Por Larissa da Silva
No mês de julho, acompanhamos pela imprensa os despejos de Talude, um bairro de Loures, próximo a Lisboa. Cerca de 64 famílias foram desalojadas de casas autoconstruídas após uma intervenção da Câmara Municipal. Essas famílias, pessoas trabalhadoras, imigrantes, crianças, idosos, foram colocadas na rua, sem acesso a alimentação, a apoio social, orientação e uma nova moradia.
Convidamos Kedy Santos, ativista social em associações e no Vida Justa, e deputado municipal da CDU em Loures, que tem acompanhado o processo de despejo no município para nos atualizar sobre a situação atual e a história dessas famílias.
Kedy também compartilhou a sua trajetória de vida em Portugal, entre os bairros, os estudos, o trabalho social e político, e como tudo isso se entrelaçou à sua vida. “Eu vim viver aqui (Quinta do Mocho, Loures) num bairro que tinha muitos problemas estruturais, sociais, muito problema de integração e também pouco acompanhamento e cuidado para com a realidade, é um bairro composto por pessoas que vieram de Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e portugueses também”.
Sobre os ataques aos imigrantes em crescimento na política portuguesa, Kedy diz: “Quando a câmara faz essas demolições, nós achamos que é também como estratégia política, porque hoje em dia está na moda atacar esse tipo de pessoas. Está tudo na moda ter essa linguagem xenófoba ou ou práticas xenófobas e depois culpabilizá-las porque acham que elas não têm voz ou não conseguem ser defendidas”.
“E outra questão que é importante dizer, essas pessoas não estão ilegais, elas todas estão documentadas, algumas estão em situações de espera de solução das suas situações de regularização, que é um dos problemas, porque os próprios institutos e departamentos estatais que deveriam facilitar a inclusão dessas pessoas na sociedade portuguesa têm dificuldade imensa”, relembra Kedy.
Santos comenta sobre o descaso da Câmara Municipal com os moradores de Talude: “aquelas pessoas viram suas casas demolidas. No dia em que viram, não tinham sequer quem lhes desse o que comer. As estruturas da câmara não aproximaram-se delas. As crianças que assistiram suas casas serem demolidas não tiveram apoio psicológico. As pessoas viram os seus bens e pertences ao relento na rua e depois foram convidados a deslocarem a um espaço da câmara para serem elas a irem pedir ajuda.”
Como alguns moradores de Talude são são-tomense, o governo deste país decidiu divulgar programas de apoio aos cidadãos, como o retorno voluntário ao país e um projeto de conscientização da imigração e Kedy comenta: “a embaixada ou o governo antes de decidir por esse programa em prática conversou com essas pessoas? Eu acredito que não. E isso é que é grave. Não se pode tomar decisões sem ter bases sólidas. E isso acontece com o governo são-tomense, aconteceu com o município de Loures, aconteceu com o governo, porque já vi uma secretária de estado dizer que a maior parte daquelas são ilegais, o que é que é mentira, porque prova que as pessoas antes de opinar convém colocar pessoas no terreno. Nós não podemos estar no escritório a decidir e falar. Temos que informar, colocar os nossos técnicos, as nossas pessoas, seja no Talude ou em qualquer outro sítio”.
Confira trechos da entrevista:
Origens e Trajetória
“Sou natural de São Tomé, apesar de também ter uma costela da Covilhã, que é que é também aqui em Portugal, uma zona aqui próxima, onde meu avô paterno é oriundo, mas eu sou naturalmente de São Tomé onde eu fiz quase toda a minha infância e o ensino básico, até os meus 16 anos.
Eu sou um jovem que vive em Portugal há 23 anos e a minha relação com Portugal sempre foi familiar. Porque a minha família toda já deriva de uma conjuntura portuguesa. Então, sempre tive essa relação com Portugal de dualidade, de personalidade, assim como também tenho com São Tomé.
O que é que eu também posso falar de mim? Vivo aqui há 23 anos, onde eu vim para estudar e efetivamente fiz os meus estudos em 2002. Sou engenheiro químico, mestre em qualidade e ambiente.
