Por Larissa da Silva
Podemos passar pelas ruas da Amadora e ver prédios, comércios e entre eles muitos terrenos vazios. Em alguns desses terrenos já teve muita vida, gente, comunidade. É o caso de bairros como Fontainhas e 6 de maio, que foram autoconstruídos por imigrantes e portugueses que ao longo do século XX encontraram na região uma oportunidade de construir e viver. Mas no início do século XXI, foram encerrados e as famílias realojadas em prédios espalhados pela grande Lisboa.
José Maria Baessa de Pina, conhecido também como Sinho, criou o projeto Noz Stória para contar as suas memórias como morador das Fontaínhas: “achei, bem, eu vou falar sempre dos meus bairros e dos bairros que eu conheço dessas comunidades, porque eu sei que tiveram muita história de riqueza e muita resiliência e muita contribuição nesse país e também como uma forma de denúncia do que é que faltou do aparelho do Estado para com essas comunidades e como uma forma de tributo a todas as pessoas que passaram na comunidade, que deram muito a esse país, que os seus nomes não estão nos anéis da história e eu queria perpetuar a história dessas comunidades como forma de tributo“.
Sinho é português, filho de pais cabo-verdianos, e diz: “vê-se que uma criança que nasce em Portugal, pós 25 de Abril, não teve direitos. Aquela liberdade do 25 de Abril que tanto falam e sabendo que a nossa comunidade era classe trabalhadora, veio de Cabo Verde antes da independência, acho que Portugal devia ter outro tratamento para com essa classe trabalhadora que veio. Faltou muita coisa que reflete-se nos dias de hoje. 50 anos depois, vemos que muita coisa não foi feita para nós que nascemos cá, ter as mesmas possibilidades de oportunidades, de acessos, e viu-se que os bairros acabaram em 2001″.
E complementa: “Essas comunidades (cabo-verdianos, angolanos, guineense, são-tomenses) deram muito e estão a dar muito a esse país. E eu sinto que as comunidades migrantes são tipo um laboratório só para ter, para usufruir do que é bom, para tirarem coisas boas e deixarem lá e tiram as coisas boas e nunca a comunidade ganha com isso. Até o nosso intelectual não é valorizado, é apropriado, porque não temos canais para sermos nós os atores da nossa fala da nossa realidade”.
Para conhecer o projeto Noz Stória acesse no Instagram: @nozstoria
Confira a entrevista completa:
Quem é o Sinho?
Eu sou José Maria Baessa de Pina, tenho 48 anos, nasci em Portugal, Lisboa, na Maternidade da Dona Estefânia, na Freguesia de Arroios. Eu sou neto de cabo-verdianos, tanto materno, como paterno. No lado materno, a minha mãe, devido aos pais terem que ir trabalhar em Angola a contrato, para mim, chamam-lhe trabalho a contrato em 1950, mas eu chamo-lhe escravatura na mesma, porque aquele trabalho era como se fosse escravatura, o trabalho nas fazendas em Angola. E os meus avós maternos foram para Angola em 1950. A minha mãe nasceu em Angola em 1950. E depois vieram para Cabo Verde outra vez. Havia contratos de trabalho de três em três anos. E acho que ficaram lá dois ou três contratos e vieram para Cabo Verde.
Depois, como em Cabo Verde havia a fome, em 1947, onde dizem que morreram 75 mil pessoas e Portugal recusou mandar a Cruz Vermelha a apoiar aquela população, visto que Cabo Verde era a colónia portuguesa e para arranjarem solução essas pessoas foram trabalhar para as roças e, nesse contexto, o meu lado paterno também foi para esse tipo de trabalho a contrato em Santo Tomé, que naquele tempo era o maior exportador de cacau do mundo.
E aí, tanto os meus avós paternos e maternos conheceram-se em Santo Tomé, na roça Agostinho Neto e as minhas famílias, portanto, viveram no contexto de trabalho a contrato em Santo Tomé, morando em Senzalas, onde as famílias trabalhavam por fazendeiros portugueses e em 1971 os meus avós, do lado tanto paterno e materno, os homens e o meu pai vieram para Portugal, vieram para Portugal no contexto de contratados para virem trabalhar em Portugal.
