Livro com base na tese de doutoramento de Joacine Katar Moreira trata de como a exacerbação da masculinidade domina a política e a sociedade guineense
Por Marcelo Ayres, São Paulo
A historiadora Joacine Katar Moreira foi a primeira mulher negra a encabeçar uma chapa em um partido para as eleições à Assembleia da República em Portugal, em 2019. Também nesse ano ela foi uma das três primeiras mulheres negras eleitas, na história, para o parlamento português. Joacine esteve no Brasil para eventos sobre o seu livro “Matchundadi, género, performance e violência política na Guiné-Bissau”, onde conversou com o Portal Vozes.
O livro “Matchundadi, género, performance e violência política na Guiné-Bissau” foi lançado em 2020 e foi escrito com base na tese de doutoramento em Estudos Africanos de Joacine, intitulada “A cultura di matchundadi na Guiné-Bissau: género, violências e instabilidade política” defendida em 2018, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
Joacine explica que “o meu livro Matchundadi, palavra do crioulo guineense que corresponde à masculinidade, aborda a História da Guiné-Bissau com lentes do gênero. A meu ver, a história das masculinidades guineenses é fundamental para a compreensão do percurso do país, desde a invasão colonial até aos nossos dias. Procurei construir a história das masculinidades guineenses para explicar a origem das convulsões políticas e institucionais e as heranças, tanto do sistema colonial como também da própria Luta de Libertação Nacional, que afetam sobremaneira a sociedade guineense atual e garantem a dominação institucional masculina e os desequilíbrios daí advindos”.
O trecho, a seguir, da introdução do livro de Joacine Katar define bem, de acordo com a pesquisa da historiadora, como a política da Guiné-Bissau se apoiou neste conceito, que culminou com a condição de que nenhum dos presidentes eleitos depois da independência terminasse seu mandato de forma completa.
“A análise do poder político e das instituições do Estado na Guiné-Bissau deve ser feita considerando sempre questões socioculturais e percebendo como estas últimas enformam e modelam as primeiras. Ora, analisando as dinâmicas políticas do país, desde a Luta da Libertação Nacional aos nossos dias, podemos afirmar que a conquista do Estado da Guiné-Bissau é uma conquista essencialmente masculina e das masculinidades. Sublinha-se que a luta pelo poder político não se configura apenas pela captura do Estado e suas instituições, mas também se trata da luta pelos recursos que os lugares cimeiros nas estruturas do Estado propiciam, o que faz a esfera política ser a mais disputada. A luta pelo Estado é também a luta pela redistribuição dos recursos, papel este que cabe à figura masculina na sociedade guineense.
É então no contexto da dominação institucional masculina que as expressões de hipermasculinidades são levadas para as disputas políticas em rituais marcados por uma grande violência e que não raras vezes culminam na eliminação física ou simbólica, através, por exemplo, do afastamento físico, dos adversários políticos. Essa visão hipermasculina da realidade – e que se manifesta num modo de ser e estar na vida, e na política em particular – é construidora da essência daquilo que é a “cultura di matchundadi“, ou seja, a cultura da masculinidade e da virilidade hiperbolizadas. A “cultura di matchundadi” é, assim, uma cultura codificada, sendo que é inteligida de forma a também ela codificada através de práticas, rituais e símbolos próprios, geralmente os associados ao exercício do poder e do comando. A “cultura di matchundadi” constitui um padrão comportamental, portanto performativo, mas com consequências práticas e nefastas para a democracia, o desenvolvimento e a paz social, pois assenta no confronto constante e na demonstração de força sobre outros.”
A seguir leia trechos de destaque da conversa com o Portal Vozes.
Sua entrada na política não era uma pretensão, nem um plano de vida. No entanto, pelo fato de ser a primeira mulher negra a encabeçar uma chapa nas eleições para o parlamento português e uma das três primeiras a ser eleita a impulsionou a continuar e encarar uma “briga ferrenha” por todo o significado da representatividade?
A questão da representatividade sempre teve um papel central em todo o processo, tanto da candidatura como no período pós-eleitoral. Foi um dos motivos pelo qual aceitei apoiar e reforçar a candidatura do líder do partido às eleições europeias, tendo sido eleita a nº2. Não contava inicialmente com a eleição como cabeça de lista para as eleições legislativas, mas o partido elegeu-me nas primárias com esse fim. Aceitei reticente e sem muita esperança de uma eleição, porque o partido nunca tinha conseguido eleger ninguém antes, mas configurava-se um momento histórico e não quis travá-lo. Na sociedade portuguesa as mulheres negras sempre tiveram pouca expressão e escassa visibilidade e uma candidatura política liderada por uma mulher negra, ainda para mais com todas as minhas características, poderia induzir mudanças e provocar novas possibilidades, o que acabou por acontecer, na verdade, e a vários níveis.
