Por Thiago Cassis
No dia 10 de setembro de 2024, uma terça-feira como qualquer outra, eu deixava Maputo em direção a São Paulo, após quatro meses e meio, vividos intensamente, em Moçambique.
Mas também deixava para trás um país com um povo alegre e acolhedor, menções à revolução recente e à dolorosa guerra interna que se seguiu eram comuns. “Transformar por dentro?”, “Há que se fazer algo para mudar quem está no poder!”, comentários que também pipocavam aqui e ali, pelos bares, esquinas, chapas* e jogos de futebol. Eu escutava, mas ainda não sabia a profundidade de tais palavras jogadas ao ar pelos meus parceiros de papo em terras moçambicanas.
Foto: Thiago Cassis
Moçambique teve sua independência decretada em 25 de junho de 1975, após uma longa luta, tendo no comando a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), com Samora Machel sendo o líder maior da revolução. Não à toa, Machel se torna presidente na data em que o país se torna independente, e permanece no posto até o dia de sua morte, em 19 de outubro de 1986.
A morte de Samora Machel é alvo de grandes debates. A versão oficial, que aponta para um acidente com o avião soviético que trazia o líder moçambicano de volta para casa após participar de uma reunião em Lusaka (Zâmbia), é questionada até hoje. Coincidência ou não, já em 1987, Moçambique assina um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Dessa forma, o país começa a sair da área de influência soviética, da qual Samora Machel era um grande defensor.
No período da tragédia, o país se encontrava imerso na guerra civil, que aconteceu oficialmente entre 1976 e 1992. A guerra opunha dissidentes da FRELIMO e combatentes de outras nações, majoritariamente opositores da doutrina marxista-leninista que era então implementada no país, após a independência que, afinal de contas, ocorreu contando com grande apoio estrutural da União Soviética. Os combatentes anti-FRELIMO encontravam-se organizados em torno da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana).
A paz foi selada em 04 de outubro de 1992, ou seja, já em um mundo sem a existência da URSS. No acordo, entre outras coisas, ficam definidas eleições multipartidárias para 1994. Aqui abre-se outro momento da história de Moçambique.
Democracia à moçambicana
Em 1994, ocorre então o primeiro pleito presidencial em Moçambique. Com mandato de cinco anos, o chefe de estado eleito pode se reeleger apenas uma vez, e foi assim que Joaquim Chissano, da FRELIMO, comandou a nação entre 1994 e 2004, sendo sucedido pelo também frelimista Armando Guebuza, que governou o país também por dois períodos. O atual presidente, que manteve a hegemonia da FRELIMO, Filipe Nyusi, está no poder desde 2015.
Chegamos então às eleições de 2024. Mais de 17 milhões de moçambicanos estavam aptos a votar, muito embora os números apontem a marca de que apenas aproximadamente 44% dos eleitores exerceram seu direito nas urnas.
No dia 09 de outubro acontecem as eleições, tendo como concorrentes Daniel Chapo, pela FRELIMO, Ossufo Momade, representante da RENAMO, Lutero Simango, pelo MDM (Movimento Democrático de Moçambique) e o Pastor Venâncio Mondlane, que concorre de forma independente, apoiado em um primeiro momento pelo CAD (Coligação Aliança Democrática), e posteriormente pelo PODEMOS (Povo Otimista para o Desenvolvimento de Moçambique).
Mondlane era apontado por muitos, e isso era um fato de fácil comprovação pelas ruas das principais cidades do país, como o grande favorito, seguido pelo candidato frelimista, afinal, o partido que comandou a independência no país ainda possui uma grande base de apoio, fato também verificável em manifestações públicas e eventos culturais espalhados pela capital Maputo.
Alguns dias após as eleições, Daniel Chapo, candidato da FRELIMO, é apontado como vencedor do pleito, com 70,43% dos votos, seguido pelo Pastor Mondlane, como já era esperado.
Nataniel Ngomane, doutor em letras pela USP e atual presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa (FBLP), nos conta um pouco do ambiente no dia do pleito “Ainda durante o processo eleitoral de 9 de outubro último, a imprensa reportava várias matérias associadas a procedimentos irregulares, como o enchimento de urnas por parte de alguns membros das mesas de votação”.
A população não aceita o resultado. Um fato, porém, ocorrido no dia 18 de outubro, coloca ainda mais pólvora no já conturbado ambiente. Elvino Dias e Paulo Guambe, advogado do candidato Mondlane, e o mandatário do seu partido, PODEMOS, respectivamente, são assassinados no centro da capital Maputo. Estava criado o cenário para um verdadeiro levante nas ruas moçambicanas.
Foto: Thiago Cassis
Povo nas ruas!