Entretanto também trabalhei muito na área social, no programa Escolhas, que é um programa do Estado português que visa integrar jovens de bairros ou zonas vulneráveis ou com alguma fragilidade ou pouco tecido social, nomeadamente também em zonas como a Alentejo, zonas mais onde onde existe uma desertificação. Trabalhei muitos anos neste projeto.
Depois fiz parte de um projeto que chama-se Academia Ubuntu, onde nós estudamos alguns líderes africanos e eu fui um dos formadores, fui um destinatário com muitos jovens líderes de vários países da língua oficial portuguesa e descendentes de imigrantes também em Portugal.
Fui desafiado depois para ser presidente de duas associações no bairro onde eu vim viver em Lisboa, que é um bairro que também deriva de uma conjuntura similar a uma favela no Brasil que é o bairro da Quinta do Mocho, onde as pessoas viviam em casas autoconstruídas, mas que em 2001, 2000, a Câmara de Loures, que é um concelho próximo do concelho de Lisboa, decidiu através de um programa que chamava-se PR e dentre aquelas pessoas estava incluídas a minha família, nesse caso meu pai, a minha avó, os meus irmãos e um tio. Então a minha família já vive em Portugal desde sempre.
Eu vim viver para este bairro, onde era um bairro que tínhamos muito problemas estruturais, sociais, muito problema de integração e também pouco acompanhamento e cuidado também para com a realidade, porque é um bairro composto por pessoas que vieram de Angola, São Tomé, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e portugueses também e também uma outra franja de pessoas oriundas de Moçambique, mas muito reduzida”.
Intervenção social e política
“Consequentemente eu fui ajudando e trabalhando nesses bairros em vários projetos sociais, muito inicialmente também como músico, porque eu fui rapper, ainda faço algumas coisas de rap. Então, quando era mais novito, envolvi-me na música e pronto, criamos um grupo e através desse dele ganhamos alguma visibilidade e também usamos a música como uma ferramenta para discutir e debater e também trazer um pouco os problemas sociais profundos de desta conjuntura de pessoas para para ribalta e ao mesmo tempo também fazendo uma autoanálise, o que é que nós tínhamos que melhorar internamente para que nos vissem e nos tratassem com melhor dignidade.
Depois que eu entrei para a faculdade, trabalhei também como mediador e dinamizador em escolas daqui do concelho de Loures, nomeadamente da freguesia de Sacavém, onde eu vivi e vivo. Eu fui sempre ajudando nas escolas para diminuir o índice de violência e criminalidade e também de abandono escolar.
Para ter uma ideia, eu trabalhei pouco como engenheiro, trabalhei muito mais como pessoa na área social, é uma vocação minha, mas também quiçá também pode ter sido algum erro meu em achar que podia ser engenheiro, quando se calhar podia intervir mais na área social ou áreas próximas, o meu papel seria mais relevante.
Em 2018, depois de ir para São Tomé e de criar uma uma franja da Academia Ubuntu em São Tomé para 50 jovens líderes em São Tomé, quando regressei fui desafiado a fazer parte de uma força política que é o PCP e também CDU, a Coligação Democrática Unitária como candidato para junta de freguesia de Sacavém e Prior Velho, que é a freguesia do concelho de Loures, onde onde eu residia.
Depois de analisar, aceitei o convite porque, pronto, percebi que nós tínhamos que intervir do ponto de vista político e aproveitar também o background que eu tinha da componente social para pôr ou dispor do do cenário político. E pronto, na altura eu achei que ia só fazer número porque não percebia nada de política e eu sempre tive dificuldade de ver no cenário político.
Achei que pronto, era importante também eu que nunca fiz parte de de partidos políticos ou de juventudes partidárias, que também fazia sentido eu lá estar, porque eu representava e represento um conjunto de pessoas que muitas das vezes não se interessam por essas causas, nem se debatem sobre isto, nem percebem o papel delas nesses preâmbulos, principalmente no cenário português, onde há muita malta imigrante e já tá na terceira geração ou quarta, ainda não se sente de todo representadas no cenário político português.
