Me aceite como sou: Psicodália um dos únicos festivais independentes no Brasil

Por Samantha Buglione

Samantha Buglione e Mateus Aleluia no Festival Psicodália.

O Psicodália é talvez o último grande festival independente a circular pelo mundo, isso significa  ser realizado integralmente a base de bilheteria, voluntariado e loucura. Sim, afinal, quem dedica tanto tempo e energia para um risco e pelo apreço a independência?

Arriscar parece ser cada vez mais da ordem da loucura, um ato de confiança sem qualquer  garantia. É saber que não há um nexo direto entre o pensado e o resultado dos feitos, mas fazer e fazer da melhor forma possível cuja garantia é exclusivamente a experiência,  fundada na expertise, em muito trabalho e num tantinho de sorte. Confiar é quase um super poder.

Meu filho mais velho sempre me pergunta qual super poder eu gostava de ter. Diria que gostava de um tipo que me foi dito por Mateus Aleluia quando no auge da minha tietagem eu o chamei de “menino Mateus” confessando que meu coração não aguentava a beleza de estar ali pertinho proseando com ele, além do show.

– Coração aguenta sim, menina, ele me disse, estamos aqui para isso, desiste não, continuou.

– Desistir de que, menino Mateus?

– Das importâncias menina, das importâncias.

Gostava de um coração que aguentasse, super poder necessário sem duvida. E de não desistir das minhas importâncias, mas antes saber quais são. Menino Mateus sabe e canta “me aceite como sou”. E isso talvez seja o maior dos riscos: o aceite.

O risco é uma medida de fé para as importâncias. É abrir mão dos conseguires e segurar com toda a força destes corpos humanos finitos os tentares. É dizer para si em alto e bom tom e para o mundo “despreconceituosamente eu vou vivendo a minha vida, não me importa a cor da pele, não me importa a cor da ida, não me importa a cor da volta, é bonita porque estou…”. Estar! Estar inteiro e disponível para si, para alguém ou para uma importância, como o Psicodália faz para a arte, é um ato revolucionário.

É o poder existir, como bem disse Felipe Catto, “o Psicodália é um lugar de muita inspiração onde as pessoas podem conviver de verdade, eu tô aqui como artista, mas vim passar o som e tomei um banho de rio, é essa relação horizontal entre o publico e os artistas feita de forma muito agregadora para todo mundo, isso é inspirador e nos permite existir”.

Depois do show de Mateus Aleluia cuja capacidade de nos fazer chorar independemente do lugar que estamos (se na frente do palco ou no backstage) fui para a pista. A filha de Glauber Rocha, Ava, uma entre os mais de 20 artistas que subiram o palco, performava; pensei comigo “ela pode”. Sua música “Joana D’arc” faria a militância conservadora erguer seus rosários ou seus livros sagrados de tradução duvidosa. Já eram mais de 23h, crianças estariam dormindo em alguns dos campings muito bem sinalizados e organizados, ou estariam no teatro ou no cinema ou em alguma recreação pensada exclusivamente para elas. Mas não havia crianças. Uma ação do Ministério Público da Comarca de Urubici de Santa Catarina levou à proibição de menores numa interpretação do direito que parece ignorar princípios básicos da boa hemenutica (e falo do tranquilo lugar de quem já publicou, estudou e deu muito aula disso nas faculdades de direito; então, data venia Ministério Publico, vossas importâncias sobre como cuidar das crianças, bem como as referências interpretativas para a leituras dos canones jurídicos merecem ser revistas pelo bem publico).

O fato é que data venia minha falta de modos (gostei de resgatar a expressão) o moralismo tem um imaginário fértil. Onde há alegria há perigo para o moralista. Pais, mães, avós e filhos juntos dançando e brincando é tão disruptivo e perigoso que precisamos criar abandonos. Mais seguro uma criança sozinha diante de uma tela ou com algum parente de carinho duvidoso; “mas é da família” dirão ignorando os dados oficiais de abuso deste país.

Temos medo da alegria porque ela nos acorda para nossas práticas sem sentido. Diante de uma alegria percebemos o que  gostamos, mas, também, o que desgostamos e o que não queremos mais. A vida pode ficar insuportável quando conhecemos alguns prazeres, quando encontramos um amor disposto a dançar conosco, como viver sem? Não precisa. É possível viver com. É o gesto de confiar sem garantia. Por isso há tanto medo no risco. Medo da dependência, medo de perder, medo daquilo que se desvela nos processos. Medo de se perceber preso às ideias de ordem e progresso do velho positivismo seco, higiênico de soltados obedientes. Viver mesmo é provoca-ação

O festival Psicodália tem algo de pedagógico também. Perceber que todos os tempos e idades podem conviver harmoniosamente causa espanto. Sinceramente entendo a promotora de Urubici, afinal, viver não é para qualquer um, a maioria está a vagar pela terra sob comandos alheios e convencidos em demasia dos certos sem espaços para as perguntas. Seu Adelino não. Na flor da idade dos seus 75 anos estava lá com Sandrinha a acampar, a dançar e a assustar os netos e os filhos (alguns, com certeza mais velhos que ele). E dançavam ao som da voz potente de Jussara Marçal que parecia um grito de guerra contra a normopatia, uma mulher negra de cabelos coroa e de uma beleza singular. Nunca ouviu? Ouça.