“Um acúmulo de fatores que vêm se intensificando ao longo dos anos. O custo de vida está insuportável, com a maioria das famílias lutando para garantir o básico. A educação é precária, os hospitais não têm medicamentos, e as riquezas do país beneficiam poucos, enquanto a maioria do povo mal consegue sobreviver”, Énia Lipanga, escritora e ativista social, define assim os principais motivos das significativas manifestações que acontecem desde então em Moçambique, e prossegue: “a fraude eleitoral, que está comprovada, foi apenas um impulso para que o povo se revoltasse contra um sistema que insiste em ignorar suas necessidades”.
Enia Lipanga
Nataniel Ngomane corrobora com esta visão. “As manifestações que reivindicam e defendem a reposição da verdade eleitoral ganharam a forma de reivindicações de natureza sócio-econômica, mostrando e demonstrando que, afinal, a fraude eleitoral havia sido apenas a gota d’água do atual cenário de descontentamento.”
Algo que fica evidente, acompanhando com alguma atenção o processo local, é que o Pastor Venâncio Mondlane, mesmo fora do país atualmente por questões de segurança, é a voz por trás das manifestações. Por meio de suas redes sociais, convoca as datas dos protestos e lidera os levantes que ocorrem no país africano. Para Énia Lipanga, “Venâncio representa a voz de um povo que está cansado. Desde que começou sua trajetória política, ele tem se mostrado próximo das demandas reais dos moçambicanos”.
Nataniel Ngomane
Ficamos com as palavras de José Luís Cabaço, que foi Ministro dos Transportes e Comunicações e, posteriormente, Ministro da Informação no governo de Samora Machel, para elucidar os rumos tomados pela FRELIMO, e as contradições que explicam um pouco da complexidade que estamos a analisar. Após quase 50 anos no poder, “o instinto de classe das elites não resistiu aos holofotes do poder, às mordomias do privilégio, à ganância das riquezas que o exercício desse poder lhes colocava ao alcance das mãos. Os mais intrépidos e corajosos combatentes, que tinham enfrentado com heroicidade as balas de aço dos exércitos coloniais, foram ceifados por aquilo que Samora Machel chamou ‘as balas de açúcar do capitalismo’ “.
José Luís Cabaço
O que se percebe em Moçambique, e não são necessários nem os meses de vivência que tive por lá, é um profundo agravamento da distância entre a população e as abastadas classes dirigentes, como nos explica de novo José Luís Cabaço. “Com o assassinato de Samora Machel foram se abrindo as comportas que sustinham a corrida à corrupção e à apropriação privada dos bens públicos. O processo de enriquecimento do grupo dirigente não se faz por meio da produção, mas essencialmente pela cooptação privilegiada dos bens públicos.
E agora, que fazer? E o que pode acontecer?
“Diálogo franco e aberto com os representantes dos partidos de oposição, tendo em vista encontrar as melhores saídas. Rever procedimentos governativos que garantam uma transparência governativa, incluindo um cerrado combate à corrupção generalizada no aparelho do Estado”, assim Ngomane acredita que a FRELIMO pode iniciar o caminho de reconstrução de sua combalida imagem atual perante a grande parte da população.
Porém, o cenário atual aponta para incertezas profundas. Na próxima segunda, dia 23, um pronunciamento acontecerá por parte do Conselho Constitucional de Moçambique, e que selará o destino próximo da nação africana. Independentemente da decisão que se tome a partir daí, nem o mais atento observador pode garantir que a paz, mesmo que temporária, volte a reinar no país. Para Lipanga, “neste momento, vivemos em um ambiente de medo constante, marcado por mortes e derramamento de sangue”.
A tendência é que os conflitos se aprofundem, pois nenhum dos dois lados parece aceitar um resultado que não esteja de acordo com suas ambições. Para Ngomane, com uma posição conciliadora, “a saída ideal, do meu ponto de vista – considerando que este último processo eleitoral foi fraudulento –, seria a invalidação dessas eleições, com a instituição de um governo provisório, remarcando-se novas eleições com elevado acautelamento dos respectivos procedimentos e acompanhamento público, nacional e internacional”.
Para encerrar, sem uma conclusão, afinal, a situação, que permanece sob total incerteza, não sugere nenhum apontamento final, Cabaço aponta, usufruindo de sua vasta experiência no campo diplomático, que “é necessário aceitar que, com os 50 anos de idade do país, se fecha definitivamente o ciclo de legitimidade histórica do poder para se abrirem espaços para que as novas gerações busquem formas democráticas e participativas de diálogo e de tolerância”.
A história continua…
* Meio de transporte privado que oferece serviço público. Similar as lotações em algumas localidades do Brasil, porém mais precarizadas.