Dois partidos de esquerda que nunca tinham colocado uma mulher negra em lugar elegível, puseram-no nessas eleições legislativas e isso permitiu a entrada de três mulheres negras no parlamento português, o que foi um marco importante em todo o processo de representatividade.
Toda a fúria de ataques sem precedentes, principalmente da imprensa, fake news, foram sobretudo o racismo e xenofobia inerentes da sociedade portuguesa?
A elite portuguesa é muito pequena e muito colonial, portanto, sim, bastante racista. Só aceitariam uma pessoa negra que pudessem controlar e manipular e penso que isso foi a principal causa da tamanha perseguição mediática de que fui alvo. Não perceberam como fui eleita porque a campanha contra mim e a minha candidatura começou ainda antes das eleições, quando discutiam se eu tinha ou não gagueira, e depois se estaria ou não apta para integrar o elenco de deputados ao parlamento português, secundarizando todo o meu percurso, pensamento, conquistas e habilitações superiores.
Não obstante a todas as dificuldades que você enfrentou, você seguiu com a sua candidatura e como você disse, depois de uma campanha de forma inusitada foi eleita. Você poderia nos contar essa história?
A campanha eleitoral foi pensada e implementada por mim e por pessoas amigas artistas, maioritariamente da comunidade LGBTQI+ de Lisboa, que não eram do meu partido político, mas que se encontravam bastante engajadas na luta antirracista. Com um orçamento abaixo dos 10 mil euros, conseguimos a eleição com uma comunicação incisiva nos temas do feminismo interseccional, do antirracismo e das alterações climáticas, com o apoio de cartazes impactantes, um único outdoor, um hino de campanha e muitas arruadas. Foi uma revolução colorida e cheia de alegria que captou a atenção sobretudo das camadas mais jovens, de universitários e de gente que via na candidatura a possibilidade de haver novas vozes no parlamento português.
Depois da eleição, o meu partido quis que eu renunciasse, tendo em conta a campanha de ódio e o discurso que consideravam “demasiado à esquerda” e “radical”. Não aceitei porque quem me elegeu fê-lo pelo programa que apresentámos e pelas nossas demandas. Começou então um intenso período de 4 meses, nas quais o partido tentou por várias vezes retirar-me a confiança política, fazendo uso de fake news e do discurso de ódio e alegando que eu não cumpria o programa, coisa que nunca conseguiram provar. Quatro meses após a eleição, o meu partido tirou-me a confiança política num espectáculo persecutório e deplorável – mas com o apoio dos media e outros sectores da sociedade e eu tornei-me deputada independente – em Portugal dizemos deputada não-inscrita. Foi a melhor decisão que tomei. Enquanto deputada independente fiz importante trabalho legislativo e parlamentar, com uma equipa pequena, mas engajada. Conseguimos fazer justiça histórica, colocando o cônsul português Aristides de Sousa Mendes – conhecido como o Schindler português – no panteão nacional, tendo recebido as honras do estado. Conseguimos a aprovação da proposta para a criação do observatório do racismo e da xenofobia, lançada agora em 2023, assim como a avaliação ambiental estratégica para a mineração, uma demanda ambientalista de décadas. Produzimos legislação antirracista e feminista e conseguimos melhorar a Lei da Nacionalidade. Propostas minhas recusadas em 2020 e 2021 são hoje implementadas pelo governo, tais como o aumento do salário mínimo nacional para os 900 euros, a constituição de uma comissão para a inventariação do espólio colonial para eventual restituição aos países de origem, entre outros. Embora saiba que muito mais caminho havia a percorrer, sinto que demos um grande contributo à democracia e à sociedade portuguesas.
Você pode nos contar sobre o novo Instituto que contou durante a palestra no SESC? O que tem relação com princesa negra Anastácia?
ANASTÁCIA – Centro de Estudos e Intervenção Decolonial é uma entidade que visa a criação de um espaço plural e transdisciplinar de produção, partilha e difusão de conhecimento científico, não-científico e artístico. Uma entidade que pretende desenvolver e fomentar pensamento, pesquisas e estimular práticas orientadas por pressupostos decoloniais e contra-coloniais.
Com o nome de Anastácia, alusivo à entidade conhecida como “Escrava Anastácia”, o centro pretende também lutar contra o silenciamento das mulheres e minorias, a opressão, a exclusão, a misoginia, o capitalismo, a destruição do planeta, as violências e todos os tipos de colonialidade presentes nas nossas sociedades.