A chapa é uma instituição de Moçambique. A van utilizada no transporte público muda de estilo em projeto que leva livros e leitura para todos os lados nas cidades do país
Por Marcelo Ayres
Segundo dados do Ministério da Educação de Moçambique, quase 90% das crianças que entram na escola primária não falam português e o idioma é a língua materna de apenas 17% da população. Após três anos de escolaridade, menos de 5% das crianças são capazes de escrever em português. Além disso, existe o acesso limitado aos livros e à informação, com somente 98 bibliotecas em todo o país.
É neste contexto que a Associação Chapateca está promovendo o acesso ao livro e à informação para as populações das comunidades mais carentes de Maputo e das regiões próximas. O foco de projeto está no desenvolvimento das competências de leitura e de escrita.
O nome Chapateca vem da junção de chapa – van utilizada no transporte público de Maputo – com biblioteca. A Chapateca é uma chapa adaptada com uma biblioteca móvel. Coco Michel fundadora da associação explica que “queríamos criar uma biblioteca móvel que pudesse se deslocar para as comunidades mais remotas”. Coco destaca que nos planos da Associação está o de criar uma rede de bibliotecas comunitárias e “a Chapateca, a biblioteca móvel, nesse caso teria dois papéis: aquele de ir para a comunidades mais remotas ou para comunidades que não tem condições, nem espaço físico, por exemplo, para nós deixarmos recursos lá, os nossos materiais, livros e aquele de servir de ligação entre todas as nossas bibliotecas comunitárias”, conta.
A questão do espaço físico é muito importante, porque segundo Coco, por serem comunitárias “não tem muito material que possamos deixar por causa das condições do lugar, pois quando se fala de livros, se fala de uma sala onde não entra chuva, onde não há humidade e todas essas coisas e além disso, requer um pessoal, não necessariamente formado na área, mas pelo menos um adulto que esteja presente e que possa orientar as atividades ou pelo menos se responsabilizar pelo material, e não são todas as comunidades, nem todos os parceiros que podemos manter este esquema”, completa.
Acesso aos livros e cultura de leitura
“A ideia da Chapateca é vir e dar acesso aos livros, porque também não há uma cultura dos livros. Queremos dar acesso aos livros e deixar as crianças usarem os livros. A Chapateca na verdade é uma boa ferramenta porque o próprio chapa, é um carro, é uma forma, um símbolo, que todas as crianças conhecem. Então também não vão ficar com aquele medo de vir e chegar perto”, conta.
A proximidade com as crianças é um fator fundamental para criar o envolvimento com a leitura. “Quando chegamos tiramos as estantes da chapa, ajustamos um espaço e as crianças escolhem os livros. Nós colocamos uma sombra, esteiras, almofadas. Montamos ali uma pequenina biblioteca, um cantinho de biblioteca”, conta Coco. Segundo ela é a partir deste ponto que a Associação Chapateca implementa as atividades em conjunto com os parceiros.
“Quem simplesmente quer ler, pega um livro senta ali e lê, quem precisa de acompanhamento, nós sentamos perto e acompanhamos na leitura”, explica Coco. “Aqui em Moçambique temos vários problemas a nível da educação. Primeiro o próprio sistema de Educação Nacional, está superlotado. Temos uma população muito jovem e uma geração muito jovem e as escolas não conseguem acolher todas estas crianças”, destaca. Coco explica que por ter uma demanda muito maior que a capacidade de atendimento, as escolas têm turnos de somente 3 horas por dia para as crianças.
Ao turnos começam logo cedo pela manhã, depois o turno de meio-dia e o turno de tarde. “Mas, são três horas apenas! Então atingir resultados passando tão pouco tempo na escola e com professores, não por culpa deles, mas que nem sempre tem uma formação adequada, às vezes são apenas três anos de formação”, reflete Coco.