Então eu senti que, claro, que já existiram políticos que também derivam dessa conjuntura, mas muitas delas não se identificavam com estas pessoas. E eu, particularmente, achei que o meu papel no concelho de Loures tinha uma preponderância, nomeadamente de ser eu o rosto e também o mensageiro de uma de um conjunto de problemas que às vezes não é discutido de forma mais condigna nas lidas das assembleias, tanto das freguesias como das municipais.
Eu fui eleito para junta, fiquei lá durante 4 anos, não fui cabeça de lista, então eu era mais suplente, mas fui aprendendo, fui dando a minha participação, fui dando as minhas opiniões. Já eu tinha percebido que eu precisava estar numa força política onde onde eu pudesse ter voz, onde eu não seria só mais um para ocupar um lugar ou para estar ali a coadunar com coisas que eu podia não estar de acordo. Eu gosto de ter uma capacidade de pensar livre e ainda continuo com essa liberdade.
Também era uma oportunidade única de poder aprender com pessoas que lutaram, por exemplo, para que se desse a Revolução dos Cravos em Portugal e também nos mais novos que achamos que a liberdade foi uma coisa fácil conquistar e que hoje achamos que podemos voltar a ter comportamentos e atitudes similares aos que fizeram esses atos bárbaros no passado.
Então, a liberdade tem um custo muito muito relevante e eu sempre tive essa preocupação de estar atento a essa essa questão e sei também que que nos nossos países, nomeadamente os países africanos de língua portuguesa, que só estão a fazer agora 50 anos de independência, a liberdade e a independência para essa gente ainda ainda é algo muito tenro.”
Atuação política
“Então em 2021, se não me engano, houve uma segunda eleição e aí eu fui candidato para a Assembleia Municipal, onde não fui também cabeça de lista, mas estava perto de ser eleito e as pessoas que foram eleitas à frente de mim, algumas delas não puderam continuar com o mandato. Eu passei a ser quase um titular constante, não é? Simultaneamente fiz o mestrado e depois na altura do covid também trabalhei numa casa de acolhimento com crianças e jovens para ajudar essas crianças a reintegrarem-se socialmente.
Neste momento, eu partilho vários tipos de intervenções, desde a junta até à câmara. Até a Câmara de Loures, onde eu intervenho. Claro que eu optei por ser um líder silencioso, optei por ser um deputado que tenta, porque eu vi como ostracizam alguns políticos que que vêm dessa conjuntura política e que têm uma uma tonalidade de pele assim um bocado mais próxima da minha. Eu vi que muitos desses políticos foram ostracizados por jornalistas, por figuras e então eu optei por ser um homem silencioso.
Projeto de Arte Urbana na Quinta do Mocho
“Mas no meio disso também eu fiz parte de um projeto no bairro onde eu onde eu cresci, que é o bairro da Quinta do Mocho, onde houve um projeto de arte urbana, o qual eu fui um dos guias, um dos precursores, onde este bairro deu, se calhar uma das maiores lições que nós devíamos ter, porque era um lugar muito marginalizado e que também se auto marginaliza, mas essas pessoas conseguiram através da arte que foi feita por muitos artistas, dentre eles brasileiros, como o coletivo Vira, artistas fantásticos, utopia que deixaram aqui artes que ultrapassam qualquer dimensão humana. Nós conseguimos com essa galeria dinamizar muitas visitas para muitas pessoas, milhares, milhares de pessoas que até nem museus em Sacavém tiveram capacidade de competir connosco nessa altura.
Então, foi um projeto muito enriquecedor que ajudou também a quebrar alguns estigmas deste bairro, que hoje este bairro até tá a sofrer um pouco com a política camarária municipal por ter-se tornado um lugar bom para se viver. Este projeto da galeria que claro teve acordo com a câmara, mas teve os que foram os maiores percursores e e promotores desta diversidade que se gerou artística e constantemente com a cultura das pessoas que viviam neste bairro e a mudança conjuntural foi nomeadamente as pessoas que vivem aqui desde os guias à nossas mães, aos restaurantes que não entravam pessoas, mas que passou a entrar e que diminuiu o índice da carga policial para contra essas pessoas, diminui o índice de criminalidade.
