Não basta querer requalificar os consulados, é preciso saber fazê-lo

Por Acácio Pereira

A vocação de cônsules e embaixadores para gerirem os serviços que têm sob a sua direção é pouca ou nenhuma. De pouco serve ter boas intenções políticas, quando não se tem a noção de quais são os recursos e as competências reais da máquina do Estado.

Centro de emissão de vistos da embaixada de Portugal | Foto: Ampe Rogério/Lusa

“A imigração é um fenómeno da democracia portuguesa”, sublinhou, há cerca de um ano, o ensaio “Uma imigração em vias de diversificação e com uma forte componente de irregularidade”, da autoria de Rui Pena Pires, Cláudia Pereira e Alejandra Ortiz, docentes e investigadores no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. O ensaio fez parte de “O Estado da Nação e as Políticas Públicas”, a publicação anual do ISCTE que, em 2023, foi dedicada às “Reformas Estruturais”.

Meramente residual durante o Estado Novo, a população estrangeira residente passou de 51 mil indivíduos em 1980, para mais de 800 mil em 2023. São 8% dos habitantes de Portugal, provavelmente mais. A sua principal origem é o Brasil, com mais de 300 mil cidadãos, seguido pelo Reino Unido, Cabo Verde, Itália e Índia. Revelou no início de agosto o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, que em 2024 a comunidade alemã é das que mais têm crescido em Portugal – um fenómeno impensável até há pouco tempo. Na concessão de títulos de residência a imigrantes há, porém, um indicador que tem resistido ao passar das crises: um quarto dos estrangeiros está no país de forma irregular.

Sabe-se como o problema se agravou em Portugal de há um ano para cá, com a incapacidade da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) para substituir e recuperar os atrasos de um SEF que sucessivos governos condenaram ao desinvestimento nos últimos anos de vida. As filas à porta das instalações da AIMA, e o desespero e a revolta dos muitos imigrantes que lá estavam, são uma das imagens marcantes do ano de 2024. 

Perante esta realidade, o Governo de Luís Montenegro preparou e apresentou o Plano de Ação para as Migrações, o qual tem inegáveis qualidades: são positivas as intenções de regular a imigração que nos chega, orientando a reorganização institucional para a integração humanista de quem quer viver em Portugal. Há um ponto fraco, todavia – a extinção das manifestações de interesse. O país não deve ficar sem um mecanismo legal para registar trabalhadores estrangeiros que, de mau grado teriam entrado à margem das regras, se empregaram rapidamente e se integraram.

Defende o Governo – tal como o estudo do ISCTE apresentado há um ano também defendia – que o problema documental dos imigrantes tem de ser resolvido na origem. A requalificação urgente dos consulados é, por isso, uma das reformas estruturais de que Portugal mais precisa.

O problema é que, nesta matéria, não vale a pena iludir a realidade: a vocação dos cônsules e dos embaixadores para gerirem bem os serviços que têm sob a sua direção é, em geral, pouca ou nenhuma. Como o papel aguenta tudo, os sucessivos programas eleitorais dos principais partidos (PS e PSD), assim como os programas de Governo apresentados na Assembleia da República, têm dedicado imenso texto à reforma dos consulados, agilização de procedimentos, melhoria de recursos humanos, etc…

A verdade é que, em países emissores de grandes volumes de emigração para Portugal (da Ásia, por exemplo), a qualidade do trabalho diplomático e consular português nesta matéria é muito fraco. Destaca-se pela positiva o Consulado de Macau, com um excelente desempenho nos últimos anos da responsabilidade do cônsul Alexandre Leitão. E pouco (ou mesmo nada) mais. 

Como as instituições por regra não têm capacidade para se autorreformarem e o Ministério dos Negócios Estrangeiros não tem vocação para liderar esta reforma, é fácil antever o resultado deste capítulo do Plano de Ação para as Migrações apresentado pelo ministro António Leitão Amaro: vai falhar. Ou seja: a situação dos imigrantes irregulares vai piorar e iremos assistir a um aumento exponencial de imigração ilegal e de tráfico de seres humanos em Portugal.

O problema é da mesma natureza do que está na origem das dificuldades atuais da AIMA: de pouco serve ter boas intenções políticas, quando não se tem a noção de quais são os recursos e as competências reais da máquina do Estado. E quando muito menos se tem capacidade para gerir essa mesma máquina e transformá-la no sentido da eficiência numa matéria tão particular, e melindrosa, como a documentação, controlo e integração da imigração.

Boa sorte! Mas não contem com milagres.