Dennis Hyde e Letícia Alves estão na estrada desde 2021. Até o momento, já visitaram 59 parques
Por Carolina Conti, São Paulo.
Até bem pouco tempo atrás, meados de 2021, se você colocasse “parques nacionais do Brasil” no Google, a pesquisa não te traria a informação precisa da quantidade de unidades espalhadas pelo país. Quem fez essa conta e, muito além do somatório, tem se especializado no tema, é a dupla Letícia Alves e Dennis Hyde. Os dois paulistanos, ela psicóloga e ele economista, decidiram passar as férias no Piauí, em 2018, quando conheceram a Chapada das Mesas e as Serras da Capivara e das Confusões.
A questão, ou as questões, é que não foram só belezas naturais que eles encontraram por lá. Queimadas, madeireiros, caçadores, e um dado surpreendente: de que, naquele mês, os dois tinham sido os únicos visitantes de um parque com extensão equivalente a quase oito cidades de São Paulo, fez com que retornassem à capital paulista reflexivos.
“A gente voltou perturbado e admirado. E falou assim: bom, o que é essa história de Parque Nacional no Brasil? Então fomos pesquisar e vimos alguns lugares que já tínhamos ido e nos propusemos, primeiro, a programar as férias para conhecer os outros. Mas depois a realidade começou a bater: os parques estão sendo desmontados, os recursos não chegam…não tem tempo, vamos ter que agilizar isso. Entendemos como um chamado. Se ninguém tinha visitado esses lugares, era preciso que alguém fizesse isso”
Dennis Hyde
No fim de 2019, os dois começaram a se organizar para a expedição: escolheram o trailer e planejaram o desfecho de trabalhos, algo que teve que levar um pouco mais de tempo por conta da pandemia. Um ano e meio depois, estavam liberados única e exclusivamente para este projeto. Prepararam-se financeiramente, testaram o transporte, e, claro, desenharam o roteiro considerando diferentes aspectos: “Se você quer subir montanha no Sudeste, não adianta estar lá no verão, porque chove e fica muito perigoso. Por outro lado, se quer curtir a região sul tem que ir justamente no verão, porque lá chove um pouco menos nessa época”, Dennis pontua.
O casal também havia feito, previamente, um minicurso de primeiros socorros. Fundamental, já que Letícia precisou colocar em prática o que aprendeu recentemente, quando seu companheiro quebrou o braço em uma trilha próxima à cachoeira da Fumaça, na Chapada Diamantina, na Bahia.
A expedição
Eles saíram de casa há dois anos e três meses, no dia do meio ambiente (comemorado no dia 5 de junho), e a primeira parada foi o Parque Nacional do Itatiaia, no Rio de Janeiro, o mais antigo do país. Até o momento, já percorreram toda a região sul, o sudeste e o nordeste – exceto Fernando de Noronha e Paraíba, porque no dia 5 de junho de 2023, um novo parque foi criado, o primeiro neste estado, o da Serra do Teixeira. Como ficam em torno de 15 dias em cada unidade, a previsão é a de que a expedição termine em 2024.
Não há um ritual específico ao chegarem em cada lugar. Assim como as incursões na mata, às vezes as visitas acontecem na presença de funcionários locais e, em outras, eles preferem estar desacompanhados, como ela ressalta: “Com o guia, você conhece a geologia e a botânica, mas fazer a trilha sozinho, ou entre nós, gera uma conexão diferente, né?”. Acontece de, eventualmente, eles “se hospedarem” dentro do parque, mas também ocorre de não, e aí tem algo de que gostam de fazer bastante que é perguntar na cidade sobre pessoas interessantes que possam apresentar a eles a unidade de conservação mais próxima.
Foi assim que conheceram o Seu Lourival. Lá no Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba. A experiência foi uma das mais significativas, até o momento, para o Dennis: “Ele está lá há décadas. Aluga chalés para gringos que querem, basicamente, ver arara, lobo guará e toda a fauna que há em meio às veredas de Buritis”.
Depois de ouvirem na cidade que precisavam saber quem era o “pai”, como Seu Lourival é chamado por muitas pessoas, foram atrás dele, que os recebeu com a receptividade habitual na acolhida aos estrangeiros. Após uma conversa, combinaram de fazer uma caminhada juntos. “Ele parecia um menino na trilha”. O passeio ainda contou com a presença do neto do Lourival, João Gabriel, que fazia sua primeira incursão na mata encantado pela sabedoria e pelo magnetismo do avô.
“O parque nacional é muito além da natureza. Ela é a principal, mas a gente encontra essas pessoas que estão ali contando histórias e fazendo isso acontecer, isso é maravilhoso”. Seu Lourival apaga fogo sozinho e costuma abastecer um caminhão com galinhas a fim de doar às pessoas do entorno para que elas não cassem arara. “Ele é um guardião”, complementa o economista.
