Por Jamil Chade.
Desenraizadas, árvores vêm sendo destruídas, abalando as referências, receitas, história e sentido de identidade de uma população
Ela é citada tanto no Corão como faz parte do brasão do estado de Israel. É o símbolo de longevidade, resiliência e, claro, de paz. A oliveira faz parte de contos e passagens dos textos sagrados. É celebrada, homenageada e entoada em canções em árabe ou hebraico.
Mas, desde 1967, dados da ONU apontam que 2,5 milhões de árvores produtivas foram desenraizadas nos territórios palestinos. Dessas, 800 mil eram oliveiras.
De forma sistemática, a destruição dessas árvores passou a marcar a realidade das cidades palestinas. Apenas em 2014, 9,3 mil arvores foram destruídas. Em janeiro de 2015, outras 5,6 mil foram tiveram o mesmo destino. O fenômeno uma vez mais foi registrado em 2021. Nos cinco primeiros meses de 2023, mais 5 mil árvores foram vandalizadas, principalmente na Cisjordânia.
Essa não é, porém, apenas a história de uma árvore mítica. Ela representa 14% da frágil economia palestina, produz azeite para cozinhar, para fabricar sabão e iluminar e faz parte de tradições locais. Mas é sua capacidade de exportação que permite que cidades inteiras possam sobreviver. Alguns dados chegam a apontar que a árvore é a única responsável por renda em mais de 90 mil famílias.
O desenraizamento das oliveiras não ocorre de forma isolada. A ocupação israelense gerou, segundo a ONU, um processo de perda da capacidade produtiva do campo palestino, aprofundando a dependência em relação à economia de Israel. Em 1975, por exemplo, a agricultura representava 28% do PIB palestino. Hoje, ele é apenas 4% da economia local. Se há 40 anos empregava 32% da população, atualmente o setor se limita a 11%.
Parte dessa transformação econômica seguiu o ritmo do restante do mundo, no qual a agricultura perdeu seu lugar. Mas a ONU insiste que, no caso palestino, a ocupação teve um papel decisivo. “Desde o início da ocupação em 1967, os territórios ocupados perderam o acesso a mais de 60% da terra da Cisjordânia e mais de dois terços de terra arável”, indicou o levantamento da entidade e entregue à Assembleia Geral.
Acesso à água também se transformou em um obstáculo. De acordo com o levantamento da ONU, Israel “confiscou 82% da água do subsolo palestino para o uso dentro de suas fronteiras e nos assentamentos”. “Enquanto isso, palestinos precisam importar de Israel mais de 50% de sua água”, aponta o documento, que também indica que agricultores palestinos estão proibidos em muitas localidades de construir seus poços de água.
Mustafa Mardawi, um dos maiores produtores de azeitona do norte dos territórios palestinos e que exporta para Golfo e Europa, deixa claro que a situação hoje é “difícil”. Mas, segundo ele, Israel não é o único problema. “A falta de chuvas tem nos afetado muito”, disse o agricultor que, por ano, garante um abastecimento de mais de 5 toneladas de azeitona. “Mas em diversas regiões, o que ocorre é que não temos o direito de furar poços”, alertou.
Em outro estudo, desta vez realizado pelo Banco Mundial, constata que apenas 35% das terras palestinas hoje contam com irrigação. O impacto representa 10% do PIB local e custa à economia 110 mil postos de trabalho.
A construção do muro na Cisjordânia também representou uma perda de “pelo menos” 10% das terras mais férteis da região. “Atividades agrícolas tem sido cada vez menos viável e muitos fazendeiros estão sendo forçados a abandonar o cultivo”, indicou.
Os problemas também são domésticos. Num outro levantamento do Programa da ONU para o Desenvolvimento, ficou constatado que as autoridades palestinas destinavam apenas 1% de seu orçamento para a produtividade no setor rural. 85% desse orçamento ia para pagar salários de funcionários do Ministério da Agricultura.
Hoje, enquanto assistimos a uma das etapas mais perigosas do conflito no Oriente Médio, um dos centros do debate é o destino de milhões de palestinos. Um dos temores de líderes árabes, durante a Cúpula do Cairo neste fim de semana, foi a de que Israel veja a atual situação como oportunidade para deslocar milhões de palestinos para outros territórios.
Para muitos, o movimento não começou agora. O desenraizamento é um processo real, contínuo e denunciado, assim como no caso das oliveiras.
Árvores que representam a ligação de uma população com suas terras. Resistem à seca e sobrevivem às condições mais rudes. São parte da memória coletiva, lembranças da capacidade de resiliência e, no fundo, exemplificam a causa palestina.
Há apenas uma forma de impedir que sobrevivam. Desenraizando uma por uma.
“Se a oliveira conhecesse as mãos que as plantaram, o azeite se transformaria em lágrimas”, resumiu o poeta Mahmoud Darwish.