Expressão em Lingala quer dizer “entre nós” foi a inspiração para Celestino Bastos e Elias Celestino para criar o movimento Biso
Por Marcelo Ayres, São Paulo.
Celestino Bastos e Elias Celestino, nasceram em Angola e se conheceram em Portugal quando começaram a faculdade. Celestino nas ciências exatas e Elias nas humanas. Mais do que a coincidência dos nomes, encontraram muitos pontos em comum, principalmente nas perguntas e questionamentos que se faziam ao olhar para Angola, sua terra natal.
Como explica Elias, “quando nos conhecemos, em 2016, foi em um contexto acadêmico e começaram a surgir assim alguns encontros de ideias e que nós achamos muito interessantes e tentamos criar alguma forma de levar essas ideias, essa conversas além”.
O nome do movimento é um ponto muito importante. Biso veio de “Biso na biso”, “entre nós”, em Lingala. Essa é uma expressão quando alguém quer ter uma conversa mais íntima, contar um segredo, ser mais direta. Assim é o movimento Biso que quer discutir a angolanidade de uma forma mais íntima, direta com um olhar próprio. “A escolha do nome dependeu de muita coisa, mas dependeu, principalmente de um processo, do nosso processo de investigação de nossas origens. A lingala é uma das línguas mais faladas na África, da etnia Bantu, o maior grupo étnico da África. Essa origem está naquilo que foi o Reino do Congo e depois o surgimento dos Estados novos. Nosso olhar em relação a angolanidade é um olhar muito mais profundo, diferente daquele que estamos habituados a ver sobre a angolanidade que durante um tempo excluiu uma grande parte de pessoas que fazem parte dessa angolanidade”, conta Celestino.
Elias complementa que “O Biso é uma questão muito legítima e necessária. O que é que é o Biso, o que é que ele significa? Essa palavra, esse nome estranho, essa palavra nova para os ouvidos de quem fala o português. O fato é que nós falamos português. Nós crescemos com a língua portuguesa, fomos alfabetizados com a língua portuguesa e temos a língua portuguesa como a língua oficial da nossa terra natal. Entretanto, nós vamos recorrer a um nome vindo de uma das línguas de um dos povos africanos. Então nós escolhemos este nome justamente por este olhar muito particular nosso, em relação à África e principalmente em relação à África que fala português. Existem certas narrativas que nós gostaríamos já de confrontar com a escolha desse nome”.
Segundo Elias a busca foi justamente nas raízes, nas origens do povo angolano. “Nós viemos de um lugar que era regido pelo grande Reino do Congo e o lingala era o que se falava lá. Então depois do acontecimento colonial e tudo mais que aconteceu em decorrência disto, naquela região, principalmente na parte de Angola, nós ficamos um pouco divididos em termos de quem nós somos? O que é que nós vamos fazer? Como é que vamos conversar, inclusive, em que língua vamos conversar? É claro que nós vamos começar a produzir conteúdo em português, mas nós queremos chamar atenção de uma coisa, nós sabemos muito bem de onde viemos e vamos fazer essa grande homenagem às nossas raízes”, completa Elias.
Tanto Celestino como Elias enfatizam que o Biso vem justamente a partir deste ponto. “Nós queremos falar de nós. Nós quem? Nós angolanos. Essa visão da África a partir de um olhar angolano que fala português”, ressaltam.
Semelhanças dos colonizados
Celestino vê que Brasil, Angola e os outros países colonizados por Portugal possuem semelhanças que vão além do fato de partilharmos o mesmo idioma. “Eu costumo dizer que nós estamos em realidades muito parecidas. Assumimos a partida que também as realidades são muito parecidas e não é só pelo fato de termos um colonizador em comum, como pelo fato de partilharmos partes da mesma Cultura. Há lugares do Brasil que tem uma cultura muito parecida a nossa. E durante anos por partilharmos a mesma língua desenvolvemos um estilo de vida. quase que em conjunto”, opina.
No Biso, segundo Celestino, eles mantém uma máxima nas conversas que é sobre a questão das abordagens, que de acordo com ele existem abordagens que são muito específicas, muito características de cada lugar, mas que depois acabam por ser muito abrangentes. “Quando nós falamos de uma realidade, por exemplo, num contexto de pobreza em Angola, talvez seja não muito diferente da realidade do Brasil ou de Cabo Verde. Apesar de discutir pontos específicos, acabamos trazendo uma discussão, por exemplo, do nosso jeito em Angola e de um jeito também especial no Brasil e com isso trazer uma abordagem que possa ser interessante para todos”, completa.
O Biso quer abrir mais o projeto e falar um pouco dos países africanos de língua oficial portuguesa. “Vamos cruzando as realidade parecidas a nossa. Por exemplo, nós temos essa experiência de vivermos em um lugar onde temos problemas sociais e estarmos também a ver outros problemas sociais em outros lugares. Assim como a questão cultural que também nos conecta. Nosso olhar agora se expande para uma questão de nos identificarmos em certos discursos e conversarmos sobre certas coisas que nós achamos que são interessantes a nós e para toda a comunidade também”, destaque Celestino.
