Por Jamil Chade
Imagine um local onde a cidadania é sua língua. Onde a identidade não é só nacional. Mas cultural e até de afeto. Esse é o local que podemos finalmente fundar. Descolonizado, ambicioso e real.
Ao nos deparar com a volta do Brasil à comunidade internacional, da consolidação de Portugal como um polo atrativo na Europa e às vésperas dos 50 anos das independências africanas em relação à metrópole portuguesa, o espaço está dado para pensar numa nova relação entre as sociedades que compartilham um idioma, unidas em suas diversidades de cores, sotaques, crenças, realidades e vocabulários.
Um espaço onde o pretuguês possa coexistir com Coimbra, onde as periferias das grandes cidades brasileiras, angolanas ou moçambicanas também caibam na definição de cidadania, onde o português timorense e os crioulos asiáticos de base portuguesa encontrem eco na dignidade.
Todos amam, sentem saudades, choram e sonham. Cada qual, em seu próprio português, sem dono, sem fronteiras.
Nossa língua é um legado forjado com violência, extermínio, estupro e dor. Mas, hoje, ela tem a chance de ser o instrumento de aproximação. Ou como escreveu Paulina Chiziane, “os invasores em fuga deixam línguas, armas e saberes. Usa-os na construção da união e fortaleza”.
Uma aproximação que faz sentido afetivo, mas também geopolítico e econômico.
Vivemos um risco real de uma fragmentação do sistema internacional, uma vez mais com o potencial de formação de dois blocos antagônicos, liderados desta vez por China e EUA.
Não nos interessa ter de escolher um lado numa guerra entre hegemonias. Não nos interessa ver, de novo, uma rivalidade que defina todos os movimentos, reivindicações e interesses pelo mundo.
Nossos países têm a oportunidades – e a necessidade – de reforçar o multilateralismo como escudo contra essa fragmentação. Mas as criações de polos alternativos e uma nova geopolítica de geometrias variadas não ocorrerão apenas reivindicando a história comum.
Como me disse Mia Couto, há poucos dias, ações concretas são necessárias entre os países, assim como um cuidado especial para que a arrogância não perpetue uma eterna relação desigual.
De fato, enquanto ficamos contando histórias de nosso passado, vemos novas potências ocupando espaços, plantando soja ou assumindo espaços de influências que poderiam ser exercidos por parceiros da língua portuguesa.
Se patinamos nessa estratégia por anos, a situação foi ainda mais dramática no período do governo de Jair Bolsonaro. O ex-presidente foi o primeiro desde a redemocratização do Brasil que não visitou nem Portugal – de forma oficial – e nem a África. Fechou embaixadas, viu o comércio desabar e insistiu em romper qualquer tipo de cooperação com os africanos em fóruns internacionais.
Mas o desmonte foi além e envolveu um dos pilares de qualquer política externa: a diplomacia cultural e a promoção da língua portuguesa.
Num documento preparado pela equipe de transição do governo brasileiro, ainda em 2022, a constatação é clara:
“O tratamento hostil dado pelo governo Bolsonaro às agendas de cultura e educação em nada favoreceu o progresso necessário à política externa cultural”.
O Instituto Guimarães Rosa, sucessor do Departamento de Cultura e Educação, viveu uma redução orçamentária real desde 2014.
Na UNESCO, o Brasil deixou de apresentar candidaturas aos comitês do Patrimônio Mundial e do Patrimônio Cultural Imaterial e não tem obtido financiamento para seus projetos de economia criativa, no âmbito do comitê da Diversidade Cultural.
Houve ainda uma clara redução e descontinuidade da participação em iniciativas internacionais de cooperação e fomento cultural, como o CPLP Audiovisual. Perdemos oportunidades para estimular e apoiar a internacionalização do conteúdo para cinema e televisão, alinhando-os com o objetivo de promover sua própria imagem no exterior.
Conforme o próprio documento expõe, as coproduções internacionais deveriam obter atenção especial por atrair investimentos, promover o turismo, empregar profissionais brasileiros e acessar novos mercados.
Nada disso ocorreu.
Hoje, é uma exigência reinventar o futuro. Isso passa por construir uma nova posição de nossos países pelo mundo. E, para que essas palavras não sejam apenas letras mortas, uma estratégia coordenada precisa ser estabelecida.
Quem somos mundo vai depender, antes de qualquer coisa, de como dialogamos entre nós, de como lidamos com nosso passado que ainda sangra. E de como poderemos construir pontes para novos destinos.
Numa comunidade internacional incapaz de resolver seus problemas com as estruturas políticas atuais, ousemos criar novos espaços, novas lógicas de cooperação e novas realidades. Ousemos construir um futuro em todos os matizes do português.
Esta coluna faz parte desse esforço por uma reinvenção.
Vamos?