Nascido e criado no musseque, o escritor Beni Dya Mbaxi leva para os livros aquilo que vive, sente e respira no seu dia a dia em Angola
Por Marcelo Ayres
Beni Dya Mbaxi é um jovem escritor angolano, apenas 27 anos, que já escreveu sete livros, entre contos, poesias e romances. De sorriso aberto e fácil, palavras fortes e posicionamentos claros, Beni traz para a literatura aquilo que o formou no musseque, sua família, a forte relação com a avó e o feminino.
Para ele sua escrita é um dom, que ele deve compartilhar e levar para todas as pessoas. Colunista do Portal Vozes, desde sua inauguração, Beni também já colaborou com jornais em vários países da África e recentemente foi escolhido para destaque do livro “Change Maker” nos Estados Unidos, na lista dos jovens reconhecido pelo ativismo social e está entre as 50 personalidades de mais destaque em Angola escolhidas pela revista “O Outro Lado do musseque”.
Em uma conversa franca e aberta, Beni contou de sua trajetória, sentimentos e planos para o futuro. Confira a seguir os principais textos da entrevista.
Como que você começou a escrever? Como que isso surgiu para você? Você fala uma coisa bonita, que isso é um dom que você recebeu e que você tem que passar ele para frente. Então quando foi que ele surgiu para você?
Bem na verdade, eu sinto que essa coisa de arte, eu acredito que já nasci com isso porque desde muito novo eu já tinha jeito de escrever rimas. Eu comecei na poesia e com os meus 11, 12 anos, eu sou cristão e na altura, ia muito a igreja, quando criança, por influência também da minha família. Então tinha uma atividade na igreja que era conhecida como EBF – Escola Bíblica de Férias – quando acabava as escolas antes do Natal, nós tínhamos essas atividades na igreja. Nestas atividades, as crianças apresentavam poesias, jogral, teatro e foi aí em ver outras crianças a declamarem a fazerem seus textos, que eu fui dando conta fazendo uma composição, fui dando conta que eu conseguia fazer aquilo com muita facilidade. Foi aí onde eu começo ver essa capacidade de escrever.
Fora dessa atividade na igreja, eu pude também perceber que conseguia fazer música! E naquela altura eu escrevi, acredito que três canções de estilo musical kuduro. Também naquelas atividades da igreja eu escrevi a primeira peça teatral. O tempo foi passando e eu acreditava que era só uma habiliade, um jeito que eu tinha com as palavras. Só em 2018, já na universidade, acredito que no quarto ano do meu curso de língua portuguesa e comunicação, depois tendo muitas cadeiras de literatura, foi aí que eu me despertei.
Na universidade, eu percebi que aquilo que o professor estava a falar, a ensinar, que eu conseguiria fazer com muita facilidade. Fui aí que eu vi que poderia ser escritor. Então em 2018 publiquei a minha primeira obra.
Você já tem sete livros publicados e dois deles foram lançados no Brasil, A Menina da Burca e a Última Masoxi, os dois pela Editora Cintra. Conta um pouco sobre eles.
“A menina da Burca” foi publicada primeiro, em 2019. Foi a primeira novela que eu publiquei. Em 2020 surgiu “A Última Masoxi”. Esse é o livro que me colocou em destaque e que me fez ficar conhecido em Angola e com o qual recebei alguns prêmios. Ele foi adotado em algumas escolas do país e também no Brasil. Ele também foi adaptado para o teatro.
A última masoxi é um livro que conta a história de uma menina de 11 anos que vive com suposto padrasto e a mãe, ambos toxico dependentes, usuários de droga e a masoxi vê a sua mãe a morrer quando ela tinha 11 anos de idade, ela vive em um carcere privado dos 11 até 17 e passa por situações totalmente constrangedoras.
A menina da burca é uma obra que surgiu para mim por meio de uma reportagem da RTP África que contava histórias de mulheres do Paquistão que passam por maltrato. Aquela reportagem marcou-me muito e não queria dormir sem contar, porque me incomodava. Acordei e fiz uma intertextualidade. A minha obra relata a história de duas mulheres, uma angolana e uma paquistanesa. Ambas sofrem perseguições por parte dos ex-companheiros e então passam por situações totalmente terríveis. Na verdade eu quis com essa obra retratar os maus tratos que as mulheres passam no mundo todo.
Estes dois livros foram adotados por escolas públicas brasileiras para serem objetos de estudos. Como foi isso?