Eu acho que devia ser um caso de estudo o fenômeno que sucedeu aqui no Mocho, que hoje em dia tá a acontecer uma coisa um bocado engraçada, que é a Câmara de Loures está a incitar alguns despejos e algumas demolições fruto do novo regulamento municipal, mas também fruto de algumas ações que nós achamos que transcendem esses regulamentos. Passa-se a fazer uma gentrificação do bairro.
Realidade atual de Portugal e Loures
Sabendo hoje que na matriz social portuguesa o discurso xenófobo e racista tornou-se normalizado. Porque hoje em dia um racista, se a gente chama de racista, ele diz que está a sofrer é tá-se fazer de vítima. E também eles alegam que estamos sempre a usar o racismo como desculpa, não existe o racismo, existe, existe o racismo como forma de não criar circunstâncias de igualdade para todos.
Para ter uma ideia, eu sou deputado eleito na Câmara Municipal de Loures, mas às vezes quando vai muita gente negra, como as pessoas do Talude que estavam a sofrer agora e de outras proveniências similares, a primeira coisa que fazem é pedir à polícia municipal para ficar a entrada da porta da Câmara Municipal. A segunda, eu que sou eleito também quando vou entrar sou questionado para onde é que eu vou. Eu tenho que dizer o que sou para que as pessoas conheçam. Eu não gosto muito de dizer que sou eleito, nem que sou deputado, mas às vezes eu faço isso como uma forma estratégica para ver se cria algum peso. E muitas vezes eu digo que sou engenheiro só para também não ferir suscetibilidade porque eu não acho que sejam essas coisas que nos diferenciam dos outros.
Independentemente da minha raça, religião, crença, cor ou qualquer outra coisa que seja, tenho que ser tratado com dignidade, com respeito, independentemente de qualquer questão”.
Imigração e condições de trabalho
“Mas sobre a crise habitacional que surgiu em Portugal e que tem também tem relação com a cooperação que se fez no âmbito da mobilidade entre os países da comunidade de língua oficial portuguesa, isso permitiu com que aumentasse o número de imigrantes. E é bom salientar isso. As pessoas hoje atacam os imigrantes de uma forma quase como culpa, são culpados de tudo. Infelizmente agora um dos focos em Portugal são os imigrantes e que não estão a ser culpados, porque o problema dos focos são mais profundos do que nós imaginamos e é preciso termos algum equilíbrio.
E deu também para silenciar um pouco o lobby que muitos partidos e políticos estão a fazer em torno da questão da imigração e o que é vergonhoso porque usam esta capa.
Nos próximos anos haverá necessidade de ter um conjunto de obras de grandes relevos, desde o novo aeroporto e também construção de novas pontes sobre o Tejo e um conjunto de outras infra estruturas que irão necessitar inevitavelmente de mão de obra. A questão aqui central é, temos que perceber porque é que tão a usar os imigrantes como a desculpa para tudo isso. Pode ser que haja pessoas com interesse em aumentar a sua margem de lucro no meio dessa conjuntura toda. E há pessoas que também não têm noção da responsabilidade e do risco que é atacar essas pessoas e o que é que pode resultar daqui.
Agora, claro que a questão salarial que afeta os portugueses e afeta todos os que trabalham em Portugal é transversal. Não é da responsabilidade inteira dos imigrantes, é da decisão dos nossos políticos que querem perpetuar condições económicas na generalidade e usar depois os imigrantes como responsáveis porque aceitam a condição mais baixa.
Eu que fui responsável numa unidade fabril, onde tinha muita gente brasileira a trabalhar comigo, inclusive, e que também lutam diariamente para ter uma vida digna e que às vezes têm que se digladiar entre si para para conseguirem manter nos seus postos.”
Sobre os imigrantes nos bairros
“Mas pronto, a chegar na questão da habitação, a questão da habitação é tremenda porque ela afeta muito zonas mais ou menos urbanas. Neste caso, as grandes cidades.