Portugal naquele tempo tinha muita gente a fugir de Portugal, os portugueses fugiam para a França e outros países. Antigamente já estavam a fugir por causa da guerra colonial e depois também começaram a fugir e a emigrar para irem trabalhar para a França e outros países da Europa. E nesse contexto os nossos pais vieram ocupar a mão de obra barata, os trabalhos dos precários que havia aqui em Portugal.
Naquele tempo Portugal estava a dar um boom na construção civil e esses homens vieram para trabalhar e pronto, não foram cuidados a nível de estruturas para estar aqui, habitação, saúde e todos os acessos que um trabalhador quando vai para um país tem. E eles moravam em casernas como a maioria dos trabalhadores cabo-verdianos, guineense, angolanos, vieram para cá.
Quando eles chegaram em Portugal, eles foram morar onde primeiro? Já em Lisboa ou não?
Moravam em casernas das obras. Casernas quer dizer casas ou contentores. Havia casernas de vários modelos, onde trabalhadores moravam. Na caserna, às vezes, o máximo tinha 2 mil homens. Havia casernas com 2 mil homens.
Em Setúbal havia, que eu sei, em Sete Rios, em Alfragide, havia essas casernas onde as grandes empresas de Portugal naquele tempo. Esses senhores estavam todos legais em Portugal, eram portugueses, visto que os países ainda não tinham tomado independência. E vejo sempre que não foram dados o devido cuidado nessa situação.
E passados os anos, muitos dos meus avós e muitos outros homens começaram a se preparar para mandar vir as esposas. Há muitos homens que já estavam casados, há muitos homens que já estavam com a namorada e começaram a pedir procuração para virem para Portugal. Mas para virem para Portugal tinham que arranjar também onde morar e as comunidades africanas não tinham acesso a isso, não tinham acesso à habitação, às comunidades que vieram cá trabalhar. Nesse contexto já havia cabo-verdianos em Lisboa a viver, em Campo de Ourique e outras zonas, mas era pessoal que veio já formado, pessoal que trabalhava já no aparelho do Estado colonial, tanto angolanos, guineense, cabo-verdianos, que já trabalhavam no aparelho do Estado, já eram funcionários do Estado.
E por isso que há vários tipos de comunidades africanas e principalmente cabo-verdianas em Lisboa, porque uns já votavam no aparelho do Estado, claro que tinham outros assentos, mas aqueles senhores da construção civil, principalmente, não tiveram esse privilégio de acesso e descobriram que havia terrenos e zonas onde pessoas portuguesas, ciganas e africanas estavam a construir habitação. E que é ali no bairro das Fontainhas, que é o bairro onde eu nasci.
Chegaram para lá em 1972, 1973 e eu tenho uma irmã que já nasceu em São Tomé, já tinha nascido em São Tomé e a minha primeira irmã nasceu em 1974, já no bairro das Fontaínhas. Eu nasci nas Fontaínhas, já na casa dos meus pais. Porque quando os meus pais vieram e moravam com os pais deles. Como os meus avós tinham aquela casa onde a família toda morava. E depois, mais à frente, o meu pai encontrou outro terreno e começou a fazer a casa dele. E eu nasci em 1976. Tenho quatro irmãos que nascemos seguidos, 74, 75, 76 e 77. E essas comunidades foram autoconstruídas, bairros auto construídos. Já havia lá casas, já havia portugueses, ciganos e africanos a morar.
Há pessoas que vieram já mais tarde, que conseguiram comprar casas já, porque havia portugueses que iam saindo e também africanos de Santo Tomé que iam saindo. E houve, por exemplo, o meu tio que comprou a casa dele por 3 mil escudos. E há 3 contos de réis. E nesse contexto de vários casas construídas, as casas no início eram de madeira. Madeira e chapa e com qualquer coisa que desse para estruturar uma casa. Havia casas de cartão, com plástico. E em 77 houve um incêndio no bairro, em que morreram duas crianças, mas já no bairro havia sempre esse tipo de incêndios, porque era material muito rápido para pegar fogo e as pessoas usavam velas e candeeiros a petróleo, mas também houve fogo posto, houve mão criminosa também em algum dos incêndios, porque nossos pais faziam vigia à volta do bairro à noite, que era para proteger de eventuais pessoas que iam lá provocar fogo. E também em 1983 houve uma cheia, também onde a comunidade ficou alagada com um metro e meio de cheia d’água.
