Por Jamil Chade
Nos últimos dias, a morte de Henry Kissinger reabriu o debate sobre seu legado para a diplomacia, para a arquitetura do poder e para o destino de milhões de pessoas pelo mundo.
Homem forte da política externa americana por anos e conselheiro de doze presidentes dos EUA, Kissinger acumulou um poder que poucos diplomatas jamais sonharam em ter. Se parte de seu foco era a relação entre as duas superpotências – EUA e URSS – a realidade é que suas ações tiveram um profundo impacto no Brasil – com um apoio explícito ao regime militar – e no mundo em português.
A Revolução dos Cravos, por exemplo, foi um momento no qual o diplomata considerava que o equilíbrio de forças entre a Casa Branca e o Kremlin na Europa poderia ser abalado, com um eventual governo de esquerda em Lisboa. Não faltaram ainda viagens, como a que ocorreu para agradecer Marcelo Caetano, sob o regime salazarista, por ter permitido o uso de Açores por parte das forças americanas como uma ponte aérea para Israel, na guerra de Yom Kipur.
Em outras partes do mundo, sua atuação determinou o futuro de conflitos. Um deles foi o Timor Leste. Segundo os documentos do Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, o governo indonésio lançou sua sangrenta invasão do Timor Leste em dezembro de 1975 com a concordância do presidente Gerald Ford e do então secretário de Estado Henry Kissinger.
Cerca de 200.000 timorenses morreram durante os vinte e cinco anos de ocupação.
Naquele mês de 1975, Ford e Kissinger se reuniram com o então presidente indonésio Suharto durante uma breve escala em Jacarta, enquanto voltavam de Pequim. “Cientes de que Suharto tinha planos de invadir o Timor Leste e que a invasão era legalmente problemática –em parte devido ao uso pela Indonésia de equipamentos militares dos EUA que o Congresso havia aprovado apenas para autodefesa– Ford e Kissinger queriam garantir que Suharto agisse somente depois que eles retornassem ao território dos EUA”, afirmou a Universidade, ao publicar os dados.
“A invasão ocorreu em 7 de dezembro de 1975, no dia seguinte à partida deles, resultando na ocupação violenta e sangrenta do Timor Leste por um quarto de século. Henry Kissinger sempre negou que tenha havido qualquer discussão substancial sobre o Timor Leste durante a reunião com Suharto, mas um telegrama recém-desclassificado do Departamento de Estado de dezembro de 1975 confirma que essa discussão ocorreu e que Ford e Kissinger aconselharam Suharto que ‘é importante que tudo o que você fizer seja bem-sucedido rapidamente'”.
Outro pedido de Kissinger para Suharto foi para que a invasão ocorresse depois que a delegação americana já estivesse nos EUA. Jacarta atendeu ao pedido.
Naquele reunião, Kissinger ainda disse a Suharto que o uso de armas fornecidas pelos EUA na invasão –equipamento que, de acordo com a lei dos EUA, não poderia ser usado em operações militares ofensivas– “poderia criar problemas”, mas indicou que eles poderiam “interpretar” a invasão como autodefesa.
Seis meses após a ocupação do Timor Leste, Kissinger reconheceu aos altos funcionários do Departamento de Estado que a ajuda militar dos EUA havia sido usada “ilegalmente” e deu a entender suas próprias dúvidas sobre a invasão.
Pelas contas do historiador da Universidade de Yale, Greg Grandin, entre 1969 e 1976, a política externa de Kissinger foi responsável por 3 a 4 milhões de mortos.
E poucos lugares sentiram esse impacto de forma tão clara como Angola. O país caminhava para sua independência e o novo governo português e os três movimentos angolanos concordaram que um governo de transição ficaria no poder até a a independência, em 11 de novembro de 1975.
Não deu tempo. Antes disso, a guerra civil e, um ano depois, África do Sul e os Estados Unidos começaram a fornecer à FNLA e à UNITA armas e instrutores militares para esmagar o MPLA.
E foi nesse envolvimento americano que Kissinger seria peça central. Parte do governo americano era contra o envolvimento de Washington em Luanda, argumentando que o MPLA não ameaçaria os interesses dos EUA. Kissinger, porém, optou pela guerra e convenceu o presidente Ford a aderir.
No final de junho de 1975, Kissinger, Ford, o secretário de Defesa James Schlesinger, o general David C. Jones, do Estado-Maior Conjunto, e o diretor da CIA, William Colby, realizaram uma reunião do Conselho de Segurança Nacional na Casa Branca para discutir a situação em Angola. No encontro, Kissinger explicou que se Washington apelasse aos soviéticos para não serem ativos em Angola, “isso será um sinal de fraqueza”.
Mas o motivo pelo qual o diplomata envolveu os americanos no conflito não era estratégico. Sua gestão estava sendo humilhada pelos resultados no Vietnã, com um profundo impacto para a imagem de superpotência dos EUA.
Assim, uma vitória em Angola restabeleceria o status americano e o preservaria dentro do establishment de Washington. Assim, ao lado do regime do apartheid da África do Sul e de ditadores como Mobutu Sese Seko, Kissinger passou a ajudar os grupos armados em Angola.
Por sua ordem, a CIA forneceu mais de 22 milhões de dólares em apoio secreto à FLNA e à UNITA até o outono de 1975. Os planos de Kissinger para Angola culminaram na operação secreta da CIA, a IAFEATURE, criada para lançar secretamente um programa paramilitar contra o MPLA.
Profundo desconhecedor da realidade africana, o americano acabaria se surpreendendo diante da resistência do MPLA, do apoio popular e do desembarque de milhares de tropas cubanas.
Kissinger, uma vez mais, perdeu. Mas aquele envolvimento americano levou a guerra a se arrastar por anos. O saldo? 500 mil mortos.
Anos depois, Nelson Mandela, destacaria que a guerra angolana, com o envolvimento cubano, “destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco… [e] inspirou as massas lutadoras da África do Sul”. Segundo ele, aquilo foi “o ponto de virada para a libertação de nosso continente – e de meu povo – do flagelo do apartheid.”
Em uma reunião entre o Conselheiro Secretário dos EUA Helmut Sonnenfeldt e o Secretário Geral da OTAN Joseph Luns em maio de 1976, Angola foi apontada como uma das principais razões pelas quais o continente africano se radicalizou e por que a fé no Ocidente estava em declínio.
Na Ásia, na Europa, África ou América Latina, Kissinger moldou parte do mundo. Suas consequências ainda estão presentes nas relações de poder.
Apesar dos 100 anos de vida, não houve tempo – ou vontade política – para que a Justiça desse uma resposta. Resta garantir que a história seja contada de forma integral, descolonizada e honesta.