Projeto de hortas urbanas alia a produção agroecológica de alimentos com o trabalho de superação do racismo ambiental
Por Marcelo Ayres, São Paulo.
A cidade de São Paulo tem 12 milhões de habitantes que ocupam 1.521 km². Uma cidade com muito concreto e poucas áreas livres disponíveis. É dentro deste contexto que as hortas urbanas encontram um caminho para uma reconexão com a ancestralidade de plantar e produzir alimentos. O projeto de da Uneafro Brasil em conjunto com o Instituto de Referência Negra Peregum, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, tem como foco o trabalho de educação popular e formação política em agroecologia, através do manejo e produção em hortas urbanas e comunitárias.
Esse trabalho teve início em 2021, como explica Aline Guarizo, coordenadora do projeto de hortas da Uneafro Brasil exatamente em um momento, crítico de crise sanitária, econômica e ambiental, durante a pandemia da Covid-19. Naquele momento a Uneafro em conjunto a Colisão Negro por Direitos estava fazendo uma grande campanha de distribuição de alimentos em regiões pobres e periféricas e nos locais onde existem núcleos da Uneafro, que trabalha com essa com esse perfil de pessoas, em situações vulnerabilidade.
“Nessa entrega de alimentos, uma parte era de alimentos orgânicos e aí esse projeto surge neste contexto para se trabalhar com as comunidades também nessa questão da soberania alimentar, como potencial de produtoras de alimentos e a partir dessa produção de alimentos se discutir as questões ambientais relevantes ali do território. porque a horta tem potencial”, completa Aline.
Soberania alimentar e facilitação
Aline destaca que o trabalho das hortas é “um trabalho bonito, visualmente bonito, que desperta sentimentos” e esse potencial de beleza como destaca Aline é uma ferramenta de aproximação das pessoas para se discutir a questão da soberania alimentar, a questão da terra e como superar a crise econômica, que tem empurrado um número maior de pessoas para insegurança alimentar. “Além disso, podemos trazer também outras discussões ambientais que tem a ver com o território que nem sempre é ponto fácil da gente alcançar com essas pessoas simplesmente pelo discurso”. “Então essa prática ela também facilita para que a gente consiga ter esse diálogo com as pessoas que participam das hortas, com as pessoas que recebem os alimentos, com as pessoas que veem esse trabalho”, completa.
Atualmente o projeto conta com duas hortas no bairro do Montanhão, na cidade de São Bernardo do Campo e duas hortas na cidade de Poá. Ambas na região metropolitana de São Paulo. No início do projeto também havia hortas nos bairros de Perus e do Jaçanã, na zona norte da cidade de São Paulo. A articulação do projeto está preparando uma expansão para um outro território, que possivelmente será na cidade de Mauá, outro município vizinho da capital paulista.
Aline explica que a intenção é expandir o projeto e criar mecanismos para que essa produção seja além de comunitária, seja também autossustentável. “A partir do momento que as comunidades consigam adquirir essas expertises, a gente não precisa estar ali mais facilitando e as hortas podem seguir com as comunidades”, destaca.
A questão da terra
Em uma cidade tão grande e com poucos espaços livres a questão da terra é sempre um fator de preocupação. “Esse é o primeiro ponto que acaba sendo um entrave para gente, porque quando a gente vai falar sobre uma questão de produção, precisamos lidar com essa problemática que é o acesso à Terra. Nessas regiões, que são regiões periféricas existem espaços ociosos, mas esses espaços, quase sempre estão vinculados ao poder público ou é uma propriedade privada, que tem ali uma intenção de especulação imobiliária, então é sempre um assunto delicado”, explica Aline.
A coordenadora do projeto dá como exemplo a horta comunitária no bairro do Montanhão, no município de São Bernardo do Campo. O bairro do Montanhão, onde funciona a horta é uma ocupação. São dois espaços: um pequeno onde funciona a sede, que segundo Aline, já foi um espaço ocupado há tempos e que agora já é uma conquista. No entanto, é um espaço pequeno e por consequência tem uma produção limitada.
Já o segundo espaço do Montanhão é uma parte de uma ocupação mais recente e é uma área maior e mais produtiva. “Nesse espaço atualmente a gente lida com essa questão do conflito da terra. Tem acontecido algumas autuações, e isso tem feito com que a coordenação do projeto reflita e esteja pensando em levar a horta para outro espaço porque, constantemente esse assunto da questão da reintegração de posse vem à tona, com a questão dos conflitos fundiários que a gente também tem que enfrentar”, completa.
Cuidando da terra ela dá frutos
Já na horta do município de Poá a situação é bem diferente. Localizada na sede da Uneafro, no núcleo 11 de agosto, atualmente ele está em uma região central da cidade de Poá. Apesar das limitações físicas, como por exemplo, ser vizinho de prédios e de casas maiores, pouca disponibilidade de incidência de luz solar, ser impermeável por conta de concreto, não deixou de ser cuidado e crescer por conta da utilização de outras tecnologias de produção, como por exemplo, horta vertical, a produção em vasos e em pequenos canteiros.