Portanto, essas comunidades, já com o racismo institucional, com a segregação, ainda passaram por essas situações de incêndio, cheia, falta de saneamento, filhos sem ir à escola. Por exemplo, a nossa geração que nasceu cá, não fomos à creche, ficávamos em casa com as tias, e a nossa língua sempre foi crioulo de Cabo Verde, nós só fomos a falar português no Centro Social 6 de maio e na escola em casa falávamos crioulo e a comunidade era maioritariamente cabo-verdiana, também os portugueses foram saindo a comunidade cigana também foi saindo e a comunidade ficou maioritariamente africana.
Você já falou um pouco dos acessos que você tinha. Vocês não foram à creche. O hospital mais próximo de vocês, a escola mais próxima, isso não tinha?
Nós já tínhamos escola. Quando fomos para a primária, havia escola primária, mas em termos de pré-escola, tínhamos só o Centro Social Bairro 6 de Maio, que é onde as irmãs Dominicanas do Rosário criaram um centro de apoio à comunidade. Quando eles vieram para cá em 1976, o grupo de irmãs dominicanas e criaram o centro social Bairro 6 de maio, que eles é que apoiavam a comunidade a todos os níveis, a todos os níveis e pronto.
Vê-se que uma criança que nasce em Portugal, pós 25 de Abril, não teve direitos. Aquela liberdade do 25 de Abril que tanto falam e sabendo que a nossa comunidade era classe trabalhadora, veio de Cabo Verde antes da independência, acho que Portugal devia ter outro tratamento para com essa classe trabalhadora que veio. Faltou muita coisa que reflete-se nos dias de hoje. 50 anos depois, vemos que muita coisa não foi feita para nós que nascemos cá, ter as mesmas possibilidades de oportunidades, de acessos, e viu-se que os bairros acabaram em 2001. Passamos por várias situações e quando o bairro já estava construído com esgoto e casas mais fortes, foi demolido para pôr em uma estrada e foi o processo de alojamento também que foi uma coisa muito pesada para as comunidades.
Me veio aqui uma referência do Antônio Bispo, que eu não sei se você conhece, que é um brasileiro, quilombola, que ele uma vez fez uma crítica a um projeto que tem no Brasil que chama Minha Casa Minha Vida, onde se fazem casas, apartamentos e é um valor acessível, um projeto bem interessante que o governo brasileiro criou, e uma vez ele fez uma crítica, foi a primeira vez que eu vi a crítica dizendo aquilo é casa para quem, né? É um apartamento de 40 metros quadrados, então você tira as pessoas de um contexto de casa, com animais, assim, e põe dentro de um apartamento. Trago essa referência para você contar o que era casa nesse espaço que você nasceu, assim. Como é que vocês viviam ali? O que tinha, como era esse contexto?
Lá está, o Bispo tem muita razão. Quando vi a fala dele, foi este ano, o ano passado que eu conheci, ele fala tudo o que as nossas comunidades viveram. E isso era uma grande crítica, porque não se pode fazer realojamento de pessoas sem acompanhar o seu modo de vida.
Nós, aqui no bairro das Fontaínhas, tínhamos casa com quintal, tínhamos uma horta onde podíamos ter animais, ter um terreno onde plantávamos tudo o que podíamos plantar, porque a comunidade cabo-verdiana é agricultura está enraizada na comunidade e esses instrumentos que tínhamos no bairro, após o realojamento não foram nenhum cuidado. Mesmo a vizinhança, quem era o teu vizinho, podiam vir ao realojamento, podíamos viver juntos, ter a mesma vizinhança, o Estado cortou tudo isso, porque sabia também do poder da comunidade estar junto, porque durante esses tempos na comunidade, o Estado abandonou essas comunidades, as comunidades foram se autoconstruindo, dinamizando, criando associação comunitária, ajudando mutuamente, que é aquilo que eu digo que a nossa maior riqueza na comunidade foi o Djunta Mon, que é o juntar as mãos, dentro daquela segregação, as pessoas colaboravam com os outros, ajudavam os outros na construção da casa, ficar com criança para outra pessoa ir trabalhar, todas essas questões, e havia um pacto de compromisso entre pais, segurança dos filhos, porque era um país novo, eles vieram de um contexto de trabalhadores escravizados nas roças, onde não tinham voz, onde não ocupavam espaço nenhum e sabiam dessa realidade, mas para nós, crianças, que nascemos em Portugal, não tínhamos noção do que é que os nossos pais tinham passado, por isso que nós também ficávamos num limbo.