A superlotação também é um problema enfrentado pelos professores e estudantes em Moçambique, pois eles acabam trabalhando com turmas de 60 a 70 crianças. Coco analisa que dessa forma não se consegue fazer um acompanhamento individualizado, personalizado, das crianças. De acordo com dados do Ministério da Educação de Moçambique, muitas crianças acabam por completar o primário e ainda não sabem ler e escrever. “E temos uma questão que em Moçambique temos 30 línguas locais e isto significa que o português, sendo a língua de ensino e a pré-escola sendo quase inexistente, muitas crianças, quase 90% das crianças entram no primário com 6 anos de idade sem falar o português”, completa.
Leitura como caminho a cidadania
A fundadora da Associação Chapateca ressalta que não há como exigir de uma criança que aprenda, a falar, ler e escrever em uma língua da qual ela não sabe nada. “A ideia da Chapateca é de dar acesso aos livros e criar uma cultura dos livros, mas não só isso, também há os jogos, tudo o que pode ser lúdico para desenvolver todas estas habilidades, seja de leitura, seja de escrita, e com isso gerar um desenvolvimento pessoal”, afirma. Coco destaca que o incentivo à leitura desenvolve a confiança, a falar em público, a cooperação ao montar projetor e ter um espírito crítico. “Não é simplesmente perguntar à criança se gostou ou não gostou de um livro, mas por quê, pois é isto que importa. O porquê. Por exemplo, porque o personagem principal parece alguém da família, porque é um lugar que ela nunca imaginou, entre outras coisas”, completa.
Segundo Coco a leitura é uma competência básica para quebrar o ciclo da pobreza e para ter acesso à informação. Ela dá como exemplo o acesso aos serviços públicos básicos, porque não conseguem se informar ou porque muitas vezes, simplesmente não sabem como preencher um formulário administrativo.
“Tem gente que tem que dificuldade de ler de escrever, e não é sempre fácil ir pedir ajuda de alguém. Então nos bairros, entre as pessoas da comunidade sempre tem alguém que pode ajudar, mas quando se sai dali, tem a questão de vergonha, de orgulho pessoal, e tem gente prefere desistir do que se beneficiar de um serviço que existe ali para ela afinal”.
O projeto da Associação Chapateca, como explica a fundadora trabalha com o lúdico. “Não queremos que as crianças estejam a decorar, assim sem perceber o que estão a decorar, mas que comecem a pensar, que comecem a perceber o que estão aprendendo e isso tudo brincando”, completa.
Processo bilíngue
90% das crianças que entram na escola não falam português, e, o ensino oficial é todo nesse idioma, isso gera um entrave. É necessário trabalhar com as crianças por meio de associações locais das regiões. “A Chapateca não trabalha sozinha na comunidade, nós trabalhamos exclusivamente com parceiras locais, outras associações que nós chamamos aqui de OCB – Organização Comunitária de Base – que quer dizer que é uma associação pequenina, mas que já desenvolve projetos no seu próprio bairro, na sua comunidade”, explica Coco.
O governo moçambicano está desenvolvendo uma experiência de ensino bilíngue. No entanto, ainda em regiões específicas, bem delimitadas. Segundo Coco ainda são experiências e não se desenvolveu ainda a nível nacional, mas que estão trazendo resultados positivos.
Nesse sentido, a Chapateca tem a maioria dos livros em português e possui algumas coleções de livros em changana, ou bilíngue. Changana é a língua mais falada na região sul der Moçambique, onde se localiza Maputo.
Parceiras são fundamentais
Os parceiros é uma questão muito importante para a Chapateca. “Nós não podemos chegar assim numa comunidade, e mandar, a dizer aqui está tudo errado e que nós vamos ensinar”, destaca. “Nós entramos numa comunidade através de alguém que é da comunidade e que já tem projetos para melhorar as condições de vida da população e que já está a fazer alguma coisa”, conta. Coco explica que isso além de ajudar com o trânsito com as autoridades locais e os líderes comunitários, também ajuda na questão das relações com as famílias e com comunidade. “Como por exemplo, o Francisco da Maputo Skate, que mora naquela comunidade, em Khongolote, o projeto foi criado por ele, então o que nós fazemos e formar os ativistas deles. Nosso objetivo é formar, capacitar o pessoal daquela comunidade, daquelas associações parceiras”, completa.
