Escritoras e deputada moçambicana da diáspora refletem sobre o português como projeto político
Por Lina Moscoso, Lisboa
A língua portuguesa pode abranger todas as culturas e línguas dos países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa? Os laços da língua são mesmo importantes? A deputada de Moçambique, representante da diáspora em Coimbra, Portugal, Ivone Bila, acredita que Portugal, África e Brasil, por falarem a mesma língua, acabam por abraçar um conceito único que neste caso seria a cultura, “mas acabamos por ver que não se trata só da cultura. Vai para além da cultura. Vamos buscar as nossas origens e o fato de falarmos todos uma língua formamos uma comunidade sem fronteiras”, destaca.
Em Moçambique, o português se tornou língua oficial e hoje é dominante entre os jovens. Em Maputo, está aumentando o número de pessoas que falam português. No entanto, existem mais de 20 línguas e muitas crianças só aprendem o português quando chegam à idade escolar. Dentre as mais faladas estão macua e xangana. Segundo a Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, apenas 17% dos moçambicanos falam português como primeira língua.
“Abraçar-nos como irmãos falantes de uma só língua não é olhar para o português, mas olhar para as pessoas como um todo, como cidadãos do mundo”, opina Ivone Bila. As relações entre Portugal e Moçambique já não são de colonizador e colonizado, como observa a deputada.
Projeto político
No entanto, no que diz respeito à imposição da língua portuguesa, oficializada nas ex-colônias, através da anulação das línguas originárias do Brasil e da África, imigrantes brasileiros e africanos lusófonos são alvos de xenofobia linguística, tanto no dia a dia das crianças nas escolas, quanto na academia portuguesa, onde é preciso, em algumas universidades, solicitar oficialmente que a escrita de teses e dissertações sejam em “português do Brasil”.
O português do Brasil, assim como o dos povos africanos – que ainda utilizam dialetos e línguas próprias, sobretudo em Cabo Verde, que fala o crioulo – sofreram alterações linguísticas, as chamadas variantes e está em constante movimento. Daí a defesa do “pretuguês” pela ativista e filósofa brasileira Lélia Gonzalez, e de uma “Améfrica”, que é também indígena e “afrodiaspórica”.
A escritora angolana Paulina Chiziane lembrou, quando foi receber o Prêmio Camões, em maio deste ano, que “cada povo africano recebeu uma língua, que tem que preservar, guardar”. Essa língua é “herança divina”, mas depois, por “circunstâncias da história”, receberam outras línguas, “uma herança humana”.
Para além da valorização das línguas africanas como resistência, a língua portuguesa precisa acolher as variações que são faladas nos outros países, e necessita passar pela descolonização porque já não é a língua do colonizador, conforme Paulina Chiziane.
A poeta Raquel Lima, portuguesa de origem angolana, afirma, relativamente às imposições de uma só língua portuguesa como projeto político, que a relação com a língua é só um prolongamento pela relação com o todo. “Essa contradição e essa pressão existe no dia a dia. Como é que nós conseguimos definir uma identidade dentro de uma cidadania que não é plena?”, indaga sobre a cidadania da língua. Ela acha que o mais interessante é fazer um caminho não fixo, ou seja, não ter que seguir as normas cultas da língua. “A inércia é exatamente aquilo que nos pode impedir de conseguir ter uma relação com a língua que seja mais favorável. Nesse sentido, aquilo que eu escrevi há 10 anos atrás é muito diferente do que eu digo hoje. Hoje eu consigo não ter tanta preocupação em cumprir uma ordem dominante”, conta. Raquel até inventa palavras em seus livros de poesia como forma de dissidência linguística.
“Então eu acho que à medida que nós vamos comprimindo o nosso lugar nesse contexto e conseguindo elaborar sobre a nossa liberdade e a nossa identidade, nós também vamos ter uma relação com a língua cada vez mais dissidente”, finaliza.
Raquel Lima levou à Bienal de São Paulo 2023 a instalação “A máquina de escrever salazarista”, um vídeo de 14 minutos, produzido com o artista português Carlos Bunga, que vê na literatura oral manifestações das rasuras provocadas pela escravatura e pelo colonialismo num território onde se cruzam as suas três nacionalidades. O vídeo conta a história do fascínio por uma máquina de escrever de modelo português HCESAR, criado pelo Estado Novo. O chamado “teclado nacional” deve o seu nome às seis primeiras letras da primeira linha, que seriam as mais frequentes na língua portuguesa. Foi introduzido em 1937 durante o regime ditatorial presidido por António de Oliveira Salazar.