Para teres uma ideia, o bairro do Talude já existe desde a década de 70. Inicialmente com a comunidade cabo-verdiana, que já vive lá há muitos anos, que até estão muito mais bem instalados do que os santomenses que lá foram. Posteriormente, em meados da segunda década de 2000, veio uma franja de pessoas de São Tomé. E agora com esta última vaga de imigração, realmente veio outra franja de pessoas de São Tomé, Angola, Cabo Verde, inclusive brasileiro. Agora são condições precárias.
E é bom também se orientar que até muitos bairros em Portugal surgiram dessa gênese, dessa gênese da ilegalidade, um conjunto de pessoas portuguesas, por exemplo, que vieram do Alentejo para zonas de Lisboa, onde vieram à procura de trabalho e também havia uma crise habitacional naquela época que essas pessoas deslocavam. E muitas delas tiveram também que ir por esses caminhos que essas pessoas agora também estão estão a ir. A gente, às vezes, tem a memória curta e esquecemos muita coisa, mas há muita coisa que deriva dessa conjuntura.
E nós temos memória curta e a vida também muda de repente. E Portugal é um país de imigrantes, é um país de imigração, é um país de tentar ir para fora, ver condições melhores para depois regressar um pouco melhor. E é um país feito disso. É um país que não pode de maneira alguma tratar mal os outros internamente porque também tem pessoas lá fora, entende? E não existe isso que se diz, por exemplo, de que os portugueses sempre fizeram bem lá fora.
E há portugueses que fazem bem e há portugueses que fazem mal. Há portugueses que agem com boa índole, há os que agem com má índole. Há imigrantes que agem com boa índole e há imigrantes que agem com má índole. É preciso termos algum equilíbrio, sensatez, muito cuidado, principalmente dos nossos agentes políticos, que nós temos um conjunto de agentes políticos hoje em dia que acham que inventaram a nova fórmula da verdade ou acham que já tocaram no céu.
No bairro do Talude surgiu agora uma nova roupagem de pessoas que vieram com vistos da CPLP e com um conjunto de questões que permitem hoje em dia a imigração. Claro que que para alguns é uma imigração descontrolada, para outros tinham um outro propósito. Eu acho que o propósito maior era equilibrar o número de produtividade entre a população ativa e a população inativa portuguesa, porque temos uma população portuguesa que durante muitos anos tornou-se envelhecida. Também o índice de natalidade foi baixo e depois não correspondeu também ao crescimento, fruto também de de pouco incentivo, pouco interesse em dar condições aos jovens portugueses para terem uma condição econômica melhor.
E eu vou só fazer um parêntese. Algumas franjas da direita ou de outros partidos políticos, alegam que a esquerda é que criou condições econômicas nefastas, que permitiu que os portugueses emigrassem para fora. Isso é mentira. Em 2011, houve um fantástico político português que disse que todos os jovens tinham que emigrar. Eu por acaso não emigrei na altura, os meus irmãos emigraram. E claro que lá fora, paga-se salários melhores, a condição de vida lá é melhor.
Houve uma uma retórica agora, é uma tentativa com um programa de habitação jovem que permitiu aos jovens de comprar casa, adquirir casas até os 35 anos, mas isso não é para todos, não é para um imigrante que chegou, que não consegue.
Aquelas pessoas do Talude, a maior parte delas trabalham, infelizmente o salário delas é redutor, não consegue acompanhar o aumento das rendas e a política que é aplicada pelo mercado livre da habitação hoje em dia, que também veio criar este problema grave. Porque claro, deu aos senhorios mais capacidade de negociar os contratos, mas deixou alguns inquilinos, principalmente os que têm pouco poder económico em situação mais vulnerável, porque hoje em dia para conseguir uma casa em Portugal, tens que ter um fiador, tens que dar cinco, seis calções, tens que ter algum dinheiro. E essas pessoas não conseguem ter esse dinheiro.
Porque o salário é baixo e às vezes o vínculo contratual também não é duradouro, não é? Então isso se torna uma coisa volátil. E então elas recorrem à soluções de sobrevivência, de autoconstrução, nunca com o intuito, como foi veiculado por muita gente, de criar novas favelas. Isso não é o propósito e não é isso que aconselhamos também, nem defendemos. Defendemos habitação digna para todos e custos controlados.
