Por Jamil Chade.
A participação dos países de língua portuguesa na abertura da Assembleia Geral da ONU foi marcada por um ponto em comum: todos concordam que a entidade já não representa a realidade do mundo e que uma reforma é urgente. Um por um, os principais líderes da lusofonia alertaram que existe um sentimento de frustração por parte dos países em desenvolvimento diante da incapacidade de que possam fazer parte das decisões que definem o destino do planeta.
Na semana passada, chefes de estado e de governo desfilaram pelo púlpito mais importante da diplomacia mundial, em Nova York. O Portal Vozes examinou a participação dos países de língua portuguesa e, em quatro continentes diferentes, esses governos fizeram um diagnóstico parecido de um mundo que vive múltiplas crises.
Respeitando a tradição de décadas, o primeiro a discursar foi o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. Ele colocou o debate sobre a desigualdade no centro da agenda e não escondeu sua decepção diante da situação social internacional. Segundo ele, para vencer a desigualdade “falta vontade política daqueles que governam o mundo”. “O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e a fome parece estar anestesiado”, disse.
Um outro alerta dele se referia à resistência das potências em reformar o Conselho de Segurança da ONU. O Brasil, dois dias depois do discurso, assinou uma declaração conjunta com Japão, Índia e Alemanha, apontando que os quatro países julgam que podem ser representantes legítimos de suas regiões numa eventual expansão do órgão máximo de segurança no mundo.
Mas Lula não foi o único a citar essa urgência. João Manuel Gonçalves Lourenço, presidente de Angola, alertou que quase 78 anos após a fundação da ONU, ainda não é possível evitar o surgimento de focos de tensão, que degeneram em conflitos abertos.
Segundo ele, a gestão dos temas globais ainda não atende aos interesses das diferentes nações. “Não se pode deixar de reconhecer que a lacuna entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos continua sendo uma realidade inaceitável”, disse.
Em sua avaliação, por não estarem adequadamente representados em grande parte das instituições de governança mundial, os países em desenvolvimento não conseguem expressar suas sensibilidades e, assim, contribuir para a formulação de soluções para seus problemas.
“Essa situação gera ansiedade e frustração nas populações mais vulneráveis que, por não terem suas expectativas atendidas, tornam-se facilmente permeáveis a influências negativas”, enfatizou.
Nas últimas décadas, muitos países africanos resolveram conflitos, investiram o que puderam no desenvolvimento socioeconômico e promoveram a educação de seus cidadãos, disse ele. No entanto, a falta de perspectivas econômicas e sociais em muitos países cria um terreno fértil para o enfraquecimento das democracias incipientes do continente.
“Na África, tentamos encontrar maneiras de sair da situação atual, como a iniciativa de criar a Área de Livre Comércio Continental Africana”, disse ele. Mas ele alerta que continua sendo uma triste realidade o fato de que muitos jovens africanos são forçados a tentar realizar seus sonhos fora de seu continente, muitas vezes embarcando em perigosas travessias do Mediterrâneo.
Para Angola, a reforma do Conselho de Segurança deve refletir a realidade dos tempos atuais e a África deve ter um lugar permanente no órgão.
O mesmo tom de frustração foi adotado por José Ulisses Correia e Silva, primeiro-ministro de Cabo Verde. Fazendo um apelo para que a comunidade internacional se mobilize em prol da paz, da prosperidade, do progresso e da sustentabilidade para todos, ele usou seu discurso na ONU para alertar que o mundo tem vivido um período de crises intensas, incluindo o ressurgimento do populismo e do extremismo, ataques à democracia, golpes de Estado em Estados africanos e a guerra na Ucrânia.
Em sua visão, dois aspectos são fundamentais para que a segurança internacional seja garantida. O primeiro é a reforma da arquitetura financeira internacional, incluindo a operacionalização de instrumentos de financiamento climático e ambiental e o aumento dos direitos especiais de saque, bem como o alívio da dívida dos países menos desenvolvidos.
Correia e Silva destaca que investimentos podem ser fundamentais para tirar os emergentes de sua condição atual. No entanto, ele alerta que o peso da dívida externa, os níveis de riscos soberanos e as condições de financiamento para os países e empresas africanos bloqueiam seu caminho rumo ao desenvolvimento.
O governo de Cabo Verde assinou com Portugal um acordo para converter a dívida bilateral em financiamento climático e ambiental. A esperança dos africanos é de que isso possa liberar recursos para investimentos que aumentem a resiliência, reduzam a exposição a choques externos, diminuam as emissões de carbono, protejam a biodiversidade, gerem oportunidades de investimento para o setor privado e criem oportunidades de emprego qualificado para os jovens.
O segundo aspecto é a reforma das estruturas de poder. Para ele, os países africanos devem ter uma representação justa e relevante no Conselho de Segurança e nas instituições financeiras internacionais, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Ainda que parte da Europa, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, foi outro que usou seu discurso para alertar sobre a necessidade de uma reforma das instituições. Algumas dessas instituições foram formadas no século passado e não correspondem às realidades atuais, observou ele.
Numa fala que ecoou entre os africanos e latino-americanos, o português destacou o que ele acreditar ser as três principais urgências interconectadas no mundo de hoje – a necessidade de respeitar a Carta das Nações Unidas; acelerar a luta contra as mudanças climáticas para cumprir os objetivos da Agenda 2030; e reformar as instituições internacionais.
Segundo ele, não há desenvolvimento sustentável, nem respeito à Carta da ONU, sem a reforma das instituições internacionais. E não há reforma sem o respeito à Carta e sem a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Também num tom de frustração, o presidente português questionou a credibilidade dos líderes globais que participam de um debate na Assembleia Geral quando as questões que eles identificam em suas declarações não são tratadas com a devida urgência.
Já o prêmio Nobel da Paz e presidente do Timor-Leste, José Ramos Horta, fez questão de enfatizar que o atual momento de crises globais e geopolíticas entre as potências afetam desproporcionalmente os países frágeis.
Para ele, é necessário uma nova perspectiva sobre o nexo entre clima e segurança, alertando sobre a urgência da garantia de recursos aos mais pobres. O desbloqueio do financiamento por meio da redução da dívida, a racionalização do financiamento internacional com as menores taxas de juros e o aumento da assistência ao desenvolvimento facilitarão, em sua visão, a mitigação dos gases de efeito estufa e a adaptação às mudanças climáticas.
Mas, assim como os demais líderes, Ramos Horta não deixou de mostrar sua indignação. Segundo ele, “os super-ricos CEOs de bancos e países credores permanecem indiferentes aos pedidos de cancelamento da dívida”. “Cancelem essa maldita dívida”, apelou.
“Vivemos em um universo cheio de dualidades: um mundo cada vez mais próspero, cuja riqueza aumentou em US$ 30 trilhões por ano”, disse. Mas onde líderes do G7 e do G20 não refletem isso na luta contra a fome e contra a pobreza.
Não faltou ainda o alerta do português, Antonio Guterres, secretário-geral da ONU. Segundo ele, sem uma reforma da instituição, o mundo viverá uma fragmentação com consequências imprevisíveis.
“É hora de um compromisso global”, disse. “Política é compromisso. Diplomacia é compromisso. Liderança eficaz é compromisso”, completou.