Rua das Pretas é uma tertúlia que reúne músicos dos países de língua portuguesa em Lisboa
por Lina Moscoso, Lisboa.
Uma língua que une a música dos 9 países lusófonos. A língua portuguesa é o fio condutor de artistas brasileiros, portugueses, angolanos, caboverdianos, guineenses e outros em uma localidade de Lisboa chamada Rua das Pretas.
A rua lisboeta, localizada no Príncipe Real, dá nome a um projeto musical descrito pelo idealizador, o carioca Pierre Aderne, como uma tertúlia musical porque é lugar de encontros e de conversas para tocar e ouvir música e também para beber vinho. “Movimento musical mestiço que nasce da comunhão da comunidade do samba, do fado, das mornas…”, como define o seu idealizador.
Rua das Pretas começou em 2011 quando Pierre Aderne resolveu repetir os encontros que costumava fazer no Rio de Janeiro, em sua casa da Rua Nascimento Silva, que ficavam em frente à casa de Tom Jobim, para lembrar os encontros de Bossa Nova que aconteciam nas casas do próprio Tom Jobim e de Nara Leão.
“E resolvi então fazer a mesma coisa em Lisboa”. Pierre Aderne alugou uma casa na Rua Poço dos Negros, em Santos, e começou a convidar os músicos que ele já tinha conhecido em Portugal, como Tito Paris, Jorge Palma, Mario Laginha, Sara Tavares, JP Simões e Luísa Sobral. “Coloquei todo mundo dentro de casa e comecei então a filmar esses encontros”, revela.
Fados de Alfama e Mouraria
Pierre Aderne conheceu as músicas portuguesa e africana quando teve contato com os músicos em Portugal. “Não só com artistas do fado, alguns cancioneiros da música, mas também com alguns músicos de Cabo Verde, como Tito Paris e Bana. Aí depois conheci a Mariza (fadista portuguesa) no início de carreira, depois comecei a frequentar as casas de fado de Alfama e Mouraria. E de alguma forma me aproximar da música do Waldemar Bastos e do Paulo Flores de Angola”, conta.
O projeto surgiu de um sentimento de descoberta desses artistas e dessa música em português. “No primeiro momento me senti completamente ignorante pelo fato de pensar como a gente passou tanto tempo achando que a música em língua portuguesa era música brasileira apenas. Por falta de informação”, destaca. O motivo da falta de conhecimento do que é produzido por artistas de língua portuguesa entre os países falantes desse idioma é que as pessoas não se conhecem, segundo Pierre Aderne. Daí a motivação de reunir essa gente toda em uma tertúlia.
“Vim pra Lisboa e decidi que os encontros tinham que ter uma periodicidade porque as pessoas precisavam se conhecer, eu precisava que aquilo fosse realmente uma reunião semanal para que a coisa pudesse ter um boca a boca entre a comunidade”, explica.
O crucial para Pierre Aderne era sublinhar a importância de fazer música em comunidade e não apenas as tentativas de encontros entre portugueses e brasileiros, como as que aconteciam na década de 1990. “Então foi bastante interessante esse processo de descoberta de artistas que viviam aqui em Lisboa que não se conheciam porque não tinham a cultura de se encontrar”.
Mas os encontros passaram a acontecer com a Rua das Pretas. A exemplo de Luísa Sobral que conheceu Mário Laginha, Luís Caracol que conheceu Jorge Palma e a própria Luísa Sobral, com 19 anos de idade, cantando músicas de Paulinho da Viola.
Estrutura poética e sotaques
Pierre Aderne explica que os fados têm uma estrutura poética similar à do samba de partido-alto, e do samba de roda e também da literatura de cordel; que é a brincadeira com as quadras, sextilhas e decassílabos. “Foi uma descoberta tremenda esse primeiro momento de perceber não só a diferença de sotaques, mas as similitudes dos baixos, das baixarias do fado que são as mesmas das mornas e são as mesmas do choro e foi por aí”, acrescenta.
Pierre Aderne acabou ficando tão absolvido pelo projeto Rua das Pretas que não conseguiu voltar para o Brasil. “Eu estava completamente interessado nessa troca de saberes, nesse resgate cultural de algo que também nos pertence”, enfatiza.
Depois esses encontros se tornaram frequentes, como eram no Rio de Janeiro, então o idealizador e músico carioca mudou-se finalmente para a rua que dá nome ao projeto, a Rua das Pretas, em 2014.
Fotografia emblemática
Mas o que marcou o início do projeto foi a emblemática foto produzida por Alfredo Matos em que estavam Caetano Veloso, Carminho, Ana Moura, Camané, Gilberto Gil e Walter Hugo Mãe. O fotógrafo perguntou se tinha uma hashtag para divulgar a foto nas redes. Pierre disse “rua das pretas” e um seguidor replicou o conteúdo dizendo que era um jazz club acústico em Lisboa e as pessoas assumiram que aquilo era, de fato, um jazz club acústico. A partir disso, surgiu a ideia de vender ingressos e fazer da Rua das Pretas um evento semanal.
“Nesse dia teve um momento da noite que tudo virou a mesma coisa. Num sarau entre amigos e colegas de trabalho isso já acontece, mas chegou um momento ali de fusão dessa sensação de plateia e artista que tudo era uma coisa só”, define Pierre Aderne.
O projeto foi evoluindo de tal forma que as pessoas que foram ao primeiro encontro deixaram os nomes na lista e iam sempre. Formou-se um público que se tornou amigo dos músicos. Houve até quem oferecesse espaço para acolher o projeto. Uma história curiosa foi a presença do proprietário da casa de espetáculos de Lisboa, o Coliseu dos Recreios, ser plateia e ter feito a proposta para a Rua das Pretas se apresentar nessa casa. E assim aconteceu. Hoje a tertúlia faz apresentações periódicas no Coliseu dos Recreios em Lisboa.
Composição e repertório
A formação, que nunca foi fixa, atualmente conta com um trio que é a base do projeto: Pierre Aderne na voz e no violão; Nilson Dourado na viola e na voz; e Walter Areia no contrabaixo. Em cada show músicos diferentes são convidados, bem como escritores para ler textos; e se houver algum artista na plateia também é convidado para “dar uma canja”.
Sobre o repertório, a tertúlia revisita músicas dos integrantes e do cancioneiro popular lusófono, além disso algumas histórias são contadas, como o encontro do Vinícius de Moraes na casa da fadista Amália Rodrigues, também sobre o disco que Amália gravou no Canecão – casa de show do Rio de Janeiro – e também sobre o “fado chuchu” inspirado na ida de Amália para o Brasil.
“É meio teatro, meio festa, meio show, tertúlia. Eu comecei a perceber que um novo sotaque estava sendo construído ali, fruto dessa mistura toda e do sentimento de pertença”, afirma Pierre Aderne.
O músico e idealizador do projeto acredita que Lisboa se tornou a capital da música em língua portuguesa. “Essa fusão de fados, mornas, funanás, cante, cirandas, bossas, samba, e esse encontro dessa turma toda”.
Em relação ao Rua das Pretas, ele finaliza: “virou um projeto de vida em que minha música vai paralelamente a isso, mas o meu projeto de música em comunidade que me dá alegria é essa ideia de a gente ter esse entendimento da importância que é essas matrizes estarem juntas”.
Documentários e álbum
Rua das Pretas deu origem a dois documentários: MPB – Música Portuguesa Brasileira e Desafinado, a duas séries – que são desmembramentos do documentário MPB – e ao álbum “Um Copo de Fado, Dois de Bossa”.