A menina da burca chegou primeiro em uma escola pública, no Rio de Janeiro, por intermédio de uma aluna na aula de Geografia. Ela já me conhecia e já tinha lido o livro e propôs o livro ao professore para a turma, porque eles gostariam conhecer Angola e a África na verdade.
A Última Masoxi foi adotada por outra escola pública no Rio de Janeiro em 2023, por intermédio da professora, Renata Barcelos Segunda professora eles têm estudado a situação da mulher africana no século 21. Foi neste contexto que os meus livros chegaram a estas duas escolas.
Como é sua relação com os leitores brasileiros?
Bem na verdade os meus livros tem um contacto muito próximo com o Brasil. Desde 2018 quando comecei a escrever e publicar os meus livros, os primeiros feedbacks, que apareceram ou apresentados foram do povo brasileiro. Eu acredito também por uma questão sermos muito parecidos e que a nossa literatura clássica também é muito influenciada pela literatura clássica brasileira. Porque os nossos clássicos beberam muito na fonte de Jorge Amado, José de Alencar e Graciliano Ramos e muitos outros escritores clássicos da literatura brasileira.
Isso, a meu ver, porque o Brasil se desfez do jugo colonial primeiro, em relação à Angola. Então quando os escritores clássicos angolanos liam as obras do escritores brasileiros sentiam-se identificados por aquilo que o povo brasileiro passou e que agora estamos nós a passar.
Então essa relação entre Brasil e Angola é muito forte. Tem também a questão sobre o êxodo dos escravizados que saíram daqui e muito deles foram parar no Brasil e levaram muitas coisas da nossa cultura. Eu sinto que não tinha como no Brasil os leitores não se identificarem com a minha obra, pois que somos muito parecidos não são culturalmente, mas também na questão da língua, porque fomos colonizados pelo mesmo colonizador.
Uma coisa marcante em seu trabalho é o quanto que você se envolve com a questão social, com a questão do povo angolano e o que você traz dos musseques. Gostaria que você contasse um pouco essa sua relação com esse tema?
Na verdade muita gente pergunta isso. O termo musseque, que é extraído da língua nacional angolana quimbundo significa “terra vermelha”, mas na verdade a semântica foi mudando e ele foi ganhando outras transições, que hoje em dia significa “zona periférica”, que no Brasil falarmos “favela”, em Portugal “bairro de lata” e outras línguas “gueto”.
Eu sou um jovem que nasci, estou crescendo e até agora ainda vivo no musseque. Num dos musseques de Angola, propriamente em Luanda e num dos municípios que é Cazenga. Na verdade eu cresci em torno dessa dificuldade. Eu só foi descobrindo que o musseque faz parte de mim mais tarde. Quando eu li as obras clássicas eu não encontrei esse termo. Esse termo eu já ouvia da minha avó e nas pessoas com idade mais avançada. Quando eu caminhava com a minha avó, ela dizia assim: ‘ah é muito diferente as coisas da cidade do que no musseque’. Eu ouvia apenas. A avó falava, mas depois quando eu li isso nos contos dos livro do Jofre Rocha, Uanhega Xitu, Óscar Ribas e o próprio Agostinho Neto, que foi o primeiro presidente de Angola, nas suas poesias. E aí eu fui investigado mais no Pepetela, eu fui investigando mais e aí eu fui dar conta que eu faço parte deste mundo. Afinal de conta eu estou inserido no musseque.
Então o musseque que eu trago, que hoje em dia tenho a ousadia de falar, do que eu escrevo, não é propriamente uma literatura, mas sim uma “mussequetura”. Eu trago isso como uma “mussequetura”, porque o que eu escrevo são as coisas que eu vivo, o que eu penso, o que eu analiso, o que é o meu entorno. Então eu não consigo me ver extraordinário naquilo que eu faço. Eu não sou perito em literatura embora tenha estudado alguma coisa sobre literatura. Mas é a “mussequetura” que eu faço percebes. É trazer ao mundo, é mostrar ao mundo daquilo que me rodeia. Também eu brinco muito com uma coisa muito interessante, que é a autoficção percebes, eu gosto de trazer o exagero. Gosto de trazer anormalidade. Gosto de trazer o eufemismo e gosto de trazer muita coisa mais naquilo que é a minha escrita. Então esse contato com o musseque é a minha realidade. É o que eu vivo, o que eu conto em meus livros de contos e principalmente nos ensaios e alguns textos que vão para as colunas é muito daquilo que é a minha vida, no meu cotidiano.
