O Portal Vozes entrevistou António Spencer Embaló, responsável pelas Conferências e Políticas Públicas para contar detalhes do evento que começa esta semana.
Com o lema “Mandjuandadi: Identidades em Liberdade”, inicia na próxima quinta-feira (01/05) em Bissau, a 1ª Bienal de Arte e Cultura de Bissau. Serão 30 dias de Conferências nas Artes Performativas e da Imagem em Movimento, Artes Plásticas e Visuais, Conferências e Políticas Públicas, Literatura e Música.
António Spencer Embaló, sociólogo bissau-guineense, com longa carreira em projetos na área de educação e cultura, faz parte do grupo de criadores e organizadores da Bienal. Responsável pelas Conferências e Políticas Públicas, e coordena a comunicação e visibilidade do evento, Spencer nos conta na entrevista como nasceu a Bienal e qual o legado que eles querem deixar para o país.
Na Literatura, a curadoria é de Zaida Pereira, nas Artes Plásticas e Visuais é de Nú Barreto, na Música é Karina Gomes, nas Artes Performativas e da Imagem em Movimento é de Welket Bunguê, e com artistas de 15 países, do Brasil ao Timor Leste.
Spencer Embaló conta que além da Bienal, tem uma parte pedagógica que querem fazer para entender a situação cultural do país: “a nossa intenção, o nosso propósito não é só fazer e permitir que o público consuma. É perceber aquilo que estão a consumir, é “educar” também as pessoas, é ajudar a prepara-lás para as áreas artísticas, e fazer uma intervenção pública de qualidade”.
“Mas uma das componentes que nós assumimos com muita força para esta primeira edição é a discussão à volta do património, aquilo que são os patrimónios culturais do país. E elegemos um património que, na minha opinião, é um património, não conheço outro, que mais nos une enquanto guineenses. O Kriol, que é a nossa língua nacional. Eu não conheço outro elemento cultural que mais nos junta e nos une quanto Kriol”.

Confira a entrevista completa:
Quem é o António Spencer Embaló?
Eu nasci e cresci em Bissau. Nasci em 1978. Eu já sou fruto da independência. Já nasci livre. E apanhei os primeiros anos da independência.
Obviamente que nasci em 1978 e passei a minha infância já com alguma noção das coisas e com alguma consequência das coisas. Sou muito fruto dos anos 80 embora de 78. Mas nasci e cresci em Bissau, fiz todo o meu percurso escolar básico e até ao secundário em Bissau, sendo que na altura o nosso secundário ia até ao 11º ano.
Depois em 2000, depois da guerra de 1998, que foi o marco do país, concorri para uma bolsa. Foi dos poucos concursos que se conseguiu organizar no país, na altura. Consegui ganhar uma bolsa e vim para Lisboa estudar. Eu fiz Sociologia no ISCTE, depois do curso, fiquei ainda uns bons sete anos, mais ou menos, a trabalhar cá num projeto lindo, um autêntico laboratório de promoção de inclusão escolar – no Agrupamento de Escolas de Apelação.
Ainda fui contratado como professor de substituição, fiz a animação sociocultural. Depois é que comecei a trabalhar enquanto sociólogo e coordenei um projeto de inclusão, na verdade, dois projetos de inclusão escolar, um a seguir ao outro e algumas iniciativas de voluntariado que também levei a cabo naquela altura.
Como sou muito de desafios, eu acho que os desafios servem-me um bocado como droga, e quando não me sinto desafiado, assumo que é o sinal de que está na hora de mudar de vida. E quando regressei a Bissau, e já no segundo emprego, iniciei a minha colaboração com a organização holandesa para o desenvolvimento, SNV, estava na Guiné-Bissau e tinha aberto um concurso para contratar um formador, embora o projeto era de segurança alimentar.
E da segurança alimentar não sabia nada, nem mesmo o conceito, tinha que ir a aprender. Mas a formação eu sabia muito, porque o meu percurso cá permitiu-me também formar-me em formação de formadores, aliás já era formador certificado em Portugal. Então, quando eu me mudei completamente da área, passei da educação para a segurança alimentar, sendo que a área de formação, isso continuou porque eu era formador, continuava a dar formação.
