Jovens da Cova da Moura realizam-se profissionalmente produzindo música de resistência no Kova M Estúdio
Por Lina Moscoso, Lisboa.
Em meio à estigmatização e ao preconceito faz-se música como forma de resistência. Meninos e meninas portugueses e portuguesas, filhos e netos de imigrantes cabo-verdianos, produzem rap e hip-hop na Cova da Moura – bairro do município de Amadora, Região Metropolitana de Lisboa – no Kova M Estúdio. Lá os músicos produzem, gravam, mixam músicas e também ensaiam.
“É para que as pessoas comecem a interiorizar as mensagens críticas ao sistema e ao governo português”, diz Heidir Correia, responsável pelo estúdio, que é uma das faces dos projetos sociais desenvolvidos pela Associação Moinho da Juventude. As músicas são feitas em crioulo de Cabo-Verde, língua de resistência utilizada pelos imigrantes e filhos de imigrantes, ou em português, quando é preciso que as pessoas em Portugal compreendam. O crioulo não tem sido barreira, afirma o responsável pelo estúdio. Mas o que se passa na rádio não tem apenas crioulo, é sempre uma mistura do português com essa língua, conforme Heidir.
“Vão conseguir atingir mais públicos, por isso que eu também faço questão de fazer a mensagem chegar. Eu quero falar do sistema português. Quando eu abordo a política portuguesa eu não faço em crioulo. Se eu quiser fazer uma chamada de atenção eles não vão perceber. Essa é a minha mentalidade. Nem todos têm essa mentalidade, mas nós vamos falando sobre essas coisas. É para a médio e longo prazo as pessoas interiorizam este tipo de mensagem”, argumenta Heidir, ainda sobre a questão da língua.
O estúdio já lançou nomes do universo do hip-hop e do rap, tais como Mynda Guevara, Timor YSF, Vado Más Ki Ás (ícone do pop nacional), Niko O.G., tendo por lá passado ainda Puto G e o Dany G.
“E foi então que houve um digamos um boom do reconhecimento das músicas que eram feitas aqui no bairro”. Kova M Estúdio já produziu, em 2007, uma banda chamada Royal Família composta por Heidir, seu irmão e a ex-mulher do irmão. Uma das músicas, chamada “Dor e Sofrimento”, foi para as rádios onde manteve-se durante dois meses. Depois eles foram entrevistados pela RTP África. A canção foi para o YouTube em 2012 e recebeu muitas visualizações.
Mas o ponto alto do estúdio foi o lançamento do videoclipe da música “Fronta” no YouTube, em 2013, que teve um milhão de visualizações no YouTube, algo inédito em Portugal. “Ainda hoje há podcasts e programas a comentarem o sucesso da música na altura. Fomos os primeiros a fazer um milhão de views”, conta Heidir.
Atividades
O Kova M Estúdio realiza formações para as pessoas do bairro para a produção de videoclipes, por exemplo, e programas de edição. “Ou seja, para quem quiser aprender e ao mesmo tempo tudo o que nós vamos fazendo e vamos ensinando é para no fundo no futuro sermos autônomos de uma forma geral dentro da música”.
Heidir esteve afastado do espaço musical, mas retornou em 2019, e agora a produção está a todo vapor. “Nós estamos a reerguer as coisas outra vez, estamos a preparar álbuns e vídeos e a fazer formações”, cita.
O estúdio recebe alguns apoios financeiros da Sony Music. Mas 90% do espaço é suportado pela Associação Moinho da Juventude.
A equipe é formada por Heidir, Siças e Eddy e mais dois jovens. E não é só rap e hip-hop que é produzido. Há também kizomba, que a Maris produz. Não há um limite de idade. Há pessoas dos 11 anos até mais de 40. “Fazemos muitos duetos, com o pessoal de fora também, até porque, por exemplo, agora no meu álbum eu tenho uma música com o Dino de Santiago que sempre nos deu um suporte”, revela. O cantor e compositor cabo-verdiano Dino de Santiago tem realizado eventos e ações de valorização da cultura de Cabo Verde, que é o movimento chamado Lisboa Crioula.
