Por Larissa da Silva
Quando David Pina nasceu, em 1996, Cabo Verde participou pela primeira vez dos Jogos Olímpicos, em Atlanta. Neste mesmo ano, Maria Mutola ganhou bronze nos 800m rasos para Moçambique, sendo a primeira medalhista para um país africano de língua portuguesa.
Vai ver que o ano de 1996 era para ser um ano olímpico para Cabo Verde, com o marco de início e nascimento de quem viria a ser o seu primeiro medalhista. Em Paris 2024, David Pina ganha sua primeira medalha no boxe até 51kg.
O jovem medalhista, boxeador, pai de duas crianças, hoje residente em Portugal, deu entrevista ao Portal Vozes comemorando a realização de um sonho individual e da nação cabo-verdiana, como ele mesmo diz.
Confira a entrevista completa:
David, vou pedir para você se apresentar primeiro.
Me chamo David Daniel Varela de Pina, tenho 28 anos, sou natural de Cabo Verde, Ilha de Santiago, Santa Cruz.
Nasceu em Santa Cruz e quando veio para Portugal?
Eu nasci e cresci em Cabo Verde, na minha cidade Santa Cruz, aos 17 anos fui para outra cidade, Assomada, estudar, fui fazer o meu décimo primeiro ano lá, depois regressei e comecei a viajar por causa do boxe. Em 2017, fui fazer o meu curso na cidade da Praia, mas ia voltava todos os dias e em 2021, a seguir aos Jogos Olímpicos de Tóquio, embarquei para Portugal e desde então eu vivo cá.
Então eu vim pra cá em setembro de 2021, isso quer dizer que estou cá há 3 anos.
Como você conheceu o boxe?
O incrível é que meu pai também fazia boxe, mas eu nunca tive interesse pelo boxe. Eu comecei a fazer boxe porque eu estava a fazer umas briguinhas na rua, aí uns colegas me convidaram para ir treinar boxe.
No início de 2012, logo em janeiro, no dia 2 por aí, fui lá experimentar boxe, gostei e fiquei até agora.
Então o que te trouxe para Portugal foi o esporte…
Eu já tinha vindo antes para competir. A primeira vez que eu vim foi em dezembro de 2014, vim fazer uns torneiros. Depois em 2018 vim de novo e em 2021 vim fazer um estágio para ir aos Jogos Olímpicos e depois regressei um mês depois para vir treinar mesmo e fiquei até agora.
Você veio treinar em um clube?
Eu vim fazer estágio para ir aos Jogos Olímpicos de Tóquio e já foi há 3 anos, então eu passei por vários clubes aqui em Portugal, por último eu conheci o meu clube que é o Privilégio Boxing Club, eu fui lá treinar com eles, gostei do treinador e depois eu perguntei se eu podia ficar a fazer estágio com eles, treinar e ele disse que sim e a seguir eu voltei e gostei, estamos a trabalhar juntos.
Tem mais colegas de Cabo Verde e de outras nacionalidades?
Tem, lá é um clube misto, tem gente de todas as nacionalidades, brasileiros, portugueses, guineenses, cabo-verdianos, ucranianos, ingleses, lá tem pessoas de todo gênero, crianças, é um clube gigante, é o melhor do país.
Quando são os torneios de fora de clube eu represento meu clube, mas quando tem torneio internacional, como o campeonato africano, mundiais, jogos olímpicos, eu vou como cabo-verdiano.
Você consegue viver do esporte? Como foi sua trajetória para viver em Portugal?
Eu ainda não consigo viver do boxe, porque ainda não caiu nada. Eu acredito que até o início do ano eu vou conseguir viver do boxe. Eu financeiramente tive muitos problemas em Portugal e poder treinar e competir, não é fácil. E treinar e trabalhar é um custo adicional.
E agora com o resultado que eu tive, eu fui à Cabo Verde, fui lá falar com os responsáveis do Desporto e disseram que sim, que vão me apoiar agora. Eu pedi um salário para eu continuar a treinar, porque como já sabe eu parei alguns meses atrás porque não tinha condições para continuar continuamente. Então para não acontecer isso outra vez, para eu não parar, eu fui lá e pedi um salário para poder continuar a treinar e eu sei que sou capaz de dar mais resultados, mas para isso eu preciso estar mais focado e viver do boxe.
Normalmente eu vivo só com o boxe, eu só treino, mas fora isso eu preciso ter um salário, porque eu só treino de manhã e à tarde e viajo, então eu acredito que eles vão me dar. Eu também já recebi propostas de patrocínio e o governo disse que ia me apoiar, então eu acredito que até janeiro, vou conseguir viver do boxe.
O Boxe é meu trabalho desde 2021, desde que vim pra cá e só faço isso. E o salário que é bom, nada.
No Brasil existe a Bolsa Atleta e tem sido um apoio muito importante para os atletas…
Eu sei e acho que os outros países deveriam copiar o Brasil, eles se queixam que não há condições, mas há. Em Cabo Verde há Bolsa Atleta, mas é muito pouco. Eu aqui, a bolsa que eu recebo nem dá para comprar suplementos, são 140 euros aqui em Portugal. Essa é a bolsa de Cabo Verde, mas eu como atleta olímpico tenho uma bolsa da Solidariedade Olímpica que são 700 euros mensais, é com isso que eu tenho sobrevivido aqui em Portugal, que às vezes nem chega, chega atrasado, é pouco.