Então, houve ali mudança de lentes, mas os óculos eram os mesmos, basicamente. Fui para a SNV, comecei a intervenção na área da segurança alimentar, mas foi também na altura de efervescência, vá lá, da intervenção mais cidadã na Guiné-Bissau. Coincidiu com o golpe de Estado de 2012. Eu e o Miguel (de Barros), um grupo de jovens adultos licenciados e pessoas com nível de preparação e de contributos do país já muito acentuado, resolvemos criar um movimento que chamamos de Ação Cidadã, mesmo para ter uma intervenção cidadã no país.
A base do movimento era mesmo insurgir-nos contra qualquer forma de golpe de Estado. Não interessa a época, não interessa os propósitos, até porque chegámos à conclusão que os propósitos são sempre os mesmos, a justificação é sempre a mesma e com imensa capacidade para justificar um golpe de Estado e os retrocessos eram sempre catastróficos, ou seja, o país acabava sempre por se ressentir anos depois ou durante muito tempo numa interrupção antidemocrática.
Foram quantos golpes depois da independência?
Eu já perdi a conta. É verdade. Entre os golpes consolidados e as supostas tentativas e inventonas, já perdi a conta. Politicamente vai-se criando também ideia do golpe para se poder resolver outros problemas, para eliminar determinados adversários, adversários militares, adversários políticos, então ficamos sempre em dúvida se era de facto uma tentativa ou se era uma inventona, então entre golpes consolidados e golpes não consolidados, eu já perdi a conta. Mas claro, o 12 de abril foi também marcante para nós, porque foi num período, eu voltei em 2011 e aconteceu em abril, tipo 6 meses depois e eu estava a fazer o maior investimento na minha carreira na altura, arrastei a minha família para regressar para a Guiné.
Estava a fazer investimento em aluguel de casa, mudança. Quem já emigrou sabe o que é que isso significa. E quem não tem muitos recursos sabe melhor disso – a minha família é uma família humilde. O meu pai foi inspetor de polícia a vida toda. A minha mãe iniciou-se como doméstica, depois foi educadora de infância. Então, não há aqui recursos para dizer ok, pode ser assim, mas o pessoal tem dinheiro, resolve. Não, eu vivo dos meus rendimentos. Então, nessa altura foi muito marcante, porque também o país parecia que estava a dar respostas em termos económico-financeiros. E foi um corte duro, então criámos o Movimento de Ação Cidadã.
E nesse momento, fez-me voltar mais para uma visão também na área da cultura. O Movimento de Ação Cidadã tinha um campo da área da cultura muito forte. Resolvemos reconhecer trabalhos de profissionais da área da cultura de forma muito específica dentro do movimento.
Isso fez-me ter a ponte com a cultura. Passado algum tempo, resolvi mesmo abraçar uma carreira política.
Uma ligação política partidária?
Sim, política partidária. Ao PAIGC, que é o partido do país, filiei-me, fiz o meu percurso e hoje sou dirigente do Partido. Mas não deixei nunca essa minha intervenção mais social, até porque em outros contextos pode ser difícil de entender, quem tem a responsabilidade política e de governação, que eu cheguei a governar, fui secretário de Estado da Cultura em 2019, e que depois volta a operar no terceiro setor enquanto sociedade civil.
Obviamente que eu nunca vou deixar de ser sociólogo. Estou sempre atento enquanto tal. Se não tiveres uma profissão que te dê sustento, estarás numa condição mais vulnerável para eventuais mudanças de posição política, que é muito comum na Guiné-Bissau. E eu acho que parte dessa mudança vem dessa vulnerabilidade que as pessoas têm em termos económico-financeiros. Parte. Outra parte tem a ver com ausência de valores, ideologia, falta de causa e de engajamento com o país, com o partido, etc. Há toda essa outra parte, mas também há a vulnerabilidade econômica ou financeira. Então, fui procurando criar condições para viver.
Então, durante esses anos todos, não deixei de ser um consultor para poder criar os meus recursos.
E que é até importante para a sua vida política também, ter esse papel social, vamos dizer, mais próximo da realidade do contexto do país.