Aline explica que uma segunda horta nessa região acontece em parceria com uma associação de moradores e fica na Cidade Kemel, um bairro de São Paulo, que fica na divisa entre o município paulista, e as cidades de Poá, Itaquaquecetuba e Ferraz de Vasconcelos. “A gente partiu ali de uma de uma construção, de um preparo do solo a partir do zero. Então a gente consegue observar nesse espaço grandes revoluções de atividade do solo, de evolução de produção. Antes era um solo compactado, que quando a gente foi mexer não tinha nenhuma nenhum índice de fertilidade biológica de vida no solo, não tinha nada e hoje, a gente já consegue ver esse diferencial trabalhando no terceiro ano nesse pedaço de terra”, destaca Aline.
Envolvimento da comunidade
A partir da questão da terra, tanto na ocupação do espaço, das disputas pela posse e a especulação imobiliária, o trabalho de cuidado com o solo e seu preparo para o plantio é que o projeto consegue discutir várias coisas com a comunidade. “A verdade é que com pouco preparo a gente já tem um retorno da natureza. Às vezes a gente consegue preparar minimamente esse solo e ele já nos retribui com uma boa colheita”, explica Aline. No entanto ela ressalta que é um trabalho fisicamente desgastante. “Existe ali um envolvimento de pessoas, o empenho de tempo e de energia, por isso a articulação comunitária se faz muito essencial em nosso projeto”, destaca a coordenadora.
As hortas comunitárias contam com os horticultores, que são as pessoas responsáveis pelo manejo diário da terra e dos alimentos. Além disso, periodicamente acontecem mutirões com a participação de um grupo maior de pessoas da comunidade e as pessoas que se envolvem nas atividades dos núcleos da Uneafro Brasil para trabalhar a terra.
Alimentação saudável e diversidade de produtos
Os alimentos cultivados nas hortas do projeto são escolhidos com base em uma séria de fatores que vão desde a orientação de um programa estabelecido, mas que leva em conta as questões da região onde estão as hortas, o que é possível produzir nelas e o que a comunidade busca ou entende que precisa. Aline explica que esses pontos se interligam e se relacionam transversalmente. “É um trabalho de médio a longo prazo, trabalhar a questão da alimentação saudável, da produção dessa diversidade de alimentos, que foge dessa lista convencional que a gente está acostumado a ver nas feiras e nos mercados”, completa.
Segundo Aline, a médio prazo o que o projeto tem feito é trabalhar com hortaliças, que são mais comuns e é o que as pessoas mais buscam e consomem. Além disso, as hortas contam com uma parte de alimentos não convencionais como as PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), além daquilo que é possível ter acesso.
Muitas vezes também é preciso ver o que se tem disponível. “Porque às vezes ali nos terrenos tem alguma coisa que a gente consegue reproduzir, como por exemplo, as bananeiras, que no bairro do Montanhão tem muito naturalmente, por ser uma área de vegetação de Mata Atlântica ou porque foi plantando em algum momento”, explica. As bananeiras, como destaca Aline “se cuidam, elas não precisam desse trabalho humano para continuar. No entanto, a gente vê isso como um potencial”, completa. Com isso, o projeto consegue pegar ali uma muda e fazer a reprodução. “Isso também é um trabalho de integração entre as hortas, porque às vezes eu consigo fazer uma muda aqui e reproduzir isso em outras hortas, como por exemplo a batata e as ervas medicinais. Como se fosse um laboratório de testes”, conta Aline.
Um laboratório prático, como Aline define, e de acordo com o que o solo da horta está preparado para receber. “Nas hortas já tivemos experiências de tentar produzir um alimento, que não foi bem em uma delas, enquanto em outra foi muito bem, como por exemplo, a beterraba”, explica. Segundo a coordenadora do projeto é necessário pensar em um rodízio das produções nas hortas. “Porque às vezes a gente produz um alimento, que inicialmente se consegue colher bem, mas depois de três meses, por exemplo, é necessário trabalhar esse solo, para voltar depois de um tempo a produzir plantas com a mesma característica, porque senão vai existir ali um esgotamento dos nutrientes do solo. Nós pensamos sempre nessas etapas para fazer o manejo adequado do solo”, completa.
“O solo é o que sustenta toda a nossa produção. É o que sustenta toda essa ligação do cultivo, com a água, com atividade biológica, do solo, que dá para gente toda essa capacidade mesmo de suporte da vida. Está tudo no solo para mim.”