Muito embora o planejamento de cada parque comece, em média, dois meses antes da visita – o que compreende muitas vezes acionar o ICMBio, fazer pesquisas, mapear pontos interessantes dentro do espaço e lugares onde eventualmente possam “pousar”, também integra o desenho da viagem um tempo dedicado ao não planejado, algo que possibilite encontros como esse e que tanto enriquecem a vivência. Para a Letícia, “é muito frustrante chegar e falar: não temos tempo de fazer isso…”.
Ainda sobre os encontros, no Piauí eles tiveram um inesquecível: com a arqueóloga Niède Guidon. A cientista, nos anos 1970, enquanto lecionava na França, conseguiu convencer o governo de lá a estabelecer uma missão arqueológica para estudar a pré-história no estado nordestino. Desde então, tornou-se referência no assunto, uma voz ativa na proteção, em especial, do Parque Nacional da Serra da Capivara.
Um dos aspectos que mais chamaram a atenção do Dennis foi como ela favoreceu o protagonismo feminino: “Tudo tem o dedo dela ali. Para além dos estudos, ela empoderou muitas mulheres, desde pesquisadoras até porteiras. Todas as porteiras do parque são mulheres. Isso no interior do Piauí e nas décadas de 1970, 1980! Imagina…”.
Tem cheiro de bicho e flor brotando do chão
No começo, tudo foi a inauguração de um olhar, meio que uma experiência infantil. Sem saber identificar plantas e, mesmo, diferenciá-las, “cegueira botânica”. Conta a Letícia: “A gente saía com o guia e ele dizia: Ah, tem cheiro de bicho aqui. A gente se entreolhava sem entender. E, hoje, de alguma forma sabemos. Estamos caminhando na mata e sentimos: aqui tem bicho, está com cheiro de bicho”. O vocabulário muda, uma vez que espécies vegetais e animais passam a ser incorporadas ao repertório, mas também os sentidos são ampliados, na percepção do ambiente e de si mesmo nesse contexto convidativo a diversas conexões.
Das experiências de extrema beleza, neste país que guarda a maior biodiversidade do mundo, fica difícil selecionar uma, mas ela relembra de quando estiveram no Parque Nacional das Emas, em agosto do ano de estreia. Era o seu primeiro aniversário na viagem. O clima estava seco, uma paisagem monocromática, e ventos fortes que chegavam a formar redemoinhos. São os “ventos de agosto”, conta, que antecedem um período de precipitações:
“Quando começou a chover, a vegetação ganhou cor, porque em primeiro lugar lavou tudo, mas a transformação que acontece no cerrado é de um dia para o outro, percebe-se a olhos vistos. É um negócio que eu nunca imaginaria na vida. Como as plantas estão muito para baixo, de repente o chão ficou inteiro florido, a gente andava e via flor brotando, assim, do chão. Os bichos se transformaram radicalmente também. De repente tomou uma vida e uma cor…foi um negócio muito mágico!”
Letícia Alves
Para viajar com eles
Todas as paradas e visitas aos parques que foram feitas pela dupla estão publicadas no site entreparquesbr.com.br. Para além dos vídeos no Youtube, tem também o blog – que fica no próprio site – e o Instagram, com reels e fotos convidativos aos passeios ou à descoberta do Brasil por meio desse guia completo.
Eles têm uma relação pessoal com todos os lugares onde param e vivem por um tempo, conforme explica o Dennis: “A ideia é a de entender um pouco qual é a identidade de cada parque, qual a singularidade, a personalidade que ele têm”. Ao final de cada estadia, filmam a si mesmos conversando sobre o que foi aquela experiência. É algo que fica no acervo particular e, em alguma medida, os ajuda a fechar o ciclo de uma vivência e abrir o da próxima, “para que não seja uma continuidade”, ele complementa.
Os dois têm por objetivo, além de divulgar essas riquezas do Brasil, também fazer um chamamento-convite à sociedade civil para um cuidado coletivo desses nossos patrimônios. “Tem que cobrar duro do governo, afinal é dinheiro nosso que está sendo empregado ali”, ele fala. “Mas também ter participação ativa, porque de acordo com um estudo que vi seria preciso triplicar a estrutura que temos hoje para dar conta do mínimo. Isso não vai acontecer, aí é que entra a sociedade civil no suporte, nesse cuidado. Se as pessoas que vivem no entorno do parque estão bem engajadas, o parque funciona muito melhor”.
Letícia complementa: “É uma delícia entrar numa cachoeira e tomar um banho de floresta, mas 80% das nascentes, de água do nosso país, estão em unidades de conservação como parques nacionais. Esse clique da gente entender que a nossa vida tá completamente atrelada à vida e à manutenção desses lugares é muito importante que todo mundo tenha”.