Continuo ali nessa intervenção, faço muitas consultorias o quanto possível, porque também é um mercado pequenininho, muito concorrido no país. No meu percurso profissional há alguma especialização na área de comunicação. Como eu disse, passei pela segurança alimentar, mas já tinha a educação. A comunicação foi sempre uma paixão, até porque, enquanto coordenador do projeto, tinha acumulado também as funções de principal elemento da comunicação. Aliás, o projeto é um projeto pequenino, com recursos muito pequeninos, então o coordenador tinha que ser também o responsável da comunicação.
Durante o nosso percurso no Movimento Ação Cidadã, eu assumi a responsabilidade de coordenar a equipa da comunicação, tal qual como estou a fazer agora com a Bienal, por acumular essas funções.
Nós, enquanto movimento ação cidadã, a dada altura acabamos por estabelecer algumas parcerias, então a delegação da União Europeia em Bissau fez muito questão em se associar às nossas atividades e nós fizemos sempre a questão de que seria uma parceria, nunca um financiamento, porque depois o que acontece na prática, com o financiador depois dita as regras e apresenta as suas agendas.
A agenda é nossa, se quiserem se incorporar tudo bem, mas a agenda continua sempre a ser a nossa. Então a Organização das Nações Unidas se associou a nós. Aliás, nós inauguramos em 2014, que tenhamos memória, foi a primeira vez que a sociedade civil organizou debates eleitorais em Bissau. E procuramos clarificar ou permitir que os partidos e seus candidatos clarifiquem suas posições e projetos políticos.
Era transmitido em rádio?
Rádio e televisão. Nós criamos condições para que os debates fossem transmitidos em direto na rádio e na televisão da Guiné. E depois aberto ao público, o espaço era também espaço público – eram nos centros culturais onde aconteciam. Criámos todas as condições para que os debates pudessem ser vistos, assistidos pelo público localmente, mas depois através da rádio e através da televisão. Foi uma intervenção muito gira.
Vocês ainda tem registros disso? Na internet…
Naquela altura, a nossa internet não era tão forte e não havia também tanto fenómeno de transmissões em direto. Temos gravações.
Esse grupo hoje ainda existe, vocês ainda fazem alguma intervenção ou não?
Não, vamos fazendo intervenções mais de reforço de amizade. Não, deixamos de ter intervenção pública enquanto grupo, porque profissionalmente cada um depois teve outros desafios. Por exemplo, eu fui para a política e para o governo passados alguns anos depois. Aliás, quando eu entrei, decidi entrar para a política ativa, disse que não tinha condições de ficar num movimento que era muito cívico, apartidário e decidimos acabar com o movimento ação cidadã.
Vamos entrar agora na primeira Bienal que a Guiné-Bissau vai realizar. Queria que você falasse um pouco desse contexto. É claro que é uma caminhada para chegar na Bienal, mas que contasse essa Bienal, como é que ela nasce.
No contexto da Bienal, os primeiros passos foram dados por nós mais ou menos há dois anos e meio, três. Pessoas ligadas a várias áreas, do empresariado à sociedade civil, área cultural, artístico, posso citar nomes, por exemplo: o Paulo Gomes esteve conosco nesse almoço, a dona Augusta Henriques, que é a fundadora da Tiniguena, esteve nesse almoço, o Abdulai Silla, teve também gente com mais idade, vamos chamar assim. Mas teve malta também mais jovem como o Eric Daro, que são músicos mais jovens e atuais, ou seja, foi também um encontro de gerações. A Karyna, o Nú Barreto, enfim, juntamos esse grupo de
pessoas com fortes ligações em termos da cultura, mas de áreas diferenciadas.
O nosso propósito na altura era refletirmos o que é que nós podemos fazer enquanto cidadãos, no nosso país, o que é que podemos fazer para dar um outro rumo ao país e de forma diferenciada de uma intervenção político-partidária, porque a intenção nunca era criar um partida ou coisa parecida.
A nossa reflexão levou-nos à institucionalização de qualquer coisa que possa ser organizado de dois em dois anos. Então, quase que de forma evidente, percebemos que isso só pode ser uma Bienal.
