Marchas populares ligam-se a histórias de vida. Na tradicional disputa entre bairros, um brasileiro é destaque na produção dos figurinos
Por Lina Moscoso, Lisboa.
As marchas populares de Lisboa são associações recreativas e festivas, ligadas aos bairros mais populares e tradicionais da cidade. Nas festas dos santos em junho, essas associações saem às ruas da capital portuguesa, em um desfile exibindo suas roupas e temas típicos, em uma apresentação coreografada de dança e canto.
Nesse universo das marchas tradicionais um brasileiro é quem cria os figurinos da marcha do bairro da Madragoa, a campeã de 2022 nas categorias de melhores marcha, figurino e coreografia. Fauze El Kadre, 52 anos, teve o primeiro contato com as marchas em 2016, quando recebeu o convite para confeccionar as roupas dos padrinhos da marcha do bairro Alto do Pina. O estilista responsável na época não as entregou a tempo do desfile. “Um amigo meu que ensaiava a marcha me ligou desesperado para eu fazer o figurino dos padrinhos. Quando eu vi o desespero deles faltando 4 dias para a apresentação e eles não tinham nada, aí eu fiz o figurino dos padrinhos em um dia. Eles levaram os costureiros do bairro para terminar as indumentárias”, narra.
No ano seguinte, o coreógrafo do Alto do Pina foi ensaiar a marcha da Madragoa e chamou Fauze para fazer os figurinos. “Eles já tinham uma ideia. Aí eu melhorei o esboço e assinei pela primeira vez o figurino”, descreve. Depois, Fauze assinou figurinos de marchas em 2018 e em 2019, e, no ano passado, produziu tanto a do Castelo quanto a da Madragoa, quando ele assinou o figurino junto com o coreógrafo João Medeiros. Este ano, o estilista criou as roupas das marchas da Madragoa e de Alcântara.
Assista a um vídeo com alguns trechos das marchas de Lisboa em 2022
Fauze conta que no imaginário geral das pessoas existe a ligação de um figurinista brasileiro com as escolas de samba do Carnaval. “As pessoas pensavam que um brasileiro que atue com o estilista fizesse Carnaval e eu nem gosto de coisas de Carnaval”, completa. O que ele afirma que gosta mesmo é de criar as indumentárias teatrais, que têm mais a ver com as marchas portuguesas do que com o Carnaval.
A história de Fauze sempre esteve ligada ao teatro. Antes de fazer um curso de Moda e depois montar um ateliê voltado para essas indumentárias, trabalhava como ator. No Brasil, foi indicado a algumas condecorações, como a dos produtores de teatro de São Paulo e na Itália foi um dos 5 selecionados para participar de um concurso Internacional.
Cultura portuguesa
O estilista gosta de pesquisar e mergulhar nas culturas. Quando chegou em Portugal, em 1996, teve curiosidade de se integrar na cultura portuguesa. “Então eu sempre pesquisei muito sobre o teatro português, as danças típicas do folclore deste país. Para mim foi normal. Quando eu comecei a fazer os figurinos não sabia nada de marchas, então fui ver vídeos antigos e entender que as roupas têm algumas características”, comenta. As mulheres das marchas, por exemplo, têm ombros largos e grandes e usam mangas imponentes; já os homens têm sempre um ar másculo, diferente das mulheres que são femininas e usam saias rodadas.
Fauze acredita que já criou um vínculo e amor pelas marchas. O estilista recebe elogios como: “nunca foi tão fácil vestir uma roupa porque não precisa de ajuste”, como costumam dizer os marchantes. O estilista ressalta que sempre faz os figurinos de modo a não precisar de acertos.
“Só saí daqui mesmo quando fui para a maternidade”
Com a vida ligada à marcha da Madragoa, Mariana Peres, 30 anos, letrista e membro da Comissão Organizadora da marcha da Madragoa, emociona-se ao contar a sua história relacionada com a tradição de desfilar todos os anos pelo seu bairro. “Eu sempre vivi na Madragoa, sempre com os meus pais. Eu costumo dizer que só saí daqui mesmo quando fui para a maternidade. E a minha mãe já era marchante e então fui acompanhando e fui bebendo um bocadinho deste espírito”, relata. Mariana acredita que as pessoas que moram nos bairros das marchas contagiam-se e ligam-se, inevitavelmente, a essa tradição.
“Entretanto, quando eu fiz 14 anos, surgiu a oportunidade de entrar na marcha da Madragoa, em 2009. Foi o meu primeiro ano”, Mariana segue narrando a sua história. A letrista revela que acompanha as marchas o ano todo. “É parte da cultura da cidade que me cativa e eu adoro estar envolvida”, diz.
Mariana já coleciona dois prêmios como letrista, de 2018 e de 2019. O primeiro pela marcha da Madragoa e o segundo pela do bairro Alto Pina. “E surgiu um bocadinho essa brincadeira. Começamos a escrever uma letra. E na altura o ensaiador que estava na marcha do Alto do Pina, em 2017, achou piada à letra e quis levar a letra na marcha”, conta. Nesse ano a marcha não ficou muito bem classificada e Mariana, junto com o coreógrafo João Medeiros, pensaram em desistir, mas a Comissão que estava no ano seguinte quis continuar a apostar nela e no coreógrafo. “Ganhamos o primeiro lugar das letras, em 2018. Em 2019, a Comissão mudou e surgiu um convite de outra marcha para escrevermos, nós aceitamos e ficamos em primeiro lugar. É um bocadinho por aí. O espírito é mais familiar e mais de amigos. Toda gente participa e se conhece”, descreve.