No estúdio, os músicos são majoritariamente cabo-verdianos, mas também há guineenses, angolanos e um brasileiro chamado Tony. O Kova M costuma realizar festas e concertos na Cova da Moura, mas também em outros locais de Lisboa.
História
O projeto do Kova M Estúdio teve início em 2005, através do Programa Escolhas – uma iniciativa governamental de âmbito nacional criada em 2001 – em que o objetivo era ocupar o jovens em algo que pudesse vir a se tornar profissional. “Nós convidamos as pessoas do bairro a participar e perguntamos o que é que mais gostariam de fazer”, conta Heidir Correia. A maioria deles disse que queria trabalhar com música, ou seja, queria ser DJ, cantar e produzir. “Nós decidimos depois com essa pesquisa que nada melhor do que um estúdio para abranger a maioria das áreas que eles estavam a falar e foi a partir daí que nós apresentamos um projeto de um estúdio”, narra.
Para concretizar o projeto, foi preciso angariar fundos. Deste modo, fizeram várias rifas, organizaram matinês e festas para arrecadar o dinheiro necessário. Os eventos tiveram a participação de Dino de Santiago e do DJ Branko. “Quando a gente organizou assim uma verba significativa nós começamos as obras, mas depois ficamos várias vezes parados porque nós desejávamos construir um espaço profissional para depois não estarmos sempre em obras”.
O espaço ficou pronto em 2007 e foram conseguindo alguns projetos de financiamento para a compra dos equipamentos, através da Associação Moinho da Juventude. Nesta época, conseguiram ter o material básico para trabalhar. Mas antes de terem o espaço físico, Heidir e os outros músicos da Cova da Moura já produziam e organizavam as festas com um computador em uma sala da associação.
Rap no Parlamento
O Kova M Estúdio recebeu, em 2022, um convite para apresentar uma música no Parlamento Europeu em Bruxelas e também seria uma oportunidade para seus integrantes conhecerem as instituições europeias. A música foi composta tendo como mote o modo como os moradores da Cova da Moura sentem-se postos à parte da agenda política do país e da Europa, seja pela segregação e estigmatização do bairro, seja pela cor de pele, ou até mesmo pela nacionalidade negada a quem nasce em Portugal, mas não têm direito à cidadania.
A visita a Bruxelas concretizou-se no final de abril deste ano, no âmbito do dia europeu da língua (que se celebra todos os anos a 26 de setembro). O intuito da Comissão Europeia foi olhar para outras línguas, as que não são consideradas as 24 oficiais da União Europeia, mas estão presentes no continente, a exemplo dos crioulos falados em Lisboa. A cidade é a mais crioula da Europa – há cerca de 14 mil guineenses e 25 mil cabo-verdianos na zona de Lisboa, fora os descendentes que também falam crioulo.
A música foi lançada oficialmente pela primeira vez no Festival Iminente, em 2022, e fala da Europa para os jovens da Cova da Moura. “Eles disseram que nós podíamos fazer a música em crioulo. Eu disse: nós podemos fazer, mas não temos um olhar positivo. Vai ser um bocadinho crítica. E eles disseram que não havia problema”, conta Heidir. No entanto, a música foi construída metade português, metade em crioulo para que houvesse a total compreensão da mensagem, como explica Heidir.
A canção toca em temas como a questão da desigualdade no tratamento aos imigrantes. “Eu digo na minha música: aqui não há igualdade se não fores caucasiano. Quando eu fui lá e coloquei esta questão, eu não senti uma resposta, digamos plausível, de mudança para o futuro. Estourou uma guerra na Ucrânia e é tudo bem-vindo (os refugiados). Eu foquei muito nisso, porque vemos os refugiados africanos amontoados em cima uns dos outros e a morrerem para fazer a travessia”, finaliza.
Trecho da música composta para apresentação no Parlamento Europeu:
Eu quero uma Europa mais livre
E mais amiga
Desejo uma Europa mais tolerante
E mais humanista