Então, criamos uma fundação, que é a Fundação de Arte e Cultura da Guiné-Bissau e com a responsabilidade de organização de todo o evento cultural.
Como conceitualmente uma Bienal é algo muito pesado, financeiramente também, a programação tem de ser uma coisa muito intensa e com valores financeiros muito elevados, então decidimos fazer uma mostra, para sabermos se já tínhamos um caminho para a Bienal.
Então, a mostra aconteceu há dois anos. Foi uma espécie de ano zero de Bienal, para essa primeira edição. Decorreu em maio, mês de início das chuvas, início do cultivo e mês do trabalhador. Então, maio simboliza muito para o país.
Mas as chuvas lá em Bissau são aquelas que duram o dia inteiro? São aquelas que passam rápido…
Eu costumo dizer, numa de má língua, que até as chuvas da Guiné-Bissau são malcriadas. Porque não te permitem fazer mais nada. Se chega um momento, não te permitem fazer mais nada. Imagina esse temporal que estamos a assistir agora. Com muito vento, com a chuva. Isto é a chuva da Guiné. Não cai. Praticamente não te permite movimentar. Imagina, estás numa… Não podes estar numa esplanada. Podia ser giro, ok, vou sentar aqui a ver chuva, mas vem com tanto vento, chove com tanta intensidade… É muito difícil depois organizar atividades, mesmo num espaço fechado, porque depois a pessoa tem que atravessar a rua com água, com não sei o quê, menos transportes. Enfim, é complicado.
Uma das especificidades da nossa Bienal não é uma Bienal da literatura, não é uma Bienal de cinema, não é uma Bienal, é uma Bienal da arte e cultura. Porquê? Porque o país é muito pequenino, temos pouca gente, muita pouca gente para o consumo da cultura, seria muito difícil organizar só uma Bienal de uma disciplina. Muito difícil, se calhar até mais fácil em termos de organização.
Agora, ter público para consumir, porque o nosso propósito não é gabarmos que organizamos uma coisa gira, e que seja consumida, que seja depois utilizada pela própria população que possa beber desse processo de criação artística ou cultural. Então decidimos avançar com cinco disciplinas, que são a música, a literatura, as artes plásticas e visuais, as artes performativas e de imagens em movimento, o cinema, e depois as conferências e políticas públicas que eu tenho a responsabilidade de coordenar enquanto curador.
E essa área é uma área especial, porque não é propriamente uma área artística, mas reflete toda a nossa preocupação de intervenção na área artística e cultural. A nossa intenção, o nosso propósito não é só fazer e permitir que o público consuma. É perceber aquilo que estão a consumir, é “educar” também as pessoas, é ajudá-las a preparar para as áreas artísticas, e fazer uma intervenção pública de qualidade. E é onde entram as políticas públicas: no fim de cada processo estipulado, podermos apresentar propostas de intervenção ao governo e à sociedade civil.
Por exemplo, neste momento o que é que está já a decorrer enquanto projeto? Temos um dos projetos que é fazer uma recolha de estatística cultural do país, porquê? Porque percebemos, temos conhecimento de que existe uma lacuna, não existe nada no país que produza estatística cultural. Então vamos criar condições para a produção de estatística cultural daqui para a frente, sob a capa da Fundação Bienal e que é uma das atividades do Bienal que ultrapassa a Bienal.
Assumimos e vamos lançar e validar um curso de gestão cultural durante a Bienal. Porquê? Porque percebemos que há aqui uma lacuna em termos de formação na área de gestão cultural.
E a ideia é dinamizar o curso com parceiros locais, como a Ação para o Desenvolvimento, que tem uma matriz de formar profissionais em áreas muito técnicas, forma, por exemplo, profissionais na área da educação da infância, forma eletricistas, forma pessoal na área da informática, tem todo o percurso profissional, profissionalizante, digamos assim.
