Por Jamil Chade
No coração da Vila Olímpica na França, foi inaugurada a Rua Doutor Sócrates. Depois de terminada a Olimpíada, ela será uma das principais vias de um novo bairro na cidade de Saint-Ouen sur Seine, na periferia de Paris.
A festa, no dia 30 de março, foi marcada por dezenas de referências ao encanto do ex-jogador em campo. Mas longe de ser apenas uma homenagem a um ex-atleta brasileiro, a escolha do nome teve uma dimensão política explícita, tanto para o Brasil como para a França. Diante do avanço da extrema direita e das ameaças contra a democracia, o gesto simbolizou a necessidade de que uma nova geografia seja estabelecida, desta vez com referências à democracia e aos valores dos direitos humanos.
Ditadura sabem da importância de controlar o espaço. No Brasil, ainda temos dezenas de praças, ruas e avenidas com os nomes de líderes autoritários e torturadores.
Outro caso emblemático e complexo foi a disputa pelos espaços públicos que se estabeleceu no Irã. O regime de Pahlavi buscava a construção da nação iraniana, unida e sob um estado autocrático. Juntamente com projetos de reformas em todo o país no judiciário e na educação, a expansão urbana e a reconstrução de Teerã foram usadas para forjar um estado moderno e secular. As ruas e seus nomes, portanto, espelharam esse projeto.
Mas após a revolução de 1979, o novo governo assumiu a responsabilidade de reescrever a história passada para forjar um novo senso de pertencimento e uma identidade religiosa coletiva. O primeiro ato seria eliminar as memórias e a herança nacionais e não religiosas, associadas e celebradas pelo regime anterior. O segundo passo foi o de estabelecer um senso de continuidade com o passado xiita do país. E as ruas serviram como espaço para esse esforço de rescrever as referências. Uma vez mais, porém, elas passaram a ser usadas por outro regime autoritário, desta vez islâmico.
Mas o que os franceses mostraram é que ela também pode ser uma trincheira para a resistência ou um sinal de que o passado ditatorial não é nossa referência.
Assim ocorreu em Berlim depois da queda do Nazismo, a partir de 1945 e quando dezenas de vias ganharam novos nomes. Renomear parte da cidade foi trazer um forte simbolismo político aos espaços urbanos. A queda do comunismo e o colapso da URSS, no início da década de 90, também conduziram a uma transformação urbana. Como resultado, Moscou mudou os nomes de 153 ruas, Bucareste de 288, Berlim Oriental de cerca de 80 e Belgrado outras 192 ruas.
Ainda que sejam aparentemente mundanos, os nomes de ruas constituem parte integrante da construção contínua da identidade nacional. Se regimes autoritários as usam para construir uma narrativa, renomear o espaço também pode ser um instrumento para deslegitimar ditaduras.
Num longo processo de redemocratização, a Justiça certamente tem um papel fundamental para lidar com os crimes. Mas a insurreição das consciências apenas vem quando ousamos usar novas bússolas e novas referências para marcar os passos de uma sociedade.
Ao batizar uma rua de Sócrates, a mensagem que se manda é que o único caminho é a democracia.