O amor às marchas é que ainda fazem Mariana permanecer na organização, apesar de ter que se dedicar muitas horas a esse ofício. “Eu já começo a pensar que daqui a uns anos eu não vou conseguir não ter a mesma disponibilidade. Abdicamos de muitas horas em família, de sono e de descanso para estar nos ensaios. Só está quem gosta, porque de favor ninguém faz”, argumenta. Nos meses que antecedem as apresentações os ensaios acontecem todos os dias até às 23:30h.
“Chegava a ser uma obsessão saudável”
O coreógrafo João Medeiros, 30 anos, citado por Mariana, também tem uma vida ligada à marcha da Madragoa. “Eu entrei na marcha como marchante pela primeira vez em 2000, aos 15 anos de idade. E já aí criei um ‘bichinho’ pelas marchas. Eu sempre vivi na Madragoa, nasci e vivo na Madragoa. Para além de ser marchante, comecei a querer perceber como é que se faziam as coisas”, revela. Chegava a ser uma obsessão saudável, como define João. “Eu vivia um ano inteiro a ver as marchas todas em vídeos do YouTube e a tentar perceber o que é que fazia antes disto tudo antes de eu ter nascido sequer. E perceber como é que as coisas se desenvolveram e onde é que havia mais espaço para evoluir”.
As ideias das coreografias surgem das pesquisas nos videoclipes que o coreógrafo costumava assistir quando era criança, juntando com o tradicional das marchas e formando, assim, uma mescla do moderno com o popular e tradicional. “Sou fã e adepto de K-pop, que é a cultura coreana, e, às vezes, tento adaptar as grafias às marchas e até alguma estilização que eles tenham em roupa e etc”, conta João.
Para ele, as marchas são uma forma de não deixar morrer as tradições dos bairros, ainda mais com a gentrificação por causa do turismo que vem modificando a paisagem de Lisboa. “As marchas ainda são aquilo que consegue manter os bairros vivos. Às vezes elas são o único elo entre o povo e o bairro, portanto, manter as marchas vivas é muito importante”, destaca. As marchas simbolizam a força do povo e, portanto, a cultura popular. “É o que nós somos enquanto povo, enquanto portugueses, neste caso, enquanto lisboetas”, finaliza.
Entenda mais sobre as marchas de Lisboa
Todos os anos, em junho, as marchas populares de Lisboa – associações recreativas ligadas aos bairros e que fazem parte da tradição cultural da cidade, inseridas nas festas dos Santos Populares, especificamente Santo António (13 de junho) – preparam-se para a competição que acontece no início do mês, no Altice Arena (centro de eventos e shows em Lisboa), e para o desfile na Avenida da Liberdade, que ocorre no dia 12 de junho.
Esses eventos de Lisboa remontam a 1932, quando foram organizadas as primeiras marchas competitivas pela mão do dramaturgo Leitão de Barros, que convidou alguns bairros a desfilarem no cinema Capitólio, no Parque Mayer. As marchas voltaram em 1934, já integradas nas Festas da Cidade e organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa, com 12 concorrentes e com uma grande adesão popular, entre o Terreiro do Paço (Praça do Comércio) e o Parque Eduardo VII.
Cada marcha tem os seus temas. A da Madragoa, por exemplo, a característica principal é que os personagens são pescadores e varinas, estas últimas vêm da cidade de Ovar – “as ovarinas” – que são vendedoras de peixes. Sobre a composição, as marchas saem sempre com dois mascotes (crianças), 24 casais, um casal suplente, 8 músicos, 5 aguadeiros, uma porta-bandeira e dois padrinhos. Ao todo são 69 elementos em cena. Os mascotes tornam-se marchantes quando crescem.
As marchas começam a ser pensadas todos os anos em setembro. Mas somente em janeiro, do ano seguinte é que os protótipos das roupas ficam prontos. Depois o processo segue com a apresentação dos croquis para a Comissão Organizadora.
As marchas tornaram tema de tese de doutorado
Outra história relacionada com as marchas de Lisboa é a do investigador e professor brasileiro Élmano Ricarte. O seu interesse pelas marchas surgiu por ser de Natal, no Rio Grande do Norte, lugar onde a cultura popular é muito viva e valorizada. “Era despertado o interesse pela cultura popular, pelo folclore, pela diversidade, originalmente. Então, o interesse pelas marchas populares foi muito natural quando eu tive a experiência de fazer um mestrado em fotojornalismo sobre as festas populares na minha cidade Natal”, justifica. O primeiro contato físico de Élmano com as marchas foi em junho de 2013. “E eu pude conhecer as marchas no contexto da competição”, revela o investigador.
Para ele, as pessoas só conhecem as marchas pelo que passa na televisão – desfile na Avenida da Liberdade no dia 12 de junho -, e no contexto de competição. As marchas são um cartão postal da cidade para atrair turistas, conforme opina o investigador. Ao terminar o mestrado, Élmano quis investigar a mediatização das marchas e a comunicação feita por elas. O objetivo do estudo foi a construção de uma realidade midiática pelas marchas, ou seja, como é construído esse mundo mediatizado. “E aí eu fiz um mapa dessas relações com as mídias tradicionais e com as novas mídias. Foi descoberto que existe uma configuração comunicativa atualmente em que marchas tentam fazer a anunciação da sua voz. Fiz a constatação de que existe um processo comunicacional em que a tentativa de um resgate, que é também uma resistência dessa representação, ou seja, de quem eles são”, esclarece.
De um modo geral, as marchas são o coração do lisboeta, ou seja, do bairro e das trocas com os vizinhos, e é algo que envolve toda a família. De acordo com Elmano, as marchas são ‘bairristas’, que é o mesmo de territorialista. “Eu e o meu território, meu povo, meu agrupamento e a minha comunidade. Essa noção é uma tentativa de sobrevivência. Penso que dão corpo à permanência e à resistência dessa tradição a essa identidade de bairro”, explica.