Então, esta é uma das formas de intervenção na área de políticas públicas e isso faz ponte com as conferências. Teremos cinco conferências. Desde a música, levamos sempre o questionamento do tipo, existe uma indústria musical mundial. Como é que os guineenses, fazedores da música da Guiné-Bissau, se inserem nesse mercado mundial? Estão presentes? Como é que estão? Estão bem representados? O que é que é preciso para estar bem representado? Que tipo de percurso têm que fazer, que tipo de conhecimento têm que ter. Esse é muito o propósito desta conferência. E depois, queremos, das conferências, passar para o Djumbai.
Os Djumbai serão mais os cantores, os gerentes de carreiras musicais, que estarão em contato com novos fazedores da música, mas com o público em geral, para serem questionados, para partilhar a suas experiências. E esse material será disponibilizado depois daqui a algum tempo, em formatos vários, áudios, livros, etc., como forma de preparar a nova geração para o que aí vem.
Mas uma das componentes que nós assumimos com muita força para esta primeira edição é a discussão à volta do património, aquilo que são os patrimónios culturais do país. E elegemos um património que, na minha opinião, é um património, não conheço outro, que mais nos une enquanto guineenses. O Kriol, que é a nossa língua nacional. Eu não conheço outro elemento cultural que mais nos junta e nos une quanto Kriol
Há muita gente que debatem connosco também sobre a música enquanto um patrimônio cultural nacional. E eu digo, ok, só que a música que mais nos junta e une, porque nós temos várias vertentes musicais, felizmente, como muitos povos do mundo, e em que mais nos revemos, é cantada em Kriol.
Então, o Kriol está sempre presente. Por isso, vamos levar o Kriol como tema de debate numa conferência, para percebermos se é assim tão importante quanto achamos. Dou uma estatística, embora precise ser atualizado: o último censo indicava que 98% da população da Guiné-Bissau utiliza Kriol como sua língua do quotidiano. Com a atualização, eu não sei se não chegamos a 100% população da Guiné-Bissau que utiliza o Kriol para trabalhar, para namorar, para cozinhar, para isto, para aquilo, será que não é de facto importante para a população da guiné-bissau? Será que não estamos num momento de reconhecer formalmente que é um património nacional?
Será que não estamos num momento de, pós-reconhecimento formal, que é um património nacional, e que devemos correr para a sua formalização enquanto património cultural mundial? Será que já não está na altura de reconhecermos como uma língua oficial, também uma língua oficial da Guiné-Bissau?
Na verdade não é oficial oficial de documento, mas na prática é. Então, essa formalização política é importante. É claro que contra mim falam, já fui responsável, já podia ter feito isso e estávamos a caminho de fazer isso. O problema é que eu governei só há sete meses. Não deu tempo. Eu estava a aquecer. Eu nem tinha acabado de formar a equipa. Havia direções gerais que eu não tinha mexido sequer. Porque para mexer é preciso fazer como deve ser. E para fazer como deve ser é preciso ter tempo. Mobilizar recursos, pessoas e recursos humanos.
Perceberem, eu estava a desafiar pessoas para saírem daqui de Lisboa para irem trabalhar para a Guiné. Estava a mobilizar pessoas para saírem das ONGs internacionais de missão para irem trabalhar comigo. Esse processo requer tempo. Então não tivemos tempo de formalização, mas estava já a caminho. Essa formalização tem que passar pelo Parlamento. Não é o governo que toma a sua decisão. O governo vai dizer ao Parlamento que nós queremos fazer isso. Vai caber ao Parlamento dizer que sim ou que não.
Mas pelo menos criar aqui um grupo de pressão para essa discussão pública, só por si, já vai servir como elemento de pressão para a sua formalização, a sua oficialização. Eu defendo que é absolutamente necessário, até uma justiça social para o povo da Guiné-Bissau.
Muitos povos no mundo têm várias línguas oficiais, na Nigéria, África do Sul tem não sei quantas línguas oficiais. Eu acho que vivem felizes, não estou a ver, acho que aumenta só a nossa felicidade que podemos fazer. Isto é fazer ponto de forma rápida do que é que são as conferências de políticas públicas da Bienal. Depois temos as outras disciplinas artísticas que são importantíssimas a nossa visão, vai ser sempre uma visão pedagógica das artes e da cultura da Guiné-Bissau, queremos sempre, porque na prática é isso que acontece, estamos sempre a passar ensinamento mesmo quando fazes uma música vamos chamar a música como exemplo, uma música cheia de asneira não é que estejamos ou quem faz a música cheia de asneira está a tentar ensinar as pessoas como é que se diz asneiras, mas tem um propósito por trás alguma mensagem que quer transmitir.
