Entenda os múltiplos fatores que levam às variedades de nossa língua a parecerem, ao mesmo tempo, tão próximas e distantes
Por Diogo Silva, São Paulo.
“Meus pais nasceram minha irmã!”, “Fulano está a partir o braço de Sicrano!”. Para os leitores brasileiros, a primeira expressão pode causar estranhamento, e a segunda parecer estar bem clara em relação ao significado – embora o mais comum seria usarmos “Fulano está partindo o braço de Sicrano!”.
Esses são dois dos muitos exemplos que mostram a riqueza de contrastes no uso da língua portuguesa em diferentes países – no primeiro caso, verificado em Moçambique e em Angola, o modo do uso do verbo “nascer” é influenciado por línguas locais. No segundo, vemos uma expressão angolana que difere do significado literal – “partir o braço” seria algo como “tirar vantagem de alguém”.
Ao analisarmos o português falado e escrito no Brasil e nos países africanos, é possível destacar aspectos que caracterizam as semelhanças e diferenças entre os países. Entre os aspectos comuns, estão o contato linguístico a partir da colonização portuguesa e a aproximação, em Moçambique e Angola, do português com línguas locais, como as do grupo banto, as mesmas faladas pelo maior número de indivíduos transplantados pelo tráfico para o Brasil.
Já a mudança linguística e a sua diversificação surgem a partir do contato entre os falantes, que se dá em ambientes físicos e culturais específicos. “Nas nações africanas e no Brasil, o português foi imposto pela colonização e foi aprendido como segunda língua pelas populações locais. Na África, o português ainda é adquirido como segunda língua por grande parte da população, o que dificilmente ocorre hoje no nosso país, onde a colonização foi mais antiga, no século XVI, enquanto nos dois países africanos ela teve início em meados do século XIX, quando o Brasil se tornou independente e os portugueses acentuaram suas ações nas colônias africanas”, diz Margarida Petter, brasileira, professora livre-docente do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP).
Ainda segundo a professora, “esse distanciamento histórico indica que o português levado para a África já era um pouco diferente do que fora trazido ao Brasil, além de já ter incorporado fatos relacionados ao seu contato com a realidade brasileira, que envolvia também a presença de línguas indígenas.”
Vale ressaltar, também, as especificidades dos contextos em que se desenvolveram essas variedades do português. “No Brasil, línguas indígenas, ao lado das línguas africanas trazidas pelo tráfico e, mais tarde, línguas de imigrantes, participaram da construção do português brasileiro. Em Angola e Moçambique, o contexto multilíngue envolveu línguas do grupo banto que ainda são faladas e interagem com o português, criando uma ecologia linguística própria, diferente da brasileira, onde as línguas africanas permanecem em contextos específicos”, destaca Margarida.
Por compartilharem uma história comum de contato e colonização, as três variedades de português (no Brasil, Angola e Moçambique) compartilham muitos traços estruturais que as distinguem do português europeu, que são observados sobretudo na língua falada, como por exemplo no uso das vogais bem articuladas.
No entanto, em várias situações na forma de falar elas se diferenciam, como por exemplo: estou estudando, falado no Brasil e estou a estudar, como se fala nos outros dois países africanos, do mesmo jeito como em Portugal.
Já na língua escrita, que está sujeita à norma culta europeia – a única ainda difundida pela escola nos países africanos –, é possível encontrar mais semelhanças entre as variedades africanas e a europeia de português.
“Convém notar, no entanto, que linguistas angolanos e moçambicanos estão trabalhando na análise das variedades regionais de português, com vistas à elaboração de uma norma local, específica para cada país, para ser adotada como padrão nas escolas”, diz Margarida. “Deve-se destacar o caso especial da literatura, onde os escritores procuram retratar e recriar em suas obras a oralidade africana, que se distingue da europeia não só pelo uso de um vocabulário próprio emprestado de línguas africanas, mas se revela também no uso de palavras do português europeu em estruturas inovadoras, que vão produzir significados novos.”
Para Ezequiel Bernardo, angolano, mestre e doutorando em linguística pela UFSC, a maior semelhança entre os traços linguísticos da variedade angolana e europeia pode passar pelo fato de que Angola ainda seja muito dependente da produção literária portuguesa, já que muitos intelectuais angolanos são formados em Portugal e têm a tendência de trazer pressupostos discursivos europeus e colocá-los em prática no país. Porém, em consonância com o apontado por Margarida, ele veja que esse cenário esteja passando atualmente por modificações. “Hoje, no entanto, vemos que o Brasil está produzindo até mais do que Portugal na questão de literatura e investigação científica linguística, o que faz com que os pesquisadores angolanos tenham cada vez mais contato com bibliografia que não seja de origem europeia – isso aliado ao fato de que há um despertar de editoras, em Angola, que faz surgir e circular cada vez mais produções de intelectuais africanos”, diz Ezequiel.