da memória e das ações de preservação tenham como prioridade a busca pelo direito à diversidade, à dignidade humana, o respeito e os princípios de liberdade. Para Mário Moutinho, a Museologia Social é uma questão de justiça no sentido de existir o reconhecimento das pessoas e comunidades que ao longo de anos dão a vida para que os museus existam ao serviço da comunidade. “A ideia é alargar o impacto da Museologia Social”, frisa.
“Os princípios, os valores e os conceitos de uma museologia implicada com a função social, como diz a declaração da Unesco de 2015, são importantes”, enfatiza.
Mário Moutinho critica a forma como os museus se apresentam, ou seja, boa parte desses equipamentos em Portugal prioriza a informação relativamente ao espaço físico onde está situado, em vez de definir a sua função.
Museus de resistência
Na contramão dos equipamentos mais tradicionais estão os museus de resistência portugueses, como o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, antiga cadeia do Aljube, em Lisboa; o Museu Nacional Resistência e Liberdade, em Peniche, que tem como função o reconhecimento da Fortaleza de Peniche enquanto espaço-memória e símbolo maior da luta pela liberdade. Esses equipamentos trabalham o passado ditatorial do estado novo numa perspectiva crítica. “Aí sim, nós encontramos projetos e exposições e uma política contínua de trazer as problemáticas que decorrem da colonização. Um discurso contra-hegemônico que é parte da política e projeto de cada um desses museus”, revela Mário Moutinho. Esses equipamentos estão efetivamente preocupados com as questões que decorrem do colonialismo, da crítica da colonialidade e que propõem alternativas de leitura e pensamento crítico. “Mas esses museus são muito poucos. Então nós não estamos numa boa situação”, opina.
Paralelamente a isso também existem iniciativas que utilizam a linguagem expográfica e que tem por base uma leitura crítica não só do passado colonial, mas também propõem uma leitura decolonial.
Já os museus de resistência nas ex-colônias portuguesas, como o Museu do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, e o Museu Nacional da Resistência Colonial , em Vila Algarve, Moçambique, são peças fundamentais no processo de manutenção da memória crítica do salazarismo numa proposta de contextualização e questionamento da política colonial imposta pelo Estado Novo português.
Tarrafal passou de campo de concentração para contar a história através da criação de vários equipamentos museológicos com projeto consolidado por uma candidatura a Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, em 2021, que teve o apoio científico (para a elaboração do dossiê técnico) e financeiro de Portugal.
O campo de concentração, criado em 1936, recebeu os primeiros 152 presos políticos da Ditadura de Salazar, e funcionou até 1974.
O Museu Nacional da Resistência Colonial, antiga sede da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), localizado na Vila Algarve, em Maputo, Moçambique, representa a luta de libertação da ex-colônia. Isso porque o museu conta a história dessas lutas. Pela antiga cadeia passaram muitos nacionalistas moçambicanos, na maioria membros da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) que, até 1974, desencadeou uma guerra de libertação contra o colonialismo português.
Políticas públicas
No âmbito da Museologia Social, para haver investimentos em museus que desempenham a função social de questionar e discutir, faltam políticas públicas para o desenvolvimento de intercâmbio entre estruturas do governo da cultura, por exemplo, e a direção geral patrimônio cultural português, como aponta Mário Moutinho.
O docente lembra que a falta de políticas públicas leva à utilização de medidas paliativas e superficiais, como atos pontuais – eventos antirracistas, por exemplo. Mário faz uma crítica aos governos de Angola, de Moçambique, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde pela falta de investimentos na museologia social.
“Os atuais governos não estão minimamente preocupados em fomentar uma política para os museus e muito menos uma política para a crítica da colonialidade”, afirma.
Comitê internacional
De forma a contribuir para o avanço da Museologia Social enquanto portadora de valores que promovem o respeito dos Direitos Humanos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável., será criado o Comitê Internacional para a Museologia Social no quadro do ICOM – organização internacional de museus e profissionais de museus, que promoverá atividades, eventos, publicações, formações, programas de apoio, promoção de estágios e apoio ao trabalho de e no campo. Mário Moutinho acredita que essa iniciativa será uma ajuda grande para que os museus não busquem diretamente um público, mas sim uma reflexão dentro da comunidade sobre um conjunto de desafios.
O Comitê segue a recomendação da UNESCO de 2015 que versa sobre a Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade e que favorece, segundo o docente, a construção da museologia crítica.
O comitê já está aprovado pelo Conselho Executivo do ICOM e será oficializado em uma assembleia constituinte a ser realizada no Rio de Janeiro, no dia 22 de março de 2024, durante a primeira Conferência Internacional da Museologia Social, no Museu da República.
Devolução de peças
Relativamente à restituição das peças dos museus europeus que foram extraídas pelos processos de pilhagem, alguns países como Alemanha, França, Bélgica e Países Baixos devolveram ou estão em vistas de devolver objetos às nações de origem. A Dinamarca, por exemplo, vai restituir ao Brasil, no início de 2023, um manto Tupinambá que está no Museu de Copenhague há mais de três séculos.
As estimativas apontam para a existência de cerca de 500 mil objetos na Europa que foram extraídos da África. Desses, boa parte foi retirada de forma ilegal.
Em Portugal, as discussões sobre o tema ainda não tiveram início. Mário Moutinho acredita que as peças precisam ser devolvidas como forma de reparação. No entanto, o docente teme que a devolução seja feita nos termos do contrato colonial. “Acho que tem que ser visto com muito cuidado em Portugal. Como o caso do Museu de Etnologia Portuguesa que até os anos 70 continuou a receber coleções vindas e compradas de comerciantes da chamada arte africana. O museu diz, portanto, que as peças foram adquiridas legalmente”, descreve. O temor é, portanto, que as justificativas para a não devolução podem centrar-se no fato de as peças terem sido legalmente compradas.
Por exemplo, no Museu Nacional de Etnologia está a Máscara Lipiko, Makonde (Moçambique), adquirida, em 1958, por Jorge Dias e Margot Dias, no âmbito de uma pesquisa etnográfica, da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português (1957-1961).