No concelho de Loures, se nós vamos ver, foram aprovadas um conjunto de várias obras de construções de luxo, mas poucas obras que para habitações sociais num espaço de de 20 anos A Câmara de Loures construiu pouco, tem 1000 pessoas para alojar em listas de espera e mais essas pessoas que agora estão a surgir nesse contexto desfavorável.
Quando a câmara faz essas demolições, nós achamos que é também como estratégia política, porque hoje em dia está na moda atacar esse tipo de pessoas. Está tudo na moda ter essa linguagem xenófoba ou ou práticas xenófobas e depois culpabilizá-las porque acham que elas não têm voz ou não conseguem ser defendidas. Então é a partir daí que temos também que reivindicar e exercer alguma das nossas influências. E particularmente na zona de Loures, conjuntamente com coletivos como a Vida Justa, Associações”.
Imigração e acesso a direitos
“E outra questão que é importante dizer, essas pessoas não estão ilegais, elas todas estão documentadas, algumas estão em situações de espera de solução das suas situações de regularização, que é um dos problemas, porque os próprios institutos e departamentos estatais que deveriam facilitar a inclusão dessas pessoas na sociedade portuguesa têm dificuldade imensa.
E e depois vai para a questão habitacional, porque imagina se uma pessoa não tiver uma casa, ela não consegue arranjar um trabalho digno, ela não consegue ter uma vida sã, ela não consegue pensar, ela não consegue colocar os filhos na escola, ela não consegue criar um um conjunto de oportunidades que faz com que ela consiga exercer também o seu papel de cidadania e de participação até mesmo política.
Então aqui é que nós temos que batalhar para não permitirmos que haja esses desequilíbrios, porque elas descontam, contribuem para a segurança social portuguesa de forma abismal. E não é verdade que dizem que essas pessoas vivem de subsídios e de apoios sociais. Falso, falso, falso. Eu pelo menos acho que ainda sei que o valor médio dos subsídios em Portugal ronda os 150 €. E eu pergunto, com 155 € quem é que consegue viver em Portugal hoje em dia?”
Situação atual das famílias de Talude
Eu vou assumir que os números da câmara são certos. A Câmara alega que 14 famílias das 66 que iam ser demolidas, aceitaram sair. Mas nos relatos que tenho dessas 14 famílias, só uma ou duas é que está em vias de realmente encontrar uma casa, mas fora do concelho de Loures. Algumas estão aí para zonas de Tomar, que fica muito distante da sua zona de trabalho e põe em causa, alguns até já estão a perder trabalho por causa disto. Os seus filhos também estão a mudar.
Também onde que conseguem ter casas com valores que ainda consigam pagar? No caso de uma família que ainda ontem eu soube, essa família encontrou uma casa na zona de Tomar a 900 €. E que eu fiquei a questionar, talvez seja um T4, só pode. A pessoa teve que aceitar, ele me respondeu, “sou pai de família, tenho filhos, tenho crianças e não quero correr risco de perder as minhas crianças para o Estado”.
Sabemos que por trás de cada ser humano existe um sonho, existe uma vontade, existe uma alegria, uma energia e que essa alegria não se compra. Então é a partir daí que temos que lutar para dar a essas pessoas alguma dignidade. E neste momento elas estão cansadas, estão exaustas, estão a lutar com as forças que têm e com algum apoio, mas tem sido difícil para muitas delas.
Aquelas pessoas viram suas casas demolidas. No dia em que viram, não tinham sequer quem lhes desse o que comer. As estruturas da câmara não aproximaram-se delas. As crianças que assistiram suas casas serem demolidas não tiveram apoio psicológico. As pessoas viram os seus bens e pertences ao relento na rua e depois foram convidados a deslocarem a um espaço da câmara para serem elas a irem pedir ajuda. E ainda por cima a polícia ainda chega e diz: “Não, porque é que tu não vieste mais cedo ter comigo a dizer que iam te desalojar?” Há coisas que temos que refletir. Com a forma como nós tratamos as pessoas. E o diálogo, o diálogo hoje é muito importante. Nós achamos que é pela força que tem que se liderar, mas não, não é pela força do braço.
