Cultura cinematográfica no país africano tem papel de desenvolvimento sócio-político
Por Igor Xanthopulo, Moçambique
Os coloridos das paisagens e das culturas africanas da costa índica tropical são matéria prima de alta qualidade para a sétima arte. Em Moçambique, a capital cosmopolita e vertical – Maputo, a famosa Cidade das Acácias – interage vida urbana com modos ancestrais na forma de se cozinhar, produzir e viver. Já o meio rural comporta planícies, montanhas e mares nos quais dezenas de povos distintos habitam, somados à chegada dos asiáticos e dos ocidentais nos últimos séculos. Como substância de linguagem artística, o cinema moçambicano tem a seu favor a expressividade da vida bantu: as cores dos vestuários, a musicalidade das línguas, o dinamismo dos corpos, a experiência dos hábitos e costumes, os símbolos que identificam os valores comunitários.
Entretanto a constante falta de recursos materiais leva os criadores do cinema moçambicano a adaptarem-se a situações novas, construindo uma cultura audiovisual própria e de ressonância internacional. Em muitos contextos ao redor do globo, a cultura cinematográfica tem abarcado uma série de dimensões da vida social e econômica. O caso de Moçambique não é exceção; muito pelo contrário, como mostra a obra antológica Os Moçambicanos Perante o Cinema e o Audiovisual, organizada por Guido Convents. O historiador de cinema explica que “o cinema faz parte do patrimônio cultural de Moçambique” (Convents, 2011, p. 25), levando em conta os seus produtores, realizadores e exibidores.
Desde a chegada das técnicas de produção de filmes à vizinha África do Sul, em 1896, o papel e a função da produção audiovisual sofreram muitas transformações em solo moçambicano. Convents sublinha a importância dos cineclubes como lugar de resistência à política da época colonial, formando as bases do cinema nacional. Além disso, às vésperas da queda do regime metropolitano português, uma presença significativa de produções paquistanesas, indianas, chinesas e latino-americanas exercem cada vez mais influência no imaginário da classe artística do país.
Cinema do governo revolucionário
Após 1975, durante os primeiros quinze anos da república socialista, o cinema ganha um lugar privilegiado na política oficial do governo revolucionário. Quer na produção, quer na exibição, a independência impactou a programação de filmes na cidade e no campo, promovendo a ideia da edificação de um “novo mundo”. A difusão da doutrina política veiculada pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) transmite a mensagem do homem novo – politizado, empenhado e solidário – dispondo dos recursos audiovisuais como os meios mais eficazes para se atingir a consciência das massas populares de norte a sul. Entre 1978 e 1986, por exemplo, uma espécie de periódico audiovisual – o Kuxa Kanema – é produzido. Notava-se, ao mesmo tempo, um amplo incentivo ao desenvolvimento do cinema ficcional, integrando ativamente ao ambiente político e artístico do período grandes diretores e produtores de filmes, como Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean Luc Godard.
A ênfase das políticas estatais no cinema se dissolve paulatinamente a partir da segunda Constituição de Moçambique, de 1990, que liberaliza os mercados em suas fronteiras, incluindo o cinematográfico. No ano seguinte, 1991, o Instituto Nacional de Cinema sofre um incêndio que interrompe as suas atividades, ao passo que novas estruturas de produção e exibição de filmes surgem no país, atreladas ao advento das tecnologias digitais, que modificam terminantemente a cultura audiovisual. Entre as associações cinematográficas nacionais do contexto histórico do pós-guerra, destaca-se a Associação Moçambicana de Cineastas (AMOCINE), cuja sede se encontra atualmente nas instalações do Instituto Nacional das Indústrias Culturais e Criativas (INICC), em Maputo.
Numa entrevista presencial nos estabelecimentos da AMOCINE, o secretário-geral da associação, Gabriel Mondlane, narra como a sua biografia se entrelaça no percurso da arte audiovisual de seu país. Nascido no distrito de Chicualacuala, na província de Gaza, ele guarda na memória as atrocidades das guerras que afligiram a vida de dezenas de milhões de moçambicanos. De acordo com suas palavras, “as guerras e conflitos passam por nós e, portanto, passamos aquilo que vimos e vivemos para os filmes.” Ele sabia pouco sobre cinema na infância, mas se lembra de que, durante a sua juventude, seus amigos se reuniam com o intuito de escolher um afortunado que era custeado pelo grupo, através de um rateio, para assistir a um filme ocidental, chinês ou indiano em cartaz no Cinema Império, compartilhando os acontecimentos da história que assistira com os demais.