A Associação Chapateca atende cerca de 50 crianças na Maputo Skate, que participam das atividades em forma de rodízio. Na associação do Katembe são cerca de 40 crianças. “Em Boane é diferente pois temos a parceira com a APC Associação Projeto Cidadão, uma associação brasileira e eles criaram uma Escola Comunitária. Começaram com uma escolinha, o que aqui quer dizer pré-escola, e depois construíram o primário e agora já tem o secundário”, conta.
Na APC são mais de 200 crianças. “Eles tem um bibliotecário da escola, que nós como Chapateca, vamos ajudar a dinamizar e juntos APC e Chapateca queremos construir agora uma biblioteca para toda a comunidade”, completa.
Coco comemora que “agora que estamos a ter a chapateca pronta, recebemos muitas demandas de outras organizações”. Ela explica que eles estão analisando como atender, pois de momento não querem se espalhar muito. “Estamos vendo que existem estas possibilidades e sobretudo que há uma demanda, há uma necessidade”, ressalta.
Sonho antigo
Coco conta que o projeto da Chapateca era algo que ela tinha na cabeça há muito tempo. “Eu cresci na África, sempre na parte ocidental e em todos os países que eu vivi sempre percebi isto da educação, que ela não é a mesma daquela educação, que nós temos nas escolas em países com mais recursos”.
Ao mesmo tempo, mesmo morando na África, ela mantinha ligações com a França, pois pelo menos uma vez por ano viajava para lá para visitar a família. “Eu tinha amigos que viviam na parte rural da França, onde havia o que nós chamamos em francês de “bibliobus”, que são mesmo isso, bibliotecas móveis, que se deslocam naquelas zonas onde não tem acesso a biblioteca, porque a biblioteca municipal está muito longe”, relembra. Coco conta que seus pais falam que ela sempre gostou de ler e desde muito pequena já devorava livros. “Quando meus amigos lá da França contavam que às vezes chegava um machimbombo, um autocarro, assim enorme, cheio de livros para mim era tipo, uau! Eu imaginava como era e pensava quero ver isto um dia, mas por mais incrível que seja eu nunca cheguei a ver”, relembra rindo.
Coco teve várias experiências profissionais e em Moçambique sua última experiência foi com uma ONG francesa onde atuava na parte da educação. Quando o projeto terminou durante a pandemia da Covid, Coco pensou: “bom, se calhar não está na hora de procurar emprego, com essa situação da Covid, os meus filhos não iam para a escola, então com este tempo parada eu comecei a escrever aquele projeto, que já tinha comigo há muito tempo e pensava que aqui em Moçambique, ele podia dar certo e aí poderia fazer a diferença e contribuir com algo”.
Depois de algumas semanas em uma conversa com sua amiga Shadia, ela contou sobre o projeto da Chapateca e sua amiga lhe disse que sempre quis fazer algo, mas nunca teve tempo ou oportunidade, mas que poderia ajudar no projeto e que contasse com ela.
“Depois de outra amiga soube do projeto e me disse: ah eu gostei do teu projeto e se queres que eu me envolva eu quero. E foi assim uma bola rolando sozinha e pouco a pouco, a Chapateca suscitava entusiasmo, eu mesmo estava muito dentro do projeto, muito empenhada, e aí decidi porque não tentar concretizar agora!”, completou. “Assim estamos com dois anos de existência, fazendo nossas atividade, construindo parcerias, crescendo pouco a pouco. Porque um dia serão eles que vão dar continuidade ao projeto. Nós queremos implementar, criar as bibliotecas. Começar a gerir e dinamizar, mas sempre capacitando alguém da associação, pois, as bibliotecas não são para nós. São para eles e a comunidade. Nós entendemos que com isto se permite ter um componente de continuidade no projeto da Chapateca”, finaliza.