A escravidão “Debaixo do Tapete”

Documentário realizado pela jornalista portuguesa Catarina Demony narra as práticas escravagistas de seus antepassados

Por Lina Moscoso, Lisboa.

Catarina conversa com a mãe e avó em cena do documentário. Foto: Carlos Costa.

A história de uma família que era comerciante de escravos em Angola está registrada no documentário “Debaixo do Tapete”, produzido pela jornalista Catarina Demony, com direção de Carlos Costa e lançado em março deste ano em Portugal. O filme conta sobre os Matoso de Andrade e Câmara, os antepassados de Catarina, originários de Angola, que tinham uma frota de navios negreiros do tráfico transatlântico, majoritariamente realizado entre Angola e Brasil.

Com o documentário Catarina teve o intuito de descortinar o passado “penoso” dos seus antepassados para trazer à tona o legado da escravatura e o impacto que tem nos dias de hoje. “A partir de bases de dados descobri alguns navios que pertenciam aos meus antepassados, incluindo um navio que se chamava São Marcos, que fazia viagens entre Angola, Luanda e Benguela, e Pernambuco, no Brasil”, descreve.

A jornalista indica que o primeiro contato com a história da sua família foi através de uma conversa informal que teve com a sua avó Lourdes Abreu, da parte materna, quando tinha cerca de 18 anos. “Contou-me que sabia que os nossos antepassados tinham estado envolvidos com o tráfico de pessoas escravizadas em Angola, mas não sabia qual era o nível de envolvimento”, diz.

Catarina conta que essa descoberta não foi um choque e nem surpresa, mas o que realmente a incomoda é o impacto que o período de escravidão tem hoje na vida dos descendentes. “E eu acho que essa parte é mais difícil de aceitar. Porque uma coisa é o que as pessoas gostam de dizer: o passado é o passado e temos que deixar no passado. Não vale a pena tirar o assunto debaixo do tapete. Por isso é que nós demos esse nome ao documentário”, esclarece.

O processo de criação do documentário teve início em 2018, quando Catarina Demony voltou a viver em Portugal após uma temporada fora do país. “A primeira coisa que encontrei quando fiz uma pesquisa no Google, foi descobrir o fato de que o local onde está instalado o Museu Nacional da Escravatura de Angola pertencia a minha família”, conta. O atual museu era, no passado, a Capela da Casa Grande da propriedade de seus antepassados, onde os africanos escravizados eram batizados à força antes de partirem para o Brasil e para a Europa. “E ainda hoje se formos lá o brasão dos Matoso de Andrade e Câmara ainda pode ser visto na porta de entrada da capela”, acrescenta.

Antes mesmo de ter a ideia do documentário, Catarina levou 10 anos pesquisando e juntando documentos de historiadores e do Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa. Em suas pesquisas descobriu quantas pessoas escravizadas cada navio levava e quantas perdiam a vida na travessia atlântica. Ela conta que foi um processo penoso porque foi difícil encontrar documentos e “provas”, mas a jornalista conta que teve sorte por ter encontrado alguns historiadores e historiadoras, majoritariamente brasileiros, que já tinham investigado os seus antepassados.

Catarina em entrevista em Portugal. Foto: Carlos Costa.

A jornalista observa que a questão do racismo e do peso da colonização, assuntos ainda tabus em Portugal, não eram e não são tratados nas escolas, por exemplo. “A minha infância e adolescência toda a estudar em escolas portuguesas e muitas vezes só fui ensinada a história que enfatiza positivamente o colonialismo português”.

Para tentar disseminar o tema, o documentário tem sido levado para espaços públicos, como escolas e faculdades. O filme foi apresentado, em março de 2023, no Cinema Ideal (Lisboa) acompanhado de um debate sobre o tema. “A ideia agora é tentar mostrar o documentário em espaços onde nós sabemos que muitas vezes essas discussões não acontecem”, argumenta Catarina.

“Debaixo do Tapete”, com 50 minutos de duração, está dividido em duas partes. A fração inicial consiste na narrativa da história da família por Catarina, em primeira pessoa, momento em que entrevista a avó Lourdes Abreu e a bisavó Maria Clementina, que tem 100 anos de idade, bem como historiadores. O documentário também conta com uma entrevista com o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro “Escravidão”. Além disso, o filme traz depoimentos de outra família portuguesa que era dona de escravos em Portugal.

A segunda parte do documentário mostra falas de historiadores caboverdianos e de outros países da língua portuguesa e ativistas, como Paula Cardoso, jornalista e fundadora do portal Afrolink, e Mamadou Ba, membro da associação SOS Racismo. “Essas duas últimas entrevistas são mais para mostrar essa ligação direta do que foi a escravatura e o passado colonial nos dias de hoje”, explica Catarina que também revela que entrevistou Olga Araújo, irmã de Bruno Candé, ator assassinado por um combatente da guerra colonial, em Lisboa, em 2020, em um crime motivado pelo racismo.

O documentário está sendo apresentado em festivais e ainda não está disponível ao público. O trailer do filme pode ser visto neste clicando neste link.

Foto: Carlos Costa.

“Um pedido de desculpas seria um passo inicial para a discussão sobre o racismo”

O racismo em Portugal vem sendo tratado por movimentos ativistas, pela academia e por pessoas que estão há muito tempo com desejo que esse assunto seja discutido na “praça pública”. “Mas acho que para existir realmente uma conversa teria de ser fora das bolhas porque muitas vezes temos a bolha do ativismo e da academia e sentimos que estamos só falando uns para os outros dentro da mesma bolha”, revela a jornalista Catarina Demony, que dirigiu o documentário “Debaixo do Tapete”, com o propósito de passar a palavra, ou seja, levar a temática para ser discutida em escolas, por exemplo.

No entanto, é preciso vontade política para debater os efeitos da colonização. “Mas para existir vontade política também é preciso que exista em Portugal, especificamente, mais representatividade na política em quem toma as decisões. E infelizmente o que nós vemos em Portugal da parte das instituições é um pouco uma falta de vontade de falar sobre estes temas, de assumir um erro muito grave do nosso passado. Porque eu sinto que só assumindo esse erro como país é que depois podemos dar um passo em frente”, destaca a jornalista. Catarina acredita que um pedido de desculpas seria um passo inicial para se ter uma discussão a nível institucional e introduzir, discutir políticas públicas, como por exemplo o sistema de cotas para negros nas universidades ou o combate à desigualdade laboral nas empresas, que possam realmente reparar esses erros. “Em Portugal nós estamos em um nível tão superficial ainda da discussão a nível institucional que me parece que ainda temos um longo percurso para percorrer até chegarmos a esse patamar”, completa.