Entre a pista e o lugar privilegiado de poder estar no backstage, os detalhes se revelam. O backstage, o fundão, não se reduz ao palco. Num festival como esse envolve mais de 400 pessoas, e com várias estruturas montadas, do RH ao Biodália. Com cerca de 30 pessoas o Biodália faz uma arquitetura invejável de cuidado com os resíduos. Tudo, absolutamente tudo, se transforma. A expectativa é de mais de 2 toneladas de coco, merda mesmo, fezes, dos 50 banheiros secos do festival, serão compostadas, inclusive com uma parceria com pesquisadores da UFSC.

Seria essa a merda que o Ministério Publico acha perigoso para crianças e adolescentes terem acesso?

Cerca de 3 toneladas de resíduo entre orgânicos e reciclados cuidados e devidamente encaminhados. Um festival preocupado com a natureza do impacto que quer deixar. Ninguém ali terceiriza a merda feita. E sim, to falando “merda, merda, merda” porque precisamos falar da merda e entender urgentemente que o que estamos a chamar de merda parece não ser bem o problema.  Quais são as chances de crianças e jovens conhecerem e experenciarem uma estrutura autosustentável de fato? Fala-se em aquecimento global e agenda 2030, mas na prática o que conhecemos e o que é feito? É preciso aprender com quem faz.

Merda mesmo é a alienação já chamada de banalidade do mal por Hannah Arendt lá em 1961 quando estava sentadinha vendo o Eichmann sendo julgado por seus crimes nazistas. No Psicodália quem cuida da merda ganha mais do que aquele que tá ali “engravatado” no caixa (contém ironia). Essas inversões causam desconforto às estruturas e para quem esta acostumado com as hierarquia convencionais. E não se trata de trocar seis por meia dúzia, mas de remanejar importâncias, equalizar e entender que as diferenças devem ser percebidas para se garantir  igualdade. Um festival desses deve dar lucro sim e quem o faz ganhar muito dinheiro, ao menos é o que deveria acontecer, afinal ele gera renda direta e indireta para mais de 400 pessoas para os artistas e toda sua malta, além dos efeitos no turismo para a região e para cooperativas de reciclagem de resíduos e muitos etcs.

Cercear o acesso de crianças a um evento como este é violar o direito fundamental à educação de qualidade que não se reduz as carteiras escolares. Da mesma forma que cultura não é “Pepa Pig”.

Estamos falando do impacto da arte que vai além da música. A arte ensina a ver o mundo. É Chico Cesar a cantar “deus me proteja de mim e da maldade de gente boa, da bondade da pessoa ruim…”. Precisamos, portanto, trocar as lentes vez ou outra e sim, falar da merda. E o quanto espaços de encontro são necessários para se poder conviver de verdade e com verdade.

Talvez esse seja o super poder que meu filho tanto me questiona e me parece tão bem dito na postura de artistas como Mateus Aleluia cuja ação no mundo não exclui a complexidade dos afetos e amores. Sua Rosa estava lá com ele, ela,  a rosa da música Fogueira Doce, o fogo que aquece sem queimar, sua parceira. “Eu sou roseiro e é Rosa e basta”, canta Mateus. É preciso perceber que independência não é estar só, protegido das relações, ou fazer tudo sozinho, mas é poder ser verdadeiramente e na totalidade do que somos, incluindo nossas merdas, e isso ser acolhido. É poder pedir e ser ouvido.

Sem backstage não há show.

Sem ajuda não há destino. Me parece que isso está na envergadura de festivais como o Psicodália. Pão e Circo nunca fizeram mal, é a lógica do sofrimento e do pecado que cria dinâmicas de dominação porque disseminam a culpa, e o medo e um sentido de responsabilidade equivocado. E isso paralisa e nos leva a querer mais segurança e controle do que risco e autonomia. A ação do Ministério Publico, data venia, aparentemente muy responsável, não agrega, cria rupturas e alimenta preconceitos. “Quem quer o bem em demasia faz o mal por principiar” já dizia Guimaraes Rosa.

Há algo nos pecados que nos salvam, e não são as penitencias. É preciso ser livre para pecar, eis o paradoxo. A alegria é revolucionária.

Texto de opinião no qual o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir de interpretação de fatos e dados.
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