E tem algo grave que tem que ser dito. Na lei base da habitação portuguesa, existe lá no artigo 13º uma afirmação que antes de qualquer ato de despejo ou demolição, é importante que se garanta condições de alojamento a pessoas que vão ser afetadas nesse âmbito. E isto não foi garantido pelo município de Loures, nem pelo presidente da Câmara, nem pela pelas estruturas que competiam ter esta responsabilidade.
E aí que centra-se o grave problema disto tudo. Eles partiram as casas das pessoas para criar uma pressão para que essas pessoas aceitassem de forma relutante a solução que eles colocavam a dispor dessas pessoas, que é uma solução um pouco dúbia. Que é de uma renda e uma caução, quando elas não conseguem encontrar casas que estejam dentro dos valores apresentados pela Câmara.E isso é uma coisa grave.
E a Vida Justa também ajudou essas pessoas a irem de encontro com a Câmara e também tentou alertar a Câmara, inclusive fez cartas a pedir discussões e debates para tentar encontrar um ponto de convergência, mas a Câmara extremou a sua posição, posicionou de uma forma sempre pouco dialogante.”
Posição do Governo de São Tomé
“Se tu que não és um são-tomense que revolta, imagina uma pessoa que tem relação com o São Tomé e que sabe a realidade um pouco do país do ponto de vista financeiro, social, do ponto de vista da falta de governo que houve ao longo desses 50 anos também, que permitiu algumas dessas questões.
Mas atenção, é também um país que devido à sua insularidade e também a sua pequenez, a necessidade da imigração é relevante e vai sempre acontecer. Isso dos cursos e para ensinar as pessoas a emigrar (governo são-tomense divulgou que daria um curso sobre emigrar), eu acho que uma pessoa que tá a passar fome ou que está em dificuldade financeira, eu não sei se ela vai conseguir fazer um curso. Pode ser que ajude as pessoas a perceber pelo menos como é que são as regras do país onde ela vai, do ponto de vista do acolhimento, do ponto de vista até da habitação, do ponto de vista dos descontos, do pagamento, da regularização das coisas, não.
A situação do Talude mexeu com a estrutura governativa são-tomense que pela primeira vez deram um sinal de vida relativamente ao cuidado que tem que ter com os seus imigrantes. Porque a imigração, ela já ronda um número considerável, principalmente em Portugal. Quase 18% dos são-tomenses que emigraram, por exemplo, em 2024, se não estou errado, 58% veio para Portugal, que é um número considerável. E dessa imigração em Portugal, a verba que eles investem no país rondam cerca de 24 a 29 milhões de euros. Então já é um número considerável e num país que o salário mínimo, ronda os 40 os 100 €
Aqui um são-tomense que ganha aqui quase 900 €, que são 870 € que é o salário mínimo português, quer voltar para São Tomé a receber menos que 100 € e depois dele ver a realidade portuguesa, o estilo de vida, a qualidade básica de saúde, de educação, de transporte, eu faço a questão em si, será que eles querem mesmo voltar?
Agora, para entrar numa coisa mais prática que tem a ver com o respeito a essas pessoas do Talude, a embaixada ou o governo antes de decidir por esse programa em prática conversou com essas pessoas? Eu acredito que não. E isso é que é grave. Não se pode tomar decisões sem ter bases sólidas. E isso acontece com o governo são-tomense, aconteceu com o município de Loures, aconteceu com o governo, porque já vi uma secretária de estado dizer que a maior parte daquelas são ilegais, o que é que é mentira, porque prova que as pessoas antes de opinar convém colocar pessoas no terreno. Nós não podemos estar no escritório a decidir e falar. Temos que informar, colocar os nossos técnicos, as nossas pessoas, seja no Talude ou em qualquer outro sítio.
Também é importante haver esta duplicidade de relação. A gente não pode só fazer encontros da CPLP para parecer bonito, para ficar tudo protocolado é tudo muito bonito, mas depois no fundo não se toma decisões concretas que têm impacto na vida das pessoas. É preciso haver essa essa duplicidade de trato.