“Nôs dança”, uma viagem pelos ritmos de Cabo Verde

Exibido na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, documentário do cineasta Rui Lopes da Silva nos convida a viajar pela música, dança e poesia do país africano

Por Thiago Cassis, de São Paulo*

Quantas danças e ritmos diferentes podem caber em dez pequenas ilhas no meio do oceano atlântico? Após assistirmos o documentário “Nôs Dança”, do diretor cabo-verdiano Rui Lopes da Silva percebemos que uma população estimada em 560 mil pessoas pode bailar muito!

Em entrevista exclusiva, concedida ao Portal Vozes, o diretor Rui Lopes conta sobre os desafios e motivações que marcam a estreia de seu primeiro longa-metragem. Segundo o diretor, a ideia do filme surgiu em uma festa de ano novo, quando Rui estava na casa de um amigo. “Pusemos música de Cabo Verde de todos os estilos para ouvir: contradança, funaná, mazurca, batuque, coladeira, morna, pusemos de tudo” e foi, enquanto dançava, já depois de meia noite, que o cineasta pensou, “ainda não se fez nada no cinema sobre as danças de Cabo Verde!”. Nas palavras do próprio diretor “foi assim que surgiu a ideia, foi a dançar”.

Logo o itinerário pelos ritmos das ilhas do Atlântico começou a ser planejado. A partida iniciou com uma profunda investigação tanto de danças que foram trazidas para Cabo Verde de outros pontos do continente africano quanto dos ritmos de países europeus que também aportaram nas ilhas. Isto porque, diferentemente de outros países do continente, o povoamento de Cabo Verde se deu, sobretudo, devido à colonização portuguesa que fez do arquipélago um entreposto para o tráfego de escravizados e outros negócios da administração colonial. Assim, vieram com os africanos que para lá foram levados, o lundum e o batuque, entre outros ritmos que chegaram por influência dos escravizados – muitos deles, inclusive, forçados a partirem para o Brasil. Já com os europeus vieram a mazurca polonesa, a contradança francesa, entre outros ritmos.

Lopes relata que a pesquisa buscou encontrar ao menos dois estilos em cada região. Da ilha de Santo Antão veio o Kola San Jon e a contradança, de São Vicente, a Morna e a Coladeira, e assim por diante. Porém, destaca-se que alguns estilos não estão circunscritos a apenas um local e permeiam diferentes ilhas. Entre eles, está, por exemplo, o funaná.

Sempre acompanhado do dançarino e coreografo António Tavares, o filme de Rui Lopes nos convida a bailar com as paisagens deslumbrantes de Cabo Verde. Mas, como toda aventura, o diretor conta dos percalços e dificuldades que apareceram pelo caminho. Um deles foi a corrida contra o tempo. Muitos dos entrevistados já tinham certa idade e o risco de alguns deles falecerem antes das gravações existia. Daí a homenagem que Lopes faz a dois dos muitos mais velhos que após o lançamento do filme já não estão mais entre nós. Outra adversidade que fez com que todo o plano inicial do roteiro tivesse que ser adaptado foi a pandemia causada pelo Covid-19. Muitas das danças seriam apresentadas em ambientes festivos, o que se tornou impossível devido às proibições relativas ao vírus.

Memória do povo

A memória dos entrevistados que têm suas vidas relacionadas à dança, são a essência da narrativa do documentário. A ausência de historiadores ou antropólogos chama atenção. “Eu queria as pessoas do povo, os guardadores de história do povo, eu queria uma linguagem popular”, aponta Lopes. Segundo o diretor, algumas das indicações para entrevistas surgiram durante as viagens de barco entre as ilhas.

O filme ainda apresenta figuras lendárias da dança e da música caboverdiana, como Maria Barbara, primeira artista que levou a música do país para o exterior, quando se apresentou em 1934, na cidade de Porto (Portugal), na Exposição Colonial Portuguesa, organizada por Salazar.  Contudo, Lopes pondera: “é muito triste como eles [do evento] representaram o Império, mas Maria Barbara foi para cantar a morna”.

Mas não só de histórias do passado vive a música de Cabo Verde. Entre os ritmos do presente, o documentário apresenta o cotxi po, atual sucesso entre a juventude do país, sobretudo nas periferias, um fenômeno similar ao funk brasileiro. Segundo o diretor, o rap local também entraria no material final, mas acabou preterido por questões logísticas para dar espaço ao kanizade, da Ilha do Fogo.

Com uma fotografia de tirar o fôlego, que apresenta a diversidade das ilhas que compõem Cabo Verde e cenas das viagens cruzando os mares, indo de uma ilha para outra, danças à beira de um vulcão, “Nôs Dança” alia ritmo e poesia necessários não só para os amantes do continente africano, mas também aos adoradores da sétima arte.

Quando questionado sobre a personagem de uma criança mascarada, que brinca entre as cenas e interage com diferentes ritmos, o cineasta responde “é uma criança sonho, simboliza o meu sonho, o sonho dos cabo verdianos de não deixar morrer a cultura”.  Fato é, Rui Lopes da Silva estreia entregando uma valiosa obra para a memória de seu país.

*Com colaboração de Carla T. dos Santos