Hoje não consigo avançar estatisticamente mas a nossa ideia muito se aproxima da paridade. Estamos a ter o cuidado de convidar muitos artistas, muitos fazedores da cultura do género feminino. Porque é importante, a maioria da população da Guiné-Bissau é mulher, a maioria não tem escolaridade, a nossa forma de políticas públicas, fazer propostas na área de ensino e aprendizagem, em termos gerais, mas no campo artístico-cultural, de forma muito específica, que se preste atenção às mulheres. Então, por isso também estamos a desafiar muitas fazedoras de cultura e da arte, que sejam mulheres e mulheres que possam transmitir essa mensagem.
Aliás, um dos Djumbai mais interessantes que temos previsto é um Djumbai que se chama “Mulher, Maternidade e Carreira Artística”. Vamos ter a Karyuna Gomes, que é uma cantora reconhecida mundialmente e na Guiné-Bissau, que é mãe, que é casada. Temos a Selma, que é mãe, que tem a carreira que tem, e é preciso depois essas partilhas para percebermos as dificuldades, os caminhos, os “sapos que terão engolidos” que não é fácil, porque quando se vê nas redes sociais parece que é tudo bonito.
É interessante que os maiores parceiros que nós conseguimos envolver até aqui são de Portugal e do Brasil. Isto culturalmente diz alguma coisa. Diz que nós somos de facto próximos e é preciso cultivar essa proximidade. Nós sentimos que temos tanta coisa para partilhar com o Brasil, temos tanta coisa a aprender, daí essa necessidade, a ponte, por exemplo, com o SESC. Porque no fundo não é só para nós enquanto instituição, o que nós queremos fazer é a ponte para os fazedores de arte e da cultura possam movimentar-se nesse espaço e no mundo.
Até porque um dos temas da conferência tem a ver com a mobilidade. Eu chamo ironicamente “como mobilizar a mobilidade dos fazedores da arte e da cultura”. Nós sabemos que é mais fácil umas horas, umas semanas, ir à Bissau fazer qualquer coisa. Um Vhils ir à Bissau, ir ao Brasil fazer qualquer coisa. Será que é tão fácil para um Patche di Rima ir para o Brasil, para Portugal, para a China? O que é preciso para um guineense ou um africano ter para conseguir se movimentar com maior facilidade e como fazem nacionais de outros países, de outros continentes.
Essa é uma das nossas preocupações e queremos ajudar aqui a fazer a ponte e a diminuir a distância entre povos e fazer ajudar.
Tem 15 nacionalidades envolvidas na programação, é isso?
Além de Angola, Mali, Costa de Marfim, as Caraíbas, certeza absoluta, mas também temos representante do Timor-Leste, aliás, Zia Soares, de origem timorense, vai fechar a Bienal com o espetáculo “ARUZ FÊMEA”.
Como está sendo feita a organização da Bienal, todos os organizadores estão em Bissau?
A nossa ligação, aliás, faz parte da programação, desde a constituição da coordenação, porque somos cinco curadores, alguns elementos da Secretaria, fazemos parte da coordenação, somos constituídos entre as pessoas que estão na Guiné, e as que estão na diáspora. O Nu Barreto está cá. Sim. A Karyna está cá.
Aliás o Nu Barreto, que está na curadoria de Artes Plásticas, vive cá, vive em França. A Karyna Gomes, na curadoria da Música, vive em Portugal, em Torres Vedras. O Welket Bunguê, que está com a curadoria de Artes Performativas e de Imagem e Movimento, que vive entre Lisboa, Berlim e Rio de Janeiro. E é reflexo da diáspora. Então temos esses três elementos que vivem completamente cá na diáspora.
