Elos religiosos conectam povos colonizados

Religiões de matizes africanas são elo e resistência no Brasil, na África e em Portugal

Por Lina Moscoso, Lisboa.

Foto: Gleice Bueno.

Uma mulher preta, gorda e de seios fartos que alimenta a comunidade é cultuada na praia de Carcavelos, litoral português, de um modo diferente do que costuma ser feito pelos brasileiros em Salvador, Bahia; ou em Fortaleza, Ceará; ou mesmo na África. Essa mulher preta é Iemanjá, orixá divindade das religiões de matriz africana, que significa na etimologia do seu nome no idioma Iorubá (língua nígero-congolesa) “Yèyé omo ejá”, em português: “mãe cujos filhos são como peixes”.

Em Portugal, o culto tem por hábito ser realizado no dia 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Assunção, feriado nacional. Na África, Iemanjá é divindade das águas doces, saudada à beira do Rio Ogum. No Brasil, o louvor transferiu-se para o mar em virtude da proteção aos pescadores. Os elos existem porque a essência da religião de matriz africana é a mesma, no entanto, quando os cultos chegaram ao Brasil e em Portugal sofreram adaptações de acordo com as características culturais de cada região.

Já na Umbanda, o culto à Pomba Gira Maria Padilha demonstra o elo existente entre Europa, África e Brasil. Maria Padilha viveu na Idade Média na Espanha onde foi louvada, depois também passou a ser cultuada em Portugal, na África e no Brasil. “Essa chegada no Brasil é muito interessante porque ela vem cultuada pelas mulheres em situação de degredo. Mulheres que são acusadas de bruxaria e feitiçaria pela inquisição da Igreja Católica”, conta Jean dos Anjos, antropólogo e doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará. Para escapar da fogueira elas migravam para o Brasil com a condição de não praticar mais as bruxarias.

“Os elos existem, mas eles são reorganizados e reestruturados”, afirma Jean. Segundo ele, são novos modos de existência. “Quando você pensa numa festa de Iemanjá em Portugal, que é diferente do que se pratica no Brasil, imaginamos que existem os nossos elos, mas a cultura é solta. Ela vai se derramando e vai se transformando” Jean investigou as festas de Iemanjá em Fortaleza e em Salvador e atualmente realiza um trabalho de pesquisa sobre a Pomba Gira Maria Padilha em terreiros de Umbanda no Ceará.

O antropólogo argumenta que os elos entre as religiões de matriz africana só podem existir enquanto prática de resistência porque se transformam em outra prática para dar continuidade àquela tradição. As adaptações têm a ver com as culturas locais porque misturam-se com as manifestações culturais. No Brasil, a festa de Iemanjá em Fortaleza é realizada no dia 15 de agosto, que é o dia de Nossa Senhora de Assunção, padroeira da cidade. Já em Salvador, acontece em 2 de fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias. E em Porto Alegre é no dia de Nossa Senhora dos Navegantes, também 2 de fevereiro. “Cada um vai trazendo novos jeitos e a cultura da festa de Iemanjá se dá justamente no feriado da padroeira da cidade para os praticantes poderem ir à praia saudar a grande mãe”, narra o antropólogo. Relativamente às características da religião de matriz africana no Brasil há diferentes cultos. No Rio Grande do Sul praticam os batuques, em São Paulo são os Candomblés, em Recife são os xangôs e no Maranhão é o Tambor de Mina porque são tradições que vão variando.

Os povos de origem iorubá levaram o louvor a Iemanjá para o Brasil no final do século XVIII até quase metade do século XIX. Já na África, a divindade era primordialmente cultuada pelos ebás, povo africano assentado numa região situada entre as cidades de Ifé e Ibadan. Depois o culto foi levado para Abeocutá quando os ebás expandiram-se e houve a disseminação da cultura desses povos em consequência de guerras entre as várias etnias.

Foto: Gleice Bueno.

Iemanjá em Portugal

A história sobre Iemanjá é contada em Portugal sob outro olhar: o europeu. No país a divindade sofre embranquecimento da pele ou, em algumas situações, é apenas uma energia sem forma. Pedro Barbosa, jornalista, pesquisador e Bàbálòrìṣà da Ilé Àṣẹ Ìgbà Mérìndínlógún Ọ̀ṣùn (Babalorixá da AMOR, Associação Cultural Beneficente e Religiosa), narra a história de uma senhora que frequentava um terreiro de candomblé de um Pai de Santo brasileiro em Portugal, e  que dizia ser filha de Iemanjá, mas, para ela, a divindade não tinha cor porque é uma energia do mar. Pedro foi logo contando a verdadeira história de Iemanjá descrita no início deste texto: é a divindade de um povo, mulher preta, gorda e de seios fartos que alimenta a comunidade.  “Contei a história toda a ela. Como se ela nunca tivesse ouvido falar de Iemanjá na vida. Será que tem essa responsabilidade de não perpetuar uma história tão rica e importante? Aí eu vou entender porque não está com a comunidade preta”, narra Pedro.

A última frase diz respeito ao fato de que em Portugal os terreiros não costumam se integrar às comunidades de imigrantes, o que o Babalorixá tem feito desde que criou uma Casa de Candomblé que está situada em Sintra.

“E eu comecei a questionar porque se o Candomblé estava aqui desde a década de 1980 para mim não tinha razão de não apoiar o movimento negro. E eu começo a perguntar às pessoas que dizem: ah o Candomblé aqui é diferente!”, acrescenta. Pedro revela que o seu terreiro tem como frequentadores majoritariamente pessoas pretas e imigrantes (dos países de língua portuguesa), que são as bases da religião vinda da África. “O Candomblé abraça e inclui essas pessoas”, diz.

Pedro chegou a Portugal em 2017 para trabalhar e já era sacerdote nesta época. “Eu não tinha a perspectiva de morar muito tempo em Portugal. A princípio eu tive muitas dificuldades como a maioria dos imigrantes, como problemas com o trabalho.” A iniciativa de instalar um terreiro partiu de uma orientação do seu Exu (entidade que atua como mensageiro e guia ancestral) que disse ser preciso realizar um trabalho de ajuda a pessoas em Portugal enquanto sacerdote. “É aqui que o Orixá dele quer que abra a casa”, o Babalorixá reproduz a fala de Exu.

Pedro criou uma associação para efetivar o terreiro em Portugal. A lei do país diz que é possível formalizar associações religiosas não católicas já que o Estado é laico, no entanto, existe uma lei para a instituição de igrejas católicas e outra lei para as casas de outras religiões. Portanto, o terreiro foi aprovado e formalizado, mas Pedro enfrentou dificuldades para abrir uma conta de banco. Segundo o Babalorixá, a questão foi ter no estatuto a realização de sacrifícios animais e cultos a entidades. “Foram três meses batendo em porta de banco. Ou inventavam mil outros documentos ou não mandavam respostas”, queixa-se. A questão foi resolvida por meio da ajuda de uma portuguesa que faz parte da Casa de Candomblé que conseguiu abrir a conta por intermédio de uma conhecida.

Pedro Barbosa, jornalista, pesquisador e Babalorixá da AMOR. Foto: Gleice Bueno..

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