Eu vivo com pessoas que não sabem o que é um livro. Eu vivo com pessoas que não sabem o que é uma letra. Não sabem o que é a importância de uma leitura e eu sei o que é isso. Então eu sou um emissor, eu sou a voz de muitos. Eu procuro pegar a história do João, a história do Pedro, a história do Kiala, a história do Marcelo e com aquilo que é minha utopia, aquilo que eu acho que isso pode vir a gravar, aquilo que eu posso reduzir, aquilo que eu posso inventar. Então faço disso uma literatura, então por isso eu caracterizo como uma “mussequetura”.
Aquilo de me envolver em relação aos Direitos Humanos, defender as mulheres e as crianças isso é por ser uma coisa de eu crescer no meu muito feminino. Porque eu cresci com mãe e avó. Tenho um lado materno mais forte em relação paterno. Eu sendo do musseque e saber que eu posso ajudar, eu não faço todo este trabalho por ser um ativista. Eu me sinto apenas como alguém que possa ajudar o seu próximo percebes? Que eu posso fazer alguma coisa por ele. Eu faço isso como um cidadão que pertence a um lugar que queira se sentir melhor que a minha realidade. Quero que o mundo perceba isso.
A gente estava conversando desse seu ativismo, dessa sua participação e esse reconhecimento que você tem de pertencimento a Angola. Você sempre fala dele em vários textos ou em suas postagens nas redes sociais. “Um dia seremos a nação que sempre desejamos”. Onde isso te pega?
O povo angolano é um povo muito esperançoso. Nós somos muito de esperança, De tanto que a gente já passou, a gente procura muita das vezes ser otimista e ter esperança. Muita das vezes com a situação que nós atravessamos em nosso país, o que nos resta muita das vezes é só esperança. Então eu procuro ter essa Esperança Sagrada, como o título da obra do nosso poeta maior, o Doutor Antônio Agostinho Neto, “Sagrada Esperança”. Eu acho que isso me pega num contexto geral, porque Angola precisa melhorar em muito setores.
Como jovem eu tenho uma esperança de um dia nós melhoramos em quase tudo. É isso que eu tenho para oferecer para as situações que atravessamos que não é muito boa e acredito que todos os países do mundo têm esses problemas. Alguns mais graves que o outro. Essa minha frase refere-se muito a isso de que a gente não pode perder a esperança. Nós somos a esperança e que acreditemos que daqui, não sei, 30, 40, 50 anos, um dia seremos a nação que sempre desejamos, com boa saúde, boa educação, boa economia, onde podemos realmente sonhar podemos dizer que nós temos orgulho de dizer que somos angolanos, sem vergonha nenhuma, sem opressão nenhuma, não é?! Essa minha frase realmente se remete muito a isso: Angola um dia seremos a nação que sempre desejamos.
Um do seus textos que fez mais sucesso em sua coluna no Portal Vozes foi o “Enteado da língua portuguesa”, no qual você, em um contexto dentro do dia a dia, relaciona a sua avó e a maneira como o idioma português entra na vida dos angolanos. Como é que você vê essa relação do idioma português, tanto em relação ao dia a dia, quanto nessa relação entre os países?
Boa pergunta. Este texto não quer calar, porque ainda hoje fui marcado numa publicação, eu tenho um professor que é PHD em linguística e alguém da universidade me identificou e o professor foi lá responder. Eu não sei se este texto quer chegar ao nível da Massoxi. Não sei o que que aconteceu, mas ele está a ganhar assim muita repercussão e fico feliz por ele ser publicado no Portal Vozes.
Acho que isso é muito bom também, né a contribuição que eu tenho muitas das vezes aquilo gosto de escrever coluna, gosto de refletir o dia todo e falando deste texto é um tema interessante, porque é uma coisa que eu respondo todos os dias. Eu ainda me acho que eu não sei falar corretamente o português percebes. Porque toda língua que é invasora que é implementada para quem já tem uma língua, claramente que o indígena, não é, por mais que que aprenda, a gente não vai conseguir falar como um nato, né? Porque ele não é nossa língua mãe.
