Chuvas e ciclones no Sul incrementam a dívida ecológica do Norte global
Da Redação.
A área de destruição do ciclone “Freddy”, que passou por Moçambique nos meses de fevereiro e março de 2023, foi de 43 estádios do Maracanã (8 hectares), localizado no Rio de Janeiro, ou seja, 347,862 hectares de área foram devastados nas províncias de Zambézia, Sofala, Nampula e Manica, com epicentro no distrito de Namacurra, localidade de Macuze.
Estima-se que mais de 800 casas tenham sido destruídas, além de 14 unidades sanitárias danificadas. O ciclone provocou mais de 100 mortes de 24 de fevereiro até meados de março deste ano em Moçambique. Esta é uma das tempestades mais duradouras de sempre, depois de se ter formado no início de fevereiro no nordeste da Austrália, ter atravessado o sul do oceano Índico e atingido Madagascar em 21 de fevereiro, antes de chegar a Moçambique.
No Brasil, também verão no hemisfério sul, chuvas intensas assolaram várias cidades nas regiões Norte, Sudeste, Sul e Centro Oeste do país. Seis estados estiveram em alerta vermelho para risco de grandes alagamentos, transbordamentos de rios e deslizamentos de encostas: Bahia, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Acre.
O Estado de São Paulo registrou o mês de fevereiro como o 3º mais chuvoso em 81 anos, acumulando 428,9 mm. O valor ficou 66 % acima da média histórica para o mês (Normal Climatológica 1991 a 2020), que é de 257,7 mm. As enchentes e deslizamentos de terra no Litoral Norte de São Paulo em 20 de fevereiro de 2023 estiveram nas manchetes ao redor do mundo: em apenas 24 horas choveu 683 mm – a maior média na história do Brasil.
Esses fenômenos extremos, que são cada vez mais frequentes e intensos, estão relacionados com o aumento da temperatura média dos oceanos e da atmosfera causado pela intensificação na emissão de gases de efeito estufa – dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) – provocados pela ação humana quanto no que diz respeito à queima de combustíveis fósseis para gerar energia, como pelo desmatamento para expansão das atividades agrícola e mineradora e aumento da exploração dos recursos naturais pela procura por matéria-prima.
Porém essa ação humana não tem uma reação exatamente equivalente nos dois hemisférios do planeta. Nos países em desenvolvimento do Sul Global (África; América Latina, exceto Brasil; e Caribe; Ásia, exceto China; e Oceania) o total de emissões per capita é de menos de uma tonelada de dióxido de carbono por pessoa – Moçambique: 0,78 t; São Tomé e Príncipe: 0,72 t; Guiné-Bissau: 0,79. Já nosnos países industrializados, como Estados Unidos, China e Rússia, esses valores são até 30 vezes superiores.
Os dados de 2019 são da base de dados Carbon Dioxide Information Analysis Center. Tais números comprovam as desigualdades existentes entre os países do Norte e Sul global e remete ao conceito de dívida ecológica que os países mais industrializados têm com os menos industrializados. Isso porque fenômenos climáticos extremos são cada vez mais recorrentes em várias partes do mundo, contudo, os danos provocados por esses eventos climáticos são ainda maiores nos países do Sul Global porque são as regiões mais sujeitas a furacões, inundações e à desertificação, além do que dispõem de menos recursos para se defenderem e têm uma economia que se baseia em larga medida no setor primário.Entre os 10 países mais vulneráveis ao clima, 7 estão na África, no entanto esse continente contribui com menos de 4% para os níveis globais de emissões de gases de efeito estufa.
O Climate Inequality Report de 2023, produzido pelo World Inequality Lab Study, aponta que mais de 780 milhões de pessoas em todo o mundo estão atualmente expostas ao risco combinado de pobreza e graves inundações, principalmente em países em desenvolvimento. No Sul global, alguns territórios são significativamente mais pobres hoje do que seriam na ausência da mudança climática. Essa tendência deve continuar e resultar em perdas de renda de mais de 80% para muitos países tropicais e subtropicais até o final do século XXI. Estima-se que as perdas de renda decorrentes dos riscos climáticos dos 40% mais pobres sejam 70% maiores do que a média nos países de baixa e média renda. A respeito das soluções, o Acordo de Paris de 2015 aprovou, no âmbito das Nações Unidas e da Convenção Quadro, uma ajuda dos países mais ricos e mais desenvolvidos aos mais pobres com a quantia de pelo menos 100 milhões de dólares anualmente, a partir de 2020, como pagamento da dívida ecológica. Porém, já se passaram mais de sete anos e sequer metade desta quantia foi paga. Essa meta foi reforçada na COP27 – 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas -, realizada no Egito.
De acordo com Luís Fazendeiro, investigador da Universidade de Lisboa (UA), as populações no mundo inteiro e sobretudo no Sul global que menos fizeram para causar a situação das mudanças climáticas estão realmente a ser impactadas e infelizmente vão continuar a ser durante algum tempo ainda da maneira mais dramática possível. “Portanto, muita da riqueza que separa o Norte e o Sul global também se deve, em grande parte, à exploração dos combustíveis fósseis”, acrescenta.
“A questão da dívida ecológica é super importante, mas essa dívida é algo que já vem de trás”. Os fenômenos climáticos nos países africanos e do sul da Ásia são resultados das grandes emissões de carbono dos países que os exploram. Para o investigador, tais fenômenos são dramáticos. “A intensidade do furacão ou da seca pode ser mais ou menos comparável em termos meteorológicos. Só que, enquanto no Norte Global esses fenômenos atingem algumas dezenas de vítimas, no Sul Global, em que a estrutura é uma ordem de grandeza mais frágil, de repente estamos a falar de milhares ou centenas de milhares numa escala completamente diferente”, finaliza.