Para Elias as proximidades e distanciamentos entre os países são fatores que geram muitas possibilidades. Para ele, particularmente, Angola e Brasil tem uma ligação, “que às vezes é uma ligação, que infelizmente nós vemos o Brasil a aproveitar pouco ou a observar pouco”. Elias acredita que isso acontece por muitas razões. “Nós entendemos que até em questão de geopolítica o Brasil está mais voltado à América, por exemplo, é um país muito voltado aos Estados Unidos da América do norte, o que é que se faz lá, o que é que se faz na Europa, mas para África, isso já é um pouco um pouquinho mais distante”.
Elias entende que há essa relação, esse olhar “apesar do sentimento de proximidade, que muitos brasileiros têm relação a África, entretanto há este desconhecimento, esse olhar de desconhecido quando se trata de nós angolanos, nós africanos que falamos português”. Elias também acredita que existe uma curiosidade genuína e honesta de querer saber “o que é que se passa por aqui? O que é que você fala? Como é que vocês falam? Como é que vocês estão e tudo mais relacionado ao nosso lado africano”.
Caminho de mão única
No entanto, Elias destaca que em Angola se observa muito a cultura e a realidade brasileira e o contrário não acontece. “Bebemos muito dessa cultura. Inclusive fomos alfabetizados por essa cultura em certos momentos da nossa história. As primeiras telenovelas que nós vimos vieram do Brasil, as primeiras adaptações da dramaturgia do teatro brasileiro, a música sertaneja, todos os gêneros musicais possíveis do forró ou samba. Aprendemos até a usar as chinelas Havaianas como os brasileiros”, completa.
“Aprendemos com os brasileiros um monte de expressões, conseguimos perceber expressões da gíria, do diálogo, da linguagem popular do Brasil e muitos mais elementos que nós vemos inclusive, que vieram do nosso território, do território de Angola e que foram levados para lá e viraram cultura. São culturas brasileiras. São entendidas como elementos da cultura brasileira”, opina Elias.
Elias destaca que não obstante partilharmos a mesma história de colonização, com o mesmo colonizador, somos herdeiros de uma língua que vai ser o elemento fundamental da construção da nação, “porque nós nos encontramos aí, quando todos falamos a mesma língua, a unificação de um território pela língua e tudo mais”. Entretanto existem diferenças que não podem deixar de ser mencionadas “como o fato de que quando a língua portuguesa vem para nós, nós assimilamos de uma forma completamente diferente do Brasil”, completa.
“Nós temos a nossa forma de expressar o mundo através dessa língua que nós herdamos. Nós transformamos essa língua para entender e expressar o mundo de acordo com as nossas vivências, que também são muito particulares, que são também muito diferentes das que têm no Brasil, mas em suma somos muito parecidos em vários em vários aspectos”, reflete Elias.
“Quando nós vemos o Brasil a olhar para a América e a idealizar essa América, acontece o mesmo conosco, quando nós olhamos para o Brasil e idealizamos o Brasil para a nossa realidade”, opina.
Atuação Político-cultural
Quando a dupla de amigos do Biso decidiu falar sobre política e cultura, eles decidiram por três coisas diferentes: “primeiro porque dentro das nossas discussões nós sempre vimos que infelizmente, por causa do processo de escravatura e tal, e o processo de colonização, que as pessoas pretas foram sempre vistas à periferia da política e da decisões. Então é importante, principalmente, nós jovens, nos posicionamos e mostrarmos que também estamos em altura de falarmos alguma coisa, de opinarmos”, explica Celestino. O segundo motivo segundo ele é a questão da educação e da informação. “Nós viemos de uma realidade muito específica onde não se tem acesso à informação e a questão da educação em relação aos direitos básicos, a questão dos direitos civis são muito fracos e não é novidade para ninguém que nós estamos a vir de um país que até há pouco tempo era uma ditadura e passa de uma ditadura para uma autocracia”, completa.
“Este é um contexto parecido com muitos outros, muitos outros contextos do mundo afora onde existem ditaduras, existem autocracias, entre outras situações. Assim é normal que os jovens comecem a questionar, e foi o nosso caso no início do movimento, nós tínhamos muitas perguntas e o que nós definimos do início que iríamos a fundo nessas perguntas e a questão política se encaixa exatamente aí no questionar”, define Celestino.
O último ponto que destaca Celestino que os levou a ter essa abordagem no Biso tem a ver com a questão da autoeducação. “Nós achamos que ao partilharmos isso, não estaremos só a dar informação para as outras pessoas, mas também estaremos a nos educar, uma forma de nos auto educar. Então esse, se calhar é o ponto principal, a questão da autoeducação. Nós jovens, e aqui eu vou parafrasear o Papa Francisco, que diz que os jovens não devem ser vistos como o futuro, os jovens devem ser vistos como o presente. Acho que nós somos o presente, nós estamos aqui, queremos participar disso, e, o nosso olhar em relação à Democracia é exatamente isso. Nós achamos que tínhamos de ter uma democracia participativa onde realmente as nossas ações refletissem alguma coisa, talvez muito parecida a realidade do Brasil, Cabo Verde, de São Tomé onde os jovens querem participar, nós em Angola também queremos participar”, finaliza.