De Bissau estou eu, está o Miguel De Barros e está a Zaida Pereira, que está com a curadoria da literatura. Ou seja, metade está fora do país, a outra metade está na diáspora. Essa nossa preocupação também se vê muito na programação. Muitos guineenses ou de outras nacionalidades que vivem na diáspora estão a levar a sua arte agora para Bissau. E também temos a preocupação dos artistas locais que vão apresentar a sua arte em Bissau.
Uma das coisas muito boas, que não é Bienal, mas é a fundação, tem a ver com o nosso movimento social de promover uma certa transformação cultural, tem a ver com o seguinte, nós estamos a criar condições para daqui a curto prazo termos um polo cultural erguido em Bissau. Ou seja, em Bissau o que existe até aqui são centros culturais com o apadrinhamento de alguns países parceiros e amigos da Guiné-Bissau.
Temos o Centro Cultural Brasil Guiné-Bissau, temos o Centro Cultural Franco-Bissau-guineense, temos o Centro Cultural Português. Nós queremos criar aqui um centro cultural, uma morança da cultura de Bissau, que irá acolher depois estas disciplinas todas, ou seja, queremos ter ali um museu, não só digital, mas um museu da arte contemporânea, queremos ter uma biblioteca com especialização na arte, nesse espaço estamos a projetar ter um espaço de apresentação de espetáculos, não só um espaço interior, mas também um polivalente, que dê para múltiplas disciplinas, para múltiplas apresentações, e estamos a prever também sala de espetáculo fechado, porque como eu disse, o país tem uma época da chuva que é capaz de chegar a seis meses, durante esse período é muito difícil organizar atividades culturais e não temos salas muito condignas.
A nossa maior sala de espetáculo de edição leva duzentos e poucas pessoas e que não tem condições básicas. Infelizmente é a sala mais apetrechada que temos – dentro das limitações existentes. A ideia é conseguir fazer uma coisa não só maior, mas que tenha sido, de facto, pensado desde o início para apresentar espetáculos.
A última pergunta é qual o significado da palavra Mandjuandadi?
Mandjuandadi significa literalmente encontro de colegas. No entanto, soliologicamente, se quisermos, Mandjuandadi significa encontro de vontades, de elementos identitários, de valores que passam pela solidariedade de de muita amizade. Por outro lado, também significa um espaço de partilha, porque Kriol tem essa riqueza. Tem vários significados na questão do mandjua. O mandjua, no sentido literal, significa pessoas da mesma idade. É mandjua. Colegas. Mas os colegas podem não ser só colegas de idade, podem ser colegas de trabalho, colegas de andanças, não são colegas nesse sentido.
Agora, quando estão em Mandjuandadi é partilha de mais coisas, sobretudo das identidades. Alguma coisa que nos une e que nos faz as Mandjuandadi, por exemplo, a música da Tina, que é uma das formas de fazer música da Guiné, toda a gente conhece como Música de Mandjuandadi, que são pessoas que partilham determinadas referências culturais, que se juntam e através da música vão se expressando. Mas os grupos de Mandjuandade, são grupos sociais de apoio mútuo.
Imagina, nós os dois pertencemos a uma Mandjuandadi. Em período específico, os colegas se juntam para me apoiar ou para te apoiar. Imagina que vais-te casar, o grupo se junta para apoiar-te no processo de casamento. Quando chega o momento da maternidade, o grupo se junta e apoia-te, mas junta e apoia-te financeiramente.
Um dos momentos mais importantes nas culturas africanas, o momento do desgosto. O grupo se junta. Tu nunca tens o processo do desgosto sozinho. Uma Mandjuandadi se junta para te apoiar nesse processo. Então uma Mandjuandadi tem muito disso, um grupo de solidariedade para te ajudar a viver basicamente momentos de tristeza mas momentos também de muita alegria. É liberdade, porque a nossa liberdade está muito ameaçada. É preciso juntar, basicamente o que nos fez juntar, nós juntamos em Mandjuandadi há três anos. O que é que nos juntou? É o país, um certo percurso que o país precisa e num domínio muito concreto, que são as artes e a cultura.
Então queremos expressar essa forma de ver o mundo e o país através da arte e da cultura, mas de forma comum. É Mandjuandadi é irmandade, é harmonia.
Para ter mais informações a Bienal, acesse: https://bienalmoacbiss.org/