Após a independência, ainda em fase de conclusão de estudos, ele foi escolhido por agentes do governo para trabalhar no Instituto Nacional de Cinema, no qual aprende a operar a sonografia de filmes. A partir de 1978, começa a acompanhar os trabalhos do então presidente Samora Machel, fazendo a cobertura dentro e fora do país dos acontecimentos sociais e políticos em curso. Sobre essa época, ele afirma que teve bastante sorte, pois conserva na pele apenas duas cicatrizes de balas e acrescenta: “Nossa casa era o cinema, trabalhávamos noite e dia”. Mondlane explica que a liderança estatal percebeu na altura que a técnica do cinema consistia na forma mais eficiente para se propagar as políticas da FRELIMO. A principal razão era que a maioria das pessoas não sabia ler e escrever e ainda havia aqueles que não estavam sequer bem informados sobre a vitória do novo governo negro e das diretrizes de um governo nomeadamente marxista-leninista.
Interação entre grupos étnicos
Segundo o cineasta, um fator positivo dos projetos audiovisuais da época revolucionária, como dos Kuxa Kanemas, foi a percepção de uma interação com outros grupos étnicos do país, já que no tempo colonial não se tinha a real noção da existência de tantos povos abrigados no território nacional. Ele afirma que “do ponto de vista cinematográfico, cultural e geográfico, percebe-se que Moçambique era um mosaico social enorme que dividia preocupações em comum”. Em certa medida, o entrosamento da política com o cinema viabilizou aos mentores da governação fazer consertos nas suas ações, por meio dos termos e opiniões populares que vinham recolhendo. Por outro lado, por um viés mais negativo, não havia independência artística, pois o cinema era moldado a um espaço de pensamento de intervenção intelectual: “Tudo que se dizia estava previamente filtrado de acordo com a política do dia”.
Na década de 1990, quando o cinema deixa de ser prioridade no programa de governo, aparecem novas produtoras mais ousadas que estavam fora do controle estatal, como a Ébano, a Promedia e a Íris Produções. Nesse ínterim, Gabriel Mondlane vai estudar roteiro e direção de cinema por meio de uma bolsa de estudos da UNESCO no Zimbábue, onde também produz e dirige diversos filmes como Pause in life (1992), Stone of Zimbabwe (1993), Chicualacuala –Terra Agonizada (1997), entre outros. Retorna a Moçambique em 2002, integrando-se à AMOCINE, lecionando aulas de história do cinema africano e realizando outros tantos filmes baseados na experiência das identidades moçambicanas.
Novos caminhos
Mas, e na atualidade, para onde caminha o cinema moçambicano? Autora da pesquisa A produção audiovisual moçambicana de 2010-2019: patrimônio cultural e identidade nacional em Moçambique na atualidade” (2022/UFV-MG), a produtora de cinema Júlia Alves responde que um contributo cultural do audiovisual moçambicano mais recente é a construção de uma ampla diversificação de narrativas sobre a realidade social. Ela salienta, inclusive, os diferentes métodos de produção e de financiamento aplicados, pois “num contexto de pouco apoio governamental para a produção cultural, o apoio estrangeiro acaba sendo um fator importante de viabilidade das produções”.
Apesar das adversidades de mercado, Júlia Alves considera admirável os agentes culturais conseguirem “produzir um cinema pulsante e diverso que rompe o campo do institucional e das obras por encomenda”. São as múltiplas perspectivas das biografias e identidades da sociedade que confere a tonalidade do audiovisual contemporâneo. A cineasta afirma que “essa multiplicidade é muito importante e extremamente enriquecedora quando pensamos a produção cultural, em especial, os cinemas nacionais, que há muito tempo são compreendidos como uma ferramenta chave para a construção de identidades nacionais ao redor do globo”.
Um fator se torna comum nas falas do cineasta moçambicano e da cineasta brasileira: a contribuição do cinema nacional em prol da cidadania. Júlia Alves aponta que tanto no documentário social quanto na ficção e na animação “é possível vislumbrar que ainda está presente uma ideia da identidade moçambicana como a que foi construída após a Independência”. Por sua vez, Gabriel Modlane, cuja família paterna provém de Manjacaze, onde nasceu o fundador da nação independente, Eduardo Mondlane, sinaliza sua angústia diante da falta de divulgação das etapas históricas do país às novas gerações.
Para o diretor de cinema, a ruptura com o passado e a ausência de um debate atualizado sobre a história política de Moçambique podem ser nocivas às direções tomadas pelos gestores de hoje, já que “apanharam o barco a andar e não sabem quando o barco entrou no mar”. Ele acredita que os filmes nacionais seriam um meio de conhecimento valioso do passado, documentando o que houve de bom e ruim e sensibilizando as pessoas a um futuro mais comunitário.
Menções bibliográficas
CONVENTS, Guido. Os Moçambicanos perante o Cinema e o Audiovisual: Uma história político-cultural do Moçambique Colonial até a República de Moçambique. Holsbeek/Maputo: Africa Filmfestival/Ébano Multimédia, 2011.