Nascidos em Portugal, mas vimos que a nossa situação não era de um cidadão. Um cidadão era de um cidadão com outra categoria. E isto vê-se pelo… Mesmo tanto no bairro a gente deu a volta e conseguiu auto sustentar. Nesse realojamento voltamos novamente para trás. Porque quando viemos para a Boba em 2001, tivemos que voltar a nascer e para morar numa habitação, numa casa de 40m, numa casa estruturada para não estar em consonância com o ambiente. E até isso custou para nos ambientarmos e tirar uma pessoa de um modo de habitar para outro, sem acompanhamento e sem estrutura e sem conhecimento da vivência, é mau. Mas eu digo, não foi falta de conhecimento, tinham conhecimento. Esse realojamento foi forma de dissipar as comunidades, quebrar a força comunitária que já estava enraizada e não viram as pessoas, porque o realojamento para mim foi exploração do Estado, porque viemos para os bairros realojados e a situação continua a segregação, os bairros conotados como bairros perigosos e mesmo as estruturas à volta do bairro é uma estrutura de segregação, uma esquadra de polícia, uma escola e tudo perto, do pé, onde as crianças não saem desse espaço. Corroboro com a crítica do bispo que casa para quem? Essa casa para quem? Qual é esse modelo de casa?
O Estado Português separava os moradores em outros bairros, é isso? Eles se dividiam como estratégia mesmo?
A minha irmã foi para o Zambujal, a minha mãe veio para a Boba, e outros familiares meus foram para o Casal da Mira, e isso foi desmembrar uma comunidade que já tinha relações, mesmo pessoas ciganas que ficaram nas Fontaínhas que vieram para a Boba, eles não deixaram essa pessoa ficar com essa comunidade foram pôr ao pé da pessoa da comunidade dele e isto para mim é a pior coisa, porque as comunidades já estavam entrosadas tanto brancos, ciganos, negros estavam entrosadas, mas eles fizeram comunidades de populações consoante a sua etnia e isso para mim é segregação também, não é inclusão. E eu tive de novo a inclusão nas políticas públicas em Portugal.
Você viveu 25 anos nas Fontaínhas, o que mais te marcou assim?
Para mim, a união comunitária dentro da pobreza, fazer tudo para uma criança ser feliz, para uma criança ter um mínimo e esquecer da pobreza. Acho que essas pessoas foram todas uns heróis. Os nossos pais, os nossos avós foram heróis porque eu agora vejo a minha infância com alegria dentro dessa resiliência. Vejo o que é que faltou. Faltou muita coisa, mas eu tive alegria. Os meus pais lutaram para a gente não passar fome e tivemos eventos na comunidade de Marcantes e o dia-a-dia também era uma vivência livre, sentia-se mais livre, mais dono de si.
E a comunidade foi crescendo com várias dificuldades, mas por falta de apoio estatal, porque o Estado deixou essas comunidades abandonadas e continuava a lucrar por eles, por exemplo, pedir fundos na União Europeia para combater a pobreza e não combater a pobreza. E continua até hoje os bairros a ser o bode expiatório do que vai mal no país e apontar tudo o que é de mal do bairro. E eu vejo que não tem noção e eu acho que tem noção, mas eu não valorizo o contributo dessas comunidades para a construção de Portugal em vários níveis, cultural e rico, tudo.
Essas comunidades (cabo-verdianos, angolanos, guineense, são-tomenses) deram muito e estão a dar muito a esse país. E eu sinto que as comunidades migrantes são tipo um laboratório só para ter, para usufruir do que é bom, para tirarem coisas boas e deixarem lá e tiram as coisas boas e nunca a comunidade ganha com isso. Até o nosso intelectual não é valorizado, é apropriado, porque não temos canais para sermos nós os atores da nossa fala da nossa realidade.