Mudança cultural e racismo ambiental
Aline destaca que é preciso fazer uma transformação cultural nas pessoas. “Muitas vezes a pessoa participa do projeto da horta, pega ali um alimento, mas ela não sabe o que é. Então existe esse trabalho educativo de construir essa mudança cultural, e esse trabalho, acho que é importante dizer, ele surge também para criar esse mecanismo, de a partir dessa ferramenta agroecológica, se falar sobre as questões de racismo ambiental, explica. Quando a gente fala, da crise econômica, da crise sanitária, da crise ambiental, as pessoas que mais sofrem com esses impactos, e que são os que menos contribuem para esses impactos ou nem contribuem é a população negra periférica. A ideia é criar esse mecanismo dentro do movimento negro para ter isso como uma ferramenta de superação do racismo, a partir do protagonismo das pessoas no trabalho nas hortas”.
Acesso e informação
A conscientização da alimentação saudável é um processo muito difícil, pois implica em questões de acesso e vulnerabilidade. Segundo Aline, por uma por uma condição de diversos fatores, alguns alimentos orgânicos acabam ficando com preço mais caro para estar disponível no mercado. Isso sem se falar das feiras. “Por exemplo, na cidade de Poá, não existe uma feira de alimentos orgânicos. A mais próxima é na cidade vizinha, Suzano, que conta com uma feira da agricultura familiar e nessa feira, tem apenas duas barracas com alimentos 100% orgânicos e uma parcialmente de orgânicos. Isso realmente dificulta a buscar desses alimento”, completa.
É um trabalho árduo quando se encara a cultura de fast food, de ultraprocessados. “Com as conversas conseguimos até convencer, mas como é que você consegue mudar a prática, de uma cultura que já totalmente descaracterizada, porque isso não é natural das nossas comunidades, dos nossos povos e ancestralidade, isso é uma coisa dá modernidade, e tem a ver muito com esse com esse sistema de consumo”, destaca Aline.
“Quem é rico tem essa informação e consegue ter esse acesso e a partir disso faz a sua escolha e quem é pobre não tem nenhum acesso a essa informação, quem dirá o acesso para conseguir fazer a escolha, de comprar um ou outro”, ressalta Aline. Para a coordenadora o projeto das Hortas Comunitárias vem para trabalhar essa mudança cultural e ela acredita que possível de ele ser disseminado em outros locais e não somente nas hortas da Uneafro Brasil. “Como as experiências que a gente conhece que se tem por aí, e é a partir disso que eu que eu acredito muito, que vai ser possível acessar esse tipo de alimentos, que vai mudar a qualidade de vida das pessoas, completa.
Resgate e superação
Para Aline ré necessário fazer um resgate desta conexão com a terra e os alimentos. “Muitas pessoas acham que essa tipo de situação é uma coisa que está para além da vida delas, e na real é muito provável que, se você não é uma pessoa que gosta, por exemplo, de ter uma planta em um quintal ou em sua casa, muito provavelmente a sua mãe ou a sua avó gosta ou gostava disso. E isso é uma coisa que foi se perdendo e que é possível de ser resgatado, tanto a questão prática do cultivo, quanto essa reflexão sobre a terra e a produção de alimentos.
Para isso segundo Aline “é necessário criar condições de superar a insegurança alimentar, que tem assolado um número muito grande de pessoas, pois com a insegurança alimentar crescendo você não consegue nem colocar um conceito do que é saudável ou não. Porque se eu não estou comendo nada, não importa o que vou comer, se é saudável ou não. A questão é que agora eu preciso comer. Não entra a questão da escolha”.
Agroecológico
É importante destacar que existe uma diferença entre o orgânico e o agroecológico. “O orgânico nem sempre quer dizer que ele está sendo produzido de forma agroecológica e que será saudável para você consumir”, ressalta Aline. “O que eu acho que é legal em nossas hortas é que elas são espaços educadores, de envolvimento com a comunidade, e a partir da produção de alimentos saudáveis, a gente consegue trabalhar questões ambientais que estão ligadas com aquele território e com a vida das pessoas, como por exemplo, a questão da água, das mudanças climáticas, dos resíduos e da própria alimentação”, completa.
É necessário também trazer questões importantes de superação do racismo ambiental, destaca Aline e como ela explica “começar a colocar o recorte, nessas questões e começar a trabalhar com as interseccionalidades”. “Veja por exemplo nessas semanas em que nós estamos passando por dias com ondas de calor. Foram umas semanas dos dias mais quentes que a gente teve de registro na história, e quem sofre mais com isso é uma população marginalizada por questões econômicas, financeiras, por questões de raça, de cor”, ressalta.
“São coisas importantes que precisam ser ditas porque existe toda uma diferenciação, pois, quem está em bairros de classe média alta, sofre as consequências destas alterações climáticas de uma forma diferente de quem é pobre e está na periferia”, finaliza.