É o mínimo que dá pra ter, eu sou grato por isso, pois me ajuda, mas é pouco. Se fores treinar e viajar, nem chega e depois para pagar as despesas tuas nem chega. A Bolsa Atleta de Cabo Verde chegou agora só no mês de fevereiro, acho que, também tem só 6 meses que eles implementaram essa bolsa, mas já é alguma coisa.
Mesmo com essa bolsa em Cabo Verde é difícil de se viver?
É caro viver lá com essa bolsa que eles recebem. Lá o salário mínimo é 150 euros, é pouco para o custo de vida. Se tiver dois filhos nem consegue colocar para estudar e dar de comer, é complicado.
Você comentou que chegou ao boxe pelo seu pai, mas como você vê o incentivo ao esporte em Cabo Verde?
O desporto em Cabo Verde é acessível, mas falta incentivo do estado, falta um trabalho de organização. Lá nós temos muitos jovens, com muitos talentos, com vontade de fazer alguma coisa, que até vão fazer coisas erradas, mas tem vontade de fazer alguma coisa e que é preciso uma ação, para cativar os talentos e dar oportunidade aos jovens. O que não falta no meu país são jovens com bons talentos para representar Cabo Verde.
Imagina eu saí de lá para melhorar aqui em Portugal, porque já não tinha condições certas para eu evoluir mais onde eu estava. Então quer dizer que há coisas que precisam ser feitas lá para melhorar e quem sabe ter mais e mais atletas com representação internacional.
Muitos atletas são forçados a sair do país ou representar outros países, porque lá em Cabo Verde não tem como subir na vida e nem nada. É complicado.
Você foi para as Olimpíadas de Tóquio e agora Paris, como são as participações olímpicas para você?
Tóquio foi a primeira participação, mas serviu para que Paris fosse uma experiência medalhística, Tóquio foi o primeiro encontro, eu também não sou a mesma pessoa que sou hoje, lá o meu combate não aconteceu exatamente como eu queria, também não tinha como, com aquele nível que eu estava era ali que eu ia parar. Em relação ao país, foi incrível, as pessoas são todas humildes, sem nada a queixar. O único problema é que era o tempo do COVID e não podemos passear nem nada mais. Também para o atleta que ia lá competir foi necessário.
Agora Paris foi excelente, porque eu já tendo a primeira experiência fui lá com outra visão, porque Tóquio eu vi que podia conseguir alguma coisa,precisava só melhorar e conquistar algumas coisas, então com essa experiência vim trabalhar aqui em Portugal para conseguir o que consegui em Paris, que foi uma medalha. E Paris foi um sonho que se tornou realidade, foi bom, não foi fácil, mas foi bom. Agora eu acredito que com essa experiência também, para os próximos jogos é alcançar mais e melhores resultados. Paris pela primeira vez eu consegui passear a seguir a competição, foi ok, não tenho nada a queixar.
E a sensação de ganhar uma medalha?
É a sensação de sonho realizado, eu realizei um sonho não só meu, como do meu país, porque fez 28 anos que participamos pela primeira vez dos Jogos Olímpicos e nunca tivemos nenhuma medalha e fizemos um marco histórico, não só a nível nacional, mas a nível mundial, porque foi a primeira vez que ganhamos uma medalha, marcamos isso na história, uma sensação que não tenho palavras para descrever.
David, você veio morar em Portugal recentemente, como foi essa adaptação?
Eu já tinha cá mulher e filho, nasceu cá, também a minha mãe e meus irmãos estão todos cá, só meu pai e minha filha que estão em Cabo Verde, foi fácil adaptar. Foi difícil por um tempo, pois a realidade é diferente, os costumes, os hábitos, as amizades, essa parte que foi difícil. Do resto, falar português, para mim foi normal, depois a distância também é um pouco longe, eu levo 4 horas para ir treinar e é um bocado chato (David mora em Almada e treina em Odivelas, faz o trajeto todos os dias), mais difícil foi a nível económico, teve um momento que eu tive que parar de treinar porque 700 euros não pagava as minhas despesas dos treinos mais as de casa.
De resto foi normal, os meus colegas foram super acolhedores, o frio é difícil, mas foi bom. Portugal abriu as portas e através daqui eu consegui o resultado que queria.
Você quando teve que procurar emprego chegou a trabalhar com o que?
Nas obras com carpintaria, porque desde crianças eu aprendi a trabalhar com meu pai na carpintaria. Meu pai é carpinteiro, a minha família toda, eu aqui tive que parar uma vez por dia e ir trabalhar nas obras. O mais difícil foi em setembro do ano passado para ir trabalhar no Algarve, mas eu lá ganhava muito bem, ganhava 1.500 euros mensais, só que tinha que ser 10 horas por dia e não consegui treinar, tinha que trabalhar para conseguir algum dinheiro, 700 euros não chegava para pagar as despesas. Mas depois voltei em janeiro e correu tudo bem.
Você tem dois filhos então…
Tenho um rapaz e uma miúda, o rapaz tem 4 anos e a miúda tem 7 anos, Miler e Elen. Elen está em Cabo Verde, mas já estamos a tratar para que ela venha viver cá.
Você já voltou a treinar?
Já voltei, temos campeonato africano em novembro. Este ano estamos só a treinar para manter a forma, à espera do novo calendário para nos organizarmos.
O processo é começar a treinar devagarinho.