E eu aprendi, eu tive essa oportunidade. Na verdade esse texto surge, porque eu estudei muitas cadeiras ligadas à língua portuguesa, estudei morfologia, lexologia, semântica, essas coisas todas da língua portuguesa. Eu estudei e até hoje ainda tenho dificuldade na língua portuguesa. Eu fui me dar conta porque fizemos um trabalho de sociolinguística, na altura, e eu pude perceber que o professor apresentou algumas propostas, eu concordei plenamente e eu vejo que isso é verdade assim na prática, não é?
Imagina eu vivo em um musseque e eu aprendi a escrever, segundo a minha avó fora do ensino regular. Eu comecei a aprender com os missionários italianos. Eles vieram fazer uma atividade cá no meu bairro, não é como se fosse essas ações sociais que eu faço agora, né? Também aprendi, começo agora a lembrar, que eu aprendi também com as ações feitas por esses missionários italianos, que vinham traziam alguns materiais didáticos, ensinavam desporto e segundo o relato dos meus tios, que me encontravam naqueles locais onde ensiva, a escrever e me encontravam a formar assim letras e cadernos a fazer e diziam que eu gostava muito disso, então não aprendi a escrever nem a ler na escola. Foi ali com os missionários italianos.
Só para tu veres é que nós temos o franco ensino da Língua Portuguesa no país e temos a debilidade muito alta de professores de ensino da Língua Portuguesa e temos o nível de alfabetismo muito elevado e praticamente não temos uma estatística de leitura no país. E mais, nos musseques, nos coabitamos com pessoas de todos os níveis e pessoas que apresentam o êxodo de toda a parte de Angola. Por ser capital, as pessoas depois da guerra terminar, vieram o pessoal do norte, do sul, do leste, do oeste e cada um vem com a sua língua nacional.
Como o exemplo da minha avó trago ao texto. Então cada um procurava de qualquer jeito para ser entendido. A minha avó abandonou algumas residência que encontrou em Luanda, que haviam sido abandonadas pelos portugueses, que era na cidade e só não permaneceu, porque tinha medo de ser questionada, e ela dizer: que essa casa me pertence, que eu ocupei – porque não sabia falar português na altura, ela foi refugiada na República Democrática do Congo fugiram a guerra. Então ela volta de lá com o quimbundo, que a língua materna dela e volta com lingala, que é a língua nacional do Congo e depois teve que enfrentar a língua portuguesa. sim percebemos. Então ela tinha medo porque voltou com a lingala bem apurada na sua ponta da língua e procurava só falar português, quem sabia falar português, na altura era o marido dela, apenas o meu avô. Na altura o tempo passou e minha avó veio aprender a falar o português. Então vieram a nascer os filhos. Minha mãe nasceu em 1967 e nem fala quimbundo.
Por nascer no musseque nem tiveram um estudo tão elevado e depois nasceram os netos que são os filhos da minha mãe, nesse caso sou eu, e netos que são netos de minha avó. Então e nós com esta toda dificuldade do português e encontramos já o contacto da minha avó a falar o próprio quimbundo, a minha mãe com debilidade do ensino da Língua Portuguesa e nasce eu nesse meio e muita das vezes a minha avó se comunicar com os filhos em quimbundo, algumas vezes com um português arranhado, a minha mãe sem saber a gramática a pena e eu no espaço onde veio tanta gente que eu não sei. A gente aqui no musseque, o português, a gente fala para ser entendido.
Então como a nossa língua materna não é a língua portuguesa, somos enteados e pegamos aqui a questão, que eu aí faço uso de uma metáfora da Língua Portuguesa e a personifico, dou uma vida, passo ela como uma pessoa, dou a ela como um status de madrasta e sabemos que é um caso mundial, madrasta raramente tem bom casos com os enteados. É muito raro. São pouquíssimas pessoas que tem uma boa relação. Então eu não tenho uma boa relação com a minha madrasta, porque também a minha madrasta não pousou muito bem no meu terreno, estás a perceber? Mataram a minha mãe e nós tivemos que se adaptar com a língua que é a nossa madrasta. E até hoje eu me comunico de várias formas no musseque, a gente fala calão, a gente fala gíria, a gente fala neologismos, a gente tenta falar bem o português e algumas vezes temos empréstimos linguísticos do quimbundo, do quimcongo e até do lingala, que é a língua da maioria dos angolanos que se refugiaram no Congo.
Por isso é que nasce esse título – “O enteado da língua portuguesa” – e trago aí a minha avó, claro, eu uso a minha avó em muitos textos. E não falhou, não fugiu nesse texto. Então por isso esse confusão toda aí.