Socorro Acioli: A Literatura tem o papel de apresentar as versões apagadas de nossa história

Por Jamil Chade

Foto: Igor de Melo.

Com dois livros entre os três mais vendidos da 21ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, a escritora cearense Socorro Acioli não esconde sua satisfação. O ranking foi liderado por sua nova obra “Oração para Desaparecer”. Enquanto isso, “A Cabeça do Santo”, livro lançado em 2014 e que será adaptado para o cinema, foi o terceiro mais vendido.

Mas Socorro mostra uma profunda consciência dos desafios que a leitura e o livro enfrentam ainda no Brasil. Em entrevista ao Portal Vozes, a escritora defende que, “enquanto não avançamos nas políticas públicas que democratizem o acesso ao livro e a leitura, a Literatura vai chegar somente a uma minoria privilegiada”.

Para ela, a literatura tem tido o papel de apresentar “as realidades múltiplas do país, as versões apagadas da nossa história, a verdade sobre o que somos e como fomos constituídos enquanto povo e nação”.

Socorro destaca que o Brasil ainda “não é um país leitor”, “Para que seja, o foco de ação precisa ser o professor e a biblioteca pública”, completou.

Com mais de 20 livros publicados, a cearense ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria infantil, com a obra Ela tem olhos de céu, em 2013. Três anos depois, a versão americana do livro “A Cabeça do Santo” foi eleita como um dos melhores livros para adolescentes pela Biblioteca Pública de Nova Iorque.  Ela ainda foi a única brasileira selecionada para um curso, em 2006, com o escritor colombiano Gabriel García Márquez.  

Foto: Igor de Melo.

Eis os principais trechos da entrevista:

Jamil Chade: Qual o papel da literatura para um país com os desafios sociais da dimensão que tem o Brasil? 
Socorro Acioli: Enquanto não avançamos nas políticas públicas que democratizem o acesso ao livro e a leitura, a Literatura vai chegar somente a uma minoria privilegiada. Sendo assim, seu papel tem sido o de apresentar as realidades múltiplas do país, as versões apagadas da nossa História, a verdade sobre o que somos e como fomos constituídos enquanto povo e nação.

Se essa minoria multiplicar a ideia de que a Literatura é, também, um instrumento de transformação, nós iremos avançar em passos mais largos. Precisamos de bibliotecas, ampliação de acervos, incentivo à leitura entre professores e um trabalho incansável de escritoras e escritores nessa missão de conquista.

O Brasil é um país leitor? Ou isso é algo ainda a ser trabalhado nas escolas e pelo poder público? 
O Brasil não é um país leitor. Para que seja, o foco de ação precisa ser o professor e a biblioteca pública. Nos tempos de Programa Nacional Biblioteca da Escola, todo o mercado do livro foi beneficiado pela compra de exemplares pelo Governo Federal distribuídos pelas escolas públicas do país. E os professores tinham, assim, uma condição melhor de trabalho para incentivar a leitura.

Do Ceará surgiu um programa chamado Agentes de Leitura, criado por Fabiano Piuba, que levava os livros e as histórias de casa em casa. Ainda temos desafios com a alfabetização de crianças na idade certa, de jovens e adultos também. A biblioteca pública precisa muito dessa atenção. Ela é o coração onde a leitura pulsa.

De onde surge tua capacidade de criar tantas histórias? Onde você recolhe os enredos?
Até agora minha fonte de histórias tem sido a realidade. A cabeça do santo existe, a igreja enterrada existe. A primeira parte do trabalho eu executo como Jornalista, ouvindo pessoas e pesquisando. O que precisa ser inventado surge na segunda etapa de trabalho.

E de que forma Garcia Márquez te influenciou? 
Na adolescência e juventude eu li praticamente tudo do Gabriel García Márquez e ele me ensinou que tudo é possível na Literatura. Ser aluna dele, ser selecionada e incentivada por ele me deu a coragem necessária para me lançar em uma carreira tão incerta como essa, de escritora de ficção. Assim como eu, ele foi um pisciano que sempre falou de amor , em todos os contextos. Aprendi também que ter medo de adjetivos é uma bobagem – ele chegava a usar até três antes de um substantivo. Aprendi a ter ainda mais fé.

Na Flip, você liderou as vendas. Como você interpreta tanto interesse por tua arte? 
Foi muito emocionante sair da Flip como a autora mais vendida, com dois livros no primeiro e terceiro lugar da lista. Mas não faço a menor ideia de como isso aconteceu. Minha carreira começou em 2001, publicando ensaios biográficos, depois livros infantis, são 22 anos de trabalho paciente e dedicado. Eu só posso agradecer muito a cada leitora e leitor que comprou meus livros , que esperou nas filas imensas, que me abordou na rua. Foram os leitores que me deram essa alegria.

O Cabeça do Santo foi lançado em 2014. Em 2023 ele entra na lista dos meus vendidos da Flip em terceiro lugar. Isso diz muito sobre como o tempo dos livros não tem a ver com o tempo cronológico.

O que o público pode esperar como teu próximo projeto? 
Meu próximo romance é outra história maluca inspirada em várias histórias reais. Já comecei a escrever, voltei da Flip muito animada com esse texto. Só posso dizer que dessa vez é um contexto urbano, onde cabe o mundo todo.

Religiosidade, realismo mágico, o sertão. Esses são alguns dos termos que aparecem na imprensa e em resenhas quando teu nome é evocado. O que esses três termos significam para você?
Religiosidade é minha lente de enxergar o mundo. É o que pauta a vida da minha família desde sempre. É o que me sustenta, minha fé sincrético, berço dos milagres e mistérios.

Realismo Mágico é um termo datado e que fala mais de um período do que de um estilo literário. Assim como Regionalismo. Acho que precisamos encontrar uma nova forma de falar do Fantástico e do Maravilhoso no contexto da literatura brasileira. Espero que a crítica literária esteja pensando em algum termo para nomear o que estamos fazendo.

Sertão é uma memória, uma lembrança, um tempo, uma dimensão, um campo de possibilidades onde a fé por vezes suplanta a miséria. Sou neta, bisneta, tataraneta de sertanejos. O sertão é minha herança.