Agora que você contextualizou sua vida, o bairro, de onde saiu a ideia do Projeto Noz Stória?
Já passou um ano. Eu vivi sempre no ambiente cultural, associativismo e sempre falei do meu bairro, tanto nas intervenções, tanto artisticamente como dançarino, como rapper, fazer peças de teatro e também ouvir os mais velhos, ouvi sempre, tinha sempre a preocupação de ouvir os mais velhos e perguntar a nossa história antes de eu nascer e também sempre há conversa entre a roda de família, contarem episódios e como foi eu sempre absorvendo e ir conscientizando com o tempo. E eu fui crescendo, o meu intelectual também foi crescendo dá para juntar isso como uma riqueza, eu sempre ouvi falar mal das comunidades mas eu que nasci lá vejo ao contrário, portanto eu tinha que ver uma narrativa para desconstruir a fala que eu ouço nos media, que os media transmitem, que a sociedade tem dessas comunidades.
E achei, bem, eu vou falar sempre dos meus bairros e dos bairros que eu conheço dessas comunidades, porque eu sei que tiveram muita história de riqueza e muita resiliência e muita contribuição nesse país e também como uma forma de denúncia do que é que faltou do aparelho do Estado para com essas comunidades e como uma forma de tributo a todas as pessoas que passaram na comunidade, que deram muito a esse país, que os seus nomes não estão nos anéis da história e eu queria perpetuar a história dessas comunidades como forma de tributo. E também, depois sei que também mais tarde comecei a ver que dá para desconstruir narrativas e consciencializar pessoas que têm interesse em conhecer as histórias dessas comunidades. Agora tenho mais certeza que é um bom instrumento de trabalho também, para desconstruir até a narrativa na academia e nas escolas, em vários sítios onde o Noz Stória quer ir e está a ir. Acredito que, mas eu não fiz isso de um modo comercial, fiz isso de um modo pessoal e de trabalho, porque sempre falei da minha comunidade e quis que fosse um passeio da minha comunidade. E quis que fosse um passeio guiado com dignidade. Tem muitas pessoas de várias partes do mundo que já vieram ao Noz Stória, Brasil, países da língua portuguesa, países nórdico, Dinamarca, França, e esses países, eu vi pessoas também árabes, pessoas que fazem uma visita árabe aqui em Lisboa, sim, e veem o potencial e a valorização do Noz Storia.
No trajeto da visita, nós passamos em mais de um bairro, certo?
Sim, passamos no bairro das Fontinhas, 6 de Maio, Estrela da África. Passamos para a Cova da Moura ou para a Reboleira. A ideia é passar por várias comunidades e terminar com um almoço confraternização dentro de uma dessas comunidades, com o sentido de apoio à economia local, valorizando a nossa gastronomia. Pronto. E lá está.
No Instagram do Noz Stória tem sempre a agenda, né?
Tem sempre um link para a descrição, com o percurso, e o horário.
Uma última pergunta que gostaria de fazer, você nasceu pós-revolução e sendo português, não tendo acesso aos direitos, enfim, a uma vida digna aqui nesse país. A gente vive um momento crítico também no contexto da imigração e o fato é que ao longo das décadas vários imigrantes sofreram ao chegar aqui, como seus pais e seus avós. Queria que você comentasse um pouco sobre esse passado e presente da imigração em Portugal.
Bem, eu, falando da imigração em Portugal, eu vejo que, normalmente, ouço dizerem que a imigração em Portugal é descontrolada. E eu não estou de acordo com isso. A migração em Portugal é muito bem controlada e já vem de várias décadas atrás. Portugal usa os seus países de língua oficial portuguesa, principalmente Angola, Brasil, Cabo Verde, Guilherme e São Tomé, com políticas diferentes de imigração, uns com os acessos, outros com outros, falando principalmente da comunidade onde eu cresci, cabo-verdiana, angolana e guineense, eu sinto que Portugal usa uma política mesmo que tira um acesso. Parece que os países ainda não são independentes.
Eu vejo a política que Portugal tem com o Brasil nessa imigração, os acessos e as condições, que os outros países da língua portuguesa nunca tiveram. E em termos de pessoas que vêm cá trabalhar a classe de obra, mão de obra, há valorização, há diferença de tratamento. Há diferença de tratamento que eu vejo.
O que eu quero dizer é que se todos os países da CPLP tivessem os mesmos direitos, os mesmos tratamentos, sim, mas eu vejo que ali cada um tem o seu valor consoante os interesses de Portugal. E isso é mau, já para mim a CPLP não funciona, é uma coisa, é tipo, cada um com o seu estatuto, e até podem entrar mais alguns, como já entrou países que nem têm nenhuma cultura com a língua portuguesa, portanto vê-se que não é uma instituição para valorizar todos os países da língua portuguesa, é só para valorizar a língua portuguesa, não os países que envolvem isso. E isso é um crime, utilizar estes países por causa de uma língua e não dar os acessos.
Eu fui a Cabo Verde e vi como o português é tratado lá. Vejo como é que o português é tratado em todos esses países. E quando vejo o tratamento que é dado aqui. E quem perde em Portugal, porque essas políticas não desenvolvem o país, por isso também que não vê filhos de cabo-verdianos em Portugal a ocupar lugar de decisão que já deviam estar a ocupar há muitos anos. E também não esquecemos que houve uma lei da nacionalidade, que muitos jovens nascidos em Portugal, homens e mulheres, ficavam sem direito à nacionalidade. Não acontece com todos os países. E Portugal, lá está, cada um com política para cada país.
Usando a classe trabalhadora precária menos instruída, para mim é o neocolonialismo, é a continuidade do neocolonialismo e eu como nasci cá fico muito triste e fico desiludido porque depois de várias lutas de várias resiliências ainda a gente cresce e vê que afinal há um Estado por trás, uma estrutura do Estado que priva pessoas de direitos. E isto está numa olhada de hoje, ainda agora com esse populismo que há aí sobre a imigração. Isto é por falta de não estarmos no espaço de decisão onde só um dita o que é. A sociedade majoritária dita o que é. Se tivéssemos todos excessos em espaços de decisão, desde há muito tempo, tínhamos um país melhor. E pronto, e aí fazia reflexo a toda a língua portuguesa. A todos os outros, mas pronto.
Obrigada, Sinho. Você quer complementar a entrevista com alguma coisa?
Sim, da parte dos direitos humanos, que é uma parte que é muito não falada aqui. Falamos de habitação, falamos de educação, mas os direitos humanos, por exemplo, na violência policial nos bairros. Já vem desde há muito, não é? Desde que eu nasci eu vi essa violência e diferença de tratamento para com os bairros auto construídos, onde moram essas comunidades imigrantes. E isso é uma coisa também que lá está, não há uma política, por exemplo, Cabo Verde, Guiné, São Tomé, Angola, Brasil, de chamar atenção a Portugal sobre a violência que tem ocorrido nos seus cidadãos aqui em Portugal. É uma coisa também que me fico perplexo, porque vê-se a negligência, que há muita negligência a nível de não apurar fatos e porque Portugal já foi chamada atenção pela ONU, pelos direitos humanos, por várias instituições, das situações que estão ocorrendo. E Portugal não toma essas informações e essas chamadas de atenção com relevo. E é uma situação que devia ser porque temos visto mais violência policial, mais intervenção policial em vez de políticas públicas reparativas. Tem que haver políticas públicas nessas comunidades onde já tem quase meio século de segregação. Se não houver políticas públicas, qualquer dia temos o exército aí nos bairros, um estado marcial para os bairros. Por aquilo que por medo que põe a sociedade que vai mal do que o país está mal e isto é por falta de políticas públicas reparativas que era importante fazer em Portugal e mais consonância entre os países dito da língua portuguesa principalmente aqueles que já têm um laço histórico muito grande.
E isso pode ser que falado no Noz Stória, trazer uma história a todos estes países principalmente Cabo Verde, Guiné, Angola Moçambique, São Tomé, Brasil quero ir a Salvador da Bahia o livro do Jorge Amado fala, muito é um livro que eu conheci aqui em Portugal tenho 23 livros de Jorge Amado e deu-me para ver um bocadinho da igualdade que temos de povos africanos, afrodescendentes desses países todos, até o modo de vivência e o modo de perseguição também, de tortura e também foi um bom